quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Agilidade


Uma palavra que me acode à mente, tanto a propósito dos artistas e compositores de canções, a maioria de protesto, ou de conteúdo social, que Nuno Pacheco descreve nas suas actividades e mensagens de entretenimento, de momento confinado, é “agilidade”, tanto na referência a esses criadores de beleza ou conceito, como ao próprio Nuno Pacheco, que admiro, sobretudo na forma incansável que tem demonstrado a respeito de um ACORDO ORTOGÁFICO insensato e criador de discórdia e rejeição, embora sem resultado prático para uma inversão de rumo, num país de mansidão, que não é, todavia, sinónima de mansuetude. Por isso, transcrevo da Internet, a resenha biográfica de Nuno Pacheco, enquanto aprecio os seus dois textos sobre os vários artistas, como uma lição a reter, sobretudo pelos apreciadores de música:

«NUNO PACHECO

REDACTOR-PRINCIPAL

Integrar em 1989 a equipa fundadora do PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos grandes desafios da minha vida, faltavam ainda uns anos para o advento revolucionário da Internet. Que não mudou a essência do que acredito que deve ser o jornalismo: uma mistura de ética, arte e busca incessante do que é novo. E isso é inseparável do tratamento dado à palavra, na forma como se escreve uma história, se formula uma ideia, se incentiva um debate. Por isso sou defensor acérrimo da diversidade da língua portuguesa, nas suas riquíssimas variantes, e adversário do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de escrever sobre música brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês) da morte de Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para esta história.    tp.ocilbup@ocehcap.onun»

Agilidade, perícia, o contrário da nossa languidez, com ou sem confinamento…

I - Cultura-Ípsilon: MÚSICA

Rua das Pretas lança Um Copo de Fado, Dois de Bossa Nova

O projecto animado pelo cantor e compositor brasileiro Pierre Aderne lança finalmente o seu novo álbum, que está disponível a partir desta terça-feira nas plataformas digitais.

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 16 de Fevereiro de 2021

Começou pela divulgação de duas canções, em meados de 2020, e agora chega inteiro ao mercado digital. Um Copo de Fado, Dois de Bossa Nova é o novo álbum do projecto Rua das Pretas, lançado pelo cantor e compositor brasileiro Pierre Aderne, que teve por rampa de lançamento um concerto no dia 12 de Junho do ano passado, no palco do Coliseu de Lisboa, com os cuidados impostos pela pandemia.

Nessa altura foram disponibilizadas duas faixas, as primeiras do disco: A sombra do meu chapéu, numa parceria de Pierre Aderne e Gabriel Moura, e Lisboa de Janeiro, de Pierre Aderne. Mas só agora, apesar de ter sido gravado na totalidade em Fevereiro de 2020, é que o álbum nos chega na totalidade. Além das faixas já mencionadas, há ainda Meu Maracanã (outra parceria de Pierre Aderne com Gabriel Moura), Eu não sei compor um fado (Pierre Aderne), Dá-me a dança (Pierre Aderne), Nau-Frágil (de Pierre Aderne e Márcio Faraco, que já tinha sido gravada por António Zambujo), Fado sexta-feira (Pierre Aderne e Gastão Villeroy), A cor dos teus olhos (Francis Hime e Pierre Aderne), Desce um Carnaval (Pierre Aderne e Pedro Luís) e Rio de tanto ser (José Eduardo Agualusa e Pierre Aderne).

Além de Pierre, integram a “teia que une Brasil, Portugal e Cabo Verde neste disco” Nani Medeiros, Joana Amendoeira, Nilson Dourado, Walter Areia, João Pita, Eliane Rosa, Rui Poço, Stephan Almeida, Augusto Britto e o produtor musical venezuelano Hector Castillo.

O nome do projecto vem da própria rua, onde Pierre Aderne se instalou em Lisboa, depois de viver uns tempos no Poço dos Negros. Ali deu início a umas tertúlias musicais, juntando amigos em torno de canções e conversas, com comida e vinhos. Com o tempo, encontrou nova morada num palacete do Príncipe Real, mas o nome manteve-se. E, como Rua das Pretas, foi ali promovendo encontros regulares aos fins de tarde de sábado, passando por aquele espaço, só no primeiro ano, mais de 140 artistas e cerca de 4 mil participantes de 53 países. Enquanto isso, alargou-se a outros pousos: Porto, Paris, Nova Iorque e Madrid. E, em parceria com produtores de vinhos portugueses, lançou em 2018 um primeiro disco.

A pandemia da covid-19 veio alterar esta rotina, mas a Rua das Pretas não parou. Abriu como sala de concertos virtual, com bilheteira online, e fez temporadas com Pedro Luís (do Monobloco, do Rio de Janeiro), Pedro Miranda (do samba carioca, da Gávea), Nancy Vieira e, aos sábados, o colectivo Rua das Pretas. O palacete do Príncipe Real foi mantido sem público, mas as transmissões eram feitas directamente de lá, conseguindo, através de parcerias com produtores de vinhos portugueses gerar sustentabilidade para o projecto.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

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II - Cultura-Ípsilon:  OPINIÃO

O milagre de cantar, no país do (e agora sem) Carnaval

Maria Bethânia aproveitou o 13 de Fevereiro para trazer o espírito de resistência do espectáculo Opinião para os nossos dias.

