Uma palavra que me acode à mente, tanto
a propósito dos artistas e compositores de canções, a maioria de protesto, ou
de conteúdo social, que Nuno
Pacheco descreve nas suas actividades e mensagens de entretenimento, de
momento confinado, é “agilidade”, tanto na referência a esses criadores de beleza
ou conceito, como ao próprio Nuno Pacheco, que admiro,
sobretudo na forma incansável que tem demonstrado a respeito de um ACORDO ORTOGÁFICO insensato e
criador de discórdia e rejeição, embora sem resultado prático para uma inversão
de rumo, num país de mansidão, que não é, todavia, sinónima de mansuetude. Por isso,
transcrevo da Internet, a resenha biográfica de Nuno Pacheco, enquanto aprecio os seus dois textos sobre os vários artistas, como uma lição
a reter, sobretudo pelos apreciadores de música:
«NUNO PACHECO
REDACTOR-PRINCIPAL
Integrar
em 1989 a equipa fundadora do PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos
grandes desafios da minha vida, faltavam ainda uns anos para o advento
revolucionário da Internet. Que não mudou a essência do que acredito
que deve ser o jornalismo: uma mistura de ética, arte e busca incessante do que
é novo. E isso é inseparável do tratamento dado à palavra,
na forma como se escreve uma história, se formula uma ideia, se incentiva um
debate. Por isso sou defensor acérrimo da diversidade da língua portuguesa, nas
suas riquíssimas variantes, e adversário do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de escrever
sobre música brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês) da morte
de Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para esta
história. tp.ocilbup@ocehcap.onun»
Agilidade, perícia, o contrário da nossa
languidez, com ou sem confinamento…
I - Cultura-Ípsilon: MÚSICA
Rua das Pretas lança Um Copo de Fado, Dois de Bossa
Nova
O projecto animado pelo cantor e
compositor brasileiro Pierre
Aderne lança finalmente o seu novo álbum, que está disponível
a partir desta terça-feira nas plataformas digitais.
PÚBLICO, 16 de
Fevereiro de 2021
Começou
pela divulgação de duas canções, em meados de 2020, e agora chega inteiro ao
mercado digital. Um Copo de Fado, Dois de Bossa Nova é o novo álbum do projecto Rua das Pretas, lançado pelo cantor e compositor brasileiro Pierre
Aderne, que teve por rampa de lançamento um
concerto no dia 12 de Junho do ano passado, no palco do Coliseu de Lisboa, com
os cuidados impostos pela pandemia.
Nessa
altura foram disponibilizadas duas faixas, as primeiras do disco: A
sombra do meu chapéu, numa
parceria de Pierre Aderne e Gabriel Moura, e Lisboa de
Janeiro, de Pierre
Aderne. Mas só agora, apesar de ter sido gravado na totalidade em
Fevereiro de 2020, é que o álbum nos chega na totalidade. Além das faixas
já mencionadas, há ainda Meu Maracanã (outra parceria de Pierre Aderne com Gabriel Moura), Eu
não sei compor um fado (Pierre
Aderne), Dá-me a dança (Pierre
Aderne), Nau-Frágil (de Pierre Aderne e Márcio Faraco, que já tinha sido
gravada por António Zambujo),
Fado sexta-feira (Pierre
Aderne e Gastão Villeroy), A cor dos teus olhos (Francis Hime e Pierre Aderne), Desce um
Carnaval (Pierre Aderne e Pedro Luís) e Rio
de tanto ser (José
Eduardo Agualusa e Pierre Aderne).
Além
de Pierre, integram a “teia que une Brasil, Portugal e Cabo Verde neste
disco” Nani Medeiros, Joana Amendoeira,
Nilson Dourado, Walter Areia, João Pita, Eliane Rosa, Rui Poço, Stephan
Almeida, Augusto Britto e o produtor musical venezuelano Hector Castillo.
O nome do projecto vem da
própria rua, onde
Pierre Aderne se instalou em Lisboa,
depois de viver uns tempos no Poço dos Negros. Ali deu início a umas tertúlias
musicais, juntando amigos em torno de canções e conversas, com
comida e vinhos. Com o tempo, encontrou
nova morada num palacete do Príncipe Real, mas o nome manteve-se. E, como Rua das Pretas, foi ali promovendo encontros regulares aos fins
de tarde de sábado, passando por aquele espaço, só no primeiro ano, mais de 140
artistas e cerca de 4 mil participantes de 53 países. Enquanto isso, alargou-se
a outros pousos: Porto, Paris, Nova Iorque e Madrid. E, em parceria com
produtores de vinhos portugueses, lançou em 2018 um primeiro disco.
A pandemia da covid-19 veio alterar esta rotina, mas a Rua das
Pretas não parou. Abriu
como sala de concertos virtual, com bilheteira online,
e fez temporadas com Pedro Luís (do Monobloco, do Rio de Janeiro), Pedro
Miranda (do samba carioca, da Gávea), Nancy Vieira e, aos sábados, o colectivo
Rua das Pretas. O
palacete do Príncipe Real foi mantido sem público, mas as transmissões eram
feitas directamente de lá, conseguindo, através de parcerias com produtores de
vinhos portugueses gerar sustentabilidade para o projecto.
