terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Não será exagero?


A saúde mental parece-me que resulta sobretudo de princípios morais a incutir, numa sociedade que hoje muito se apoia em desvirtuá-los, numa pretensão de estender pela natureza inteira uma afabilidade que se retira muitas vezes aos seres humanos. De tal forma nos diminuímos, que por vezes os nossos filhos pequenos são chamados de “crias”, tais como as dos outros espécimes zoológicos, numa sofisticação sem dúvida bastante tola de falsa fraternidade universal. Mas o desequilíbrio na saúde mental, muitas vezes provém de falta de estímulo para a acção, para a leitura ou o trabalho, favorecedora de inércia que, com o tempo se agravará, sobretudo em alturas como esta, de crise pandémica. Por isso, puxemos a brasa à nossa sardinha, se formos médicos psiquiatras, apelando para que mais psiquiatras se estabeleçam neste manicómio da nossa surpresa.

OPINIÃO CORONAVÍRUS

Saúde mental: crónica de um investimento anunciado

Em diversos países europeus os enfermeiros de saúde mental desempenham um papel importante na promoção da saúde mental e até na intervenção precoce. Ignorar estes profissionais e a sua relevância, no contexto actual, será um erro histórico.

FRANCISCO SAMPAIO

PÚBLICO, 8 de Fevereiro de 2021

A pandemia da covid-19 trouxe ao de cima um conjunto de números: números de novos infectados, números de mortos, números de camas disponíveis nos hospitais, etc. E trouxe números sem rosto, sem narrativas por detrás, sem algo com que nós, seres humanos, sejamos verdadeiramente capazes de empatizar. Trouxe-nos, muito por culpa do sensacionalismo umbilicalmente ligado à “guerra das audiências”, o pior revivalismo da célebre frase atribuída a Estaline pelo jornal The Washington Post: “A morte de uma pessoa é uma tragédia. A de milhões, uma estatística.”

Porém, há um tema extremamente relevante e que não tem vindo a ser abordado com a atenção devida: a saúde mental no período pós-pandemia. No início de 2020 algumas vozes anunciaram, de forma alarmista e pouco baseada na evidência, que esta pandemia iria ter consequências catastróficas na saúde mental de todos. Percebemos hoje, claramente, pelos diversos estudos que têm vindo a ser conduzidos neste domínio, que essa “hiperpsiquiatrização” do fenómeno não corresponde à realidade. Na verdade, a maioria das pessoas conseguiu até adaptar-se ao dito “novo normal” preservando a sua saúde mental.

Embora a média, que se insere nos tais “números” com os quais somos diariamente bombardeados, indique que as pessoas tendencialmente se adaptaram, outras houve, sobretudo aquelas que já apresentavam alguns factores de vulnerabilidade, que tiveram na pandemia o gatilho para o adoecimento mental. Para isso, crê-se, em muito terá contribuído o confinamento, mas sobretudo o agravamento da situação social e económica de muitos por via do desemprego e/ou da perda de rendimentos. Infelizmente, no que diz respeito às consequências sociais e económicas da pandemia, estamos ainda longe de conseguir prevê-las na totalidade.

Aquilo que todos sabemos é que não pode acontecer com a saúde mental o mesmo que aconteceu com a preparação do sistema de saúde para o outono/inverno, ou seja, a estratégia para a saúde mental não pode ser definida em contra-relógio nem ficar apenas no papel. É hora de colocar em prática, no terreno, o Programa Nacional para a Saúde Mental 2007-2016, entretanto estendido até 2020, e que parece hoje pouco mais do que uma declaração de intenções tal a insuficiência da sua implementação no passado.

É por demais evidente que, para algumas pessoas, a pandemia terá implicações na saúde mental, sejam estas directas (por via do confinamento ou da morte de entes queridos), sejam estas indirectas (por via da perda de emprego e/ou de rendimentos). Portanto, quando chegar a dita “bazuca europeia”, é essencial que uma parte substancial da mesma seja canalizada, por exemplo, para a contratação de profissionais de saúde mental para os cuidados de saúde primários. De igual modo, é fundamental garantir os apoios sociais necessários às pessoas que se apresentarem em situação de maior vulnerabilidade já que, contrariamente à mensagem que tantas vezes se procura demagogicamente veicular, os apoios sociais trata-se de um investimento de inestimável valor para a sociedade e, concretamente, para a minimização dos efeitos da pandemia na saúde mental das pessoas.

No investimento a realizar importa apostar na contratação, por exemplo, de psicólogos clínicos, profissionais tão importantes mas também tão escassos no Serviço Nacional de Saúde. Porém, importa enfatizar que a prestação de cuidados de saúde mental não se circunscreve apenas a psiquiatras e psicólogos clínicos. A título de exemplo, os enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica encontram-se, não raras vezes, alocados a serviços e/ou actividades que nada têm que ver com a sua área de especialidade, representando assim casos de verdadeiro subaproveitamento de recursos humanos.

Em diversos países europeus os enfermeiros de saúde mental desempenham um papel importante na promoção da saúde mental, na promoção da literacia em saúde mental da população, na detecção precoce de sinais de alarme/alerta e encaminhamento para serviços de saúde mental, e até mesmo ao nível da intervenção precoce. Ignorar estes e outros profissionais e a sua relevância, no contexto actual, será um erro histórico e, acima de tudo, a perda de uma oportunidade única para garantir a melhoria da prestação de cuidados de saúde mental aos cidadãos.

Enfermeiro; Professor na Escola Superior de Saúde da Fundação Fernando Pessoa; Investigador no CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde; presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros

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