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 18 de Fevereiro de 2021

Agora que o Carnaval se foi, sem sequer ter sido, as cinzas desse não-acontecimento resumem-se a pouco. Por cá, além de tímidas manifestações das máscaras por usar, e dos patrimonializados Caretos de Podence confinados a chocalhar às varandas, inventariam-se prejuízos. Já no Brasil, país do Carnaval por excelência, as imagens de gente que se mascarou para ficar em casa, numa folia domesticada a quatro paredes, dizem tudo. “É triste, mas é necessário.” Ninguém duvida.

Pois foi neste sábado de Carnaval sem Carnaval, 13 de Fevereiro, que essa extraordinária cantora que é Maria Bethânia reservou um palco para comemorar algo antigo, mas essencial na sua vida: o dia 13 de Fevereiro de 1965, quando Nara Leão (a braços com uma doença) a convidou para que a substituísse temporariamente no espectáculo Opinião, em cena no Rio de Janeiro desde 11 de Dezembro de 1964, meses depois do golpe militar que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart, no Brasil.

Foi essa a estreia profissional de Bethânia, e logo num teatro de resistência, que, como lembra o seu irmão Caetano Veloso no livro Verdade Tropical (1997), combinava “o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política.”

A recepção de Bethânia, ao lado de João do Vale e Zé Kéti, foi calorosa, e não tardou a gravar um álbum, contratada pela RCA. Mas insistiam em ouvir-lhe uma só canção: Carcará (“Pega, mata e come/ Carcará/ Não vai morrer de fome/ Carcará/ Mais coragem do que home”). “Levei mais de um ano cantando Carcará”, lamentou-se ela um ano depois, num filme que retrata esses dias: Bethânia Bem de Perto (1966), de Júlio Bressane e Eduardo Escorel (em DVD desde 2007).

Ora Bethânia, com a elegância e a argúcia que lhe conhecemos, recuperou a essência de Opinião. Não apenas para recordar esse “dia mágico”, esse “dia grande” para ela, ou para evocar, citando-a, “um show com assinaturas ilustres: Ferreira Gullar, Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho], Armando Costa, Paulo Pontes, Augusto Boal, professora Geni Marcondes, Teresa Aragão, minha amiga e fada madrinha”; mas também para tecer paralelos: “Esse dia marca minha vida (…) Foi no 13 de Fevereiro que desfilei campeã pela Mangueira”. E isso já em 2016, noutro século.

Sem público, só com quatro músicos mas com a dignidade de sempre (foi transmitido em directo pela GloboPlay), Maria Bethânia lembrou: “Cantar hoje é importante. Segue o milagre. Penso no Brasil sem Carnaval, sem o grande desfile, a folia em Salvador, penso no Recife, suas ruas lindas e desertas.”

E o que aconteceu nas ruas do Recife, num passado recente? Um terrível drama, que ecoou no mundo em 2020: no início de Junho, um menino de 5 anos caiu do 9.º andar de um prédio de luxo; era filho da empregada doméstica e tinha ficado à guarda da patroa enquanto a sua mãe tinha ido à rua passear o cão dos patrões, ele prefeito de Tamandaré e ela primeira-dama. Detida, por homicídio involuntário, a patroa foi solta com uma fiança de 20 mil reais.

O caso mexeu com a opinião pública, indignada. E Adriana Calcanhotto escreveu a partir dele uma canção: 2 de Junho. Assim: “No país negro e racista/ No coração da América Latina/ Na cidade do Recife/ (…)/ Miguel, cinco anos/ Nome de anjo/ Miguel Otávio/ Primeiro e único/ Trinta e cinco metros de voo/ Do nono andar/ Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar/ O destino de Ícaro/ O sangue de preto/ As asas de ar.” Bethânia cantou-a agora, no vazio do Carnaval que não houve. A mostrar que Opinião vive. Como os militares. Ou o racismo.

E em seguida cantou Cálice, que Chico Buarque compôs em 1973 com Gilberto Gil (gravando-a depois com Milton Nascimento), canção que espelha, como Gil explicou mais tarde na TV, “a ideia do sofrimento físico, pela tortura, e a censura. O cálice de Jesus e o cale-se do verbo calar”; ou Meu amor é marinheiro, de Manuel Alegre, que Oulman musicou para Amália e a que Bethânia conferiu uma euforia que tão bem soa no Brasil de hoje: “Hei-de passar nas cidades/ Como o vento nas areias/ E abrir todas as janelas/ E abrir todas as cadeias// Meu amor é marinheiro/ E mora no alto mar/ Coração que nasceu livre/ Não se pode acorrentar.”

Pelo meio, a poesia profética de Cecília Meireles: A Primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite em calendário, nem possua jardim para recebê-la.” Alguém duvidará?

tp.ocilbup@ocehcap.onun

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