TÓPICOS
MÚSICA
CULTURA-ÍPSILON LISBOA BRASIL COVID-19 RIO DE JANEIRO
II - Cultura-Ípsilon: OPINIÃO
O milagre de cantar, no país do (e agora sem) Carnaval
Maria Bethânia aproveitou o 13 de
Fevereiro para trazer o espírito de resistência do espectáculo Opinião para
os nossos dias.
PÚBLICO, 18 de
Fevereiro de 2021
Agora
que o Carnaval se foi, sem sequer ter sido, as cinzas desse
não-acontecimento resumem-se a pouco. Por cá, além de tímidas manifestações
das máscaras por usar, e dos patrimonializados Caretos de Podence confinados a
chocalhar às varandas, inventariam-se prejuízos. Já no
Brasil, país do Carnaval por excelência, as imagens de gente que se mascarou
para ficar em casa, numa folia domesticada a quatro paredes, dizem
tudo. “É triste, mas é necessário.” Ninguém duvida.
Pois
foi neste sábado de Carnaval sem Carnaval, 13 de Fevereiro, que essa
extraordinária cantora que é Maria Bethânia reservou
um palco para comemorar algo antigo, mas essencial na sua vida: o dia 13 de
Fevereiro de 1965, quando Nara Leão (a
braços com uma doença) a convidou para que a substituísse temporariamente no
espectáculo Opinião, em cena no Rio de Janeiro desde 11 de Dezembro de 1964,
meses depois do golpe militar que depôs o presidente democraticamente eleito João
Goulart, no Brasil.
Foi
essa a estreia profissional de Bethânia,
e logo num teatro de resistência,
que, como lembra o seu irmão Caetano Veloso no livro Verdade Tropical (1997), combinava “o charme dos shows de bolso de bossa
nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política.”
A
recepção de Bethânia, ao lado de João do Vale e Zé Kéti, foi calorosa, e não tardou a gravar um álbum,
contratada pela RCA. Mas insistiam em ouvir-lhe uma só canção: Carcará
(“Pega, mata e come/ Carcará/ Não vai morrer de fome/ Carcará/ Mais coragem do
que home”). “Levei mais de um ano cantando
Carcará”, lamentou-se ela um ano depois, num filme que retrata esses dias: Bethânia Bem de Perto (1966), de Júlio
Bressane e Eduardo Escorel (em DVD desde 2007).
Ora
Bethânia, com a
elegância e a argúcia que lhe conhecemos, recuperou a essência de Opinião. Não
apenas para recordar esse “dia mágico”, esse “dia grande” para ela, ou para
evocar, citando-a, “um show com assinaturas ilustres: Ferreira Gullar,
Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho], Armando Costa, Paulo Pontes, Augusto Boal,
professora Geni Marcondes, Teresa Aragão, minha amiga e fada madrinha”; mas
também para tecer paralelos: “Esse dia marca minha vida (…) Foi no 13 de
Fevereiro que desfilei campeã pela Mangueira”. E isso já
em 2016, noutro século.
Sem
público, só com quatro músicos mas com a dignidade de sempre (foi transmitido
em directo pela GloboPlay), Maria Bethânia lembrou:
“Cantar hoje é importante. Segue o milagre. Penso no Brasil sem Carnaval, sem o
grande desfile, a folia em Salvador, penso no Recife, suas ruas lindas e
desertas.”
E
o que aconteceu nas ruas do Recife, num passado recente? Um terrível drama, que
ecoou no mundo em 2020: no início de Junho, um menino de 5 anos caiu do 9.º
andar de um prédio de luxo; era filho da empregada doméstica e tinha
ficado à guarda da patroa enquanto a sua mãe tinha ido à rua passear o cão dos
patrões, ele prefeito de Tamandaré e ela primeira-dama. Detida, por homicídio
involuntário, a patroa foi solta com uma fiança de 20 mil reais.
O
caso mexeu com a opinião pública, indignada. E Adriana Calcanhotto escreveu a partir dele uma canção: 2 de Junho.
Assim: “No país negro e racista/ No coração da América Latina/ Na cidade do
Recife/ (…)/ Miguel, cinco anos/ Nome de anjo/ Miguel Otávio/ Primeiro e único/
Trinta e cinco metros de voo/ Do nono andar/ Cinquenta e nove segundos antes de
sua mãe voltar/ O destino de Ícaro/ O sangue de preto/ As asas de ar.” Bethânia cantou-a agora, no vazio do Carnaval
que não houve. A mostrar que Opinião vive. Como os militares. Ou o racismo.
E
em seguida cantou Cálice, que Chico Buarque compôs em 1973 com Gilberto Gil (gravando-a depois com Milton Nascimento), canção
que espelha, como Gil explicou mais tarde na TV, “a ideia do sofrimento físico, pela tortura,
e a censura. O cálice de Jesus e o cale-se do verbo calar”; ou Meu amor é marinheiro, de Manuel Alegre, que Oulman
musicou para Amália
e a que Bethânia conferiu
uma euforia que tão bem soa no Brasil de hoje: “Hei-de passar nas cidades/ Como o vento nas
areias/ E abrir todas as janelas/ E abrir todas as cadeias// Meu amor é
marinheiro/ E mora no alto mar/ Coração que nasceu livre/ Não se pode acorrentar.”
Pelo
meio, a poesia profética de Cecília Meireles: “A
Primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite em
calendário, nem possua jardim para recebê-la.” Alguém
duvidará?
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BRASIL
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