A saúde mental parece-me que resulta sobretudo
de princípios morais a incutir, numa sociedade que hoje muito se apoia em
desvirtuá-los, numa pretensão de estender pela natureza inteira uma afabilidade
que se retira muitas vezes aos seres humanos. De tal forma nos diminuímos, que
por vezes os nossos filhos pequenos são chamados de “crias”, tais como as dos
outros espécimes zoológicos, numa sofisticação sem dúvida bastante tola de
falsa fraternidade universal. Mas o desequilíbrio na saúde mental, muitas vezes
provém de falta de estímulo para a acção, para a leitura ou o trabalho,
favorecedora de inércia que, com o tempo se agravará, sobretudo em alturas como
esta, de crise pandémica. Por isso, puxemos a brasa à nossa sardinha, se formos
médicos psiquiatras, apelando para que mais psiquiatras se estabeleçam neste
manicómio da nossa surpresa.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
Saúde mental: crónica de um investimento anunciado
Em diversos países europeus os
enfermeiros de saúde mental desempenham um papel importante na promoção da
saúde mental e até na intervenção precoce. Ignorar estes profissionais e a sua
relevância, no contexto actual, será um erro histórico.
FRANCISCO SAMPAIO
PÚBLICO, 8 de Fevereiro de 2021
A
pandemia da covid-19 trouxe ao de cima um conjunto de números: números de
novos infectados, números de mortos, números de camas disponíveis nos hospitais,
etc. E trouxe números sem rosto, sem narrativas por detrás, sem algo com
que nós, seres humanos, sejamos verdadeiramente capazes de empatizar. Trouxe-nos,
muito por culpa do sensacionalismo umbilicalmente ligado à “guerra das
audiências”, o pior revivalismo da célebre frase atribuída a Estaline
pelo jornal The Washington
Post: “A morte de uma pessoa é uma
tragédia. A de milhões, uma estatística.”
Porém,
há um tema extremamente relevante e que não tem vindo a ser abordado com a
atenção devida: a saúde mental no período pós-pandemia. No início de 2020 algumas vozes anunciaram, de forma
alarmista e pouco baseada na evidência, que esta pandemia iria ter
consequências catastróficas na saúde mental de todos. Percebemos hoje,
claramente, pelos diversos estudos que têm vindo a ser conduzidos neste domínio,
que essa “hiperpsiquiatrização” do fenómeno não corresponde à realidade.
Na verdade, a maioria das pessoas conseguiu até adaptar-se ao dito
“novo normal” preservando a sua saúde mental.
Embora
a média, que se insere nos tais “números” com os quais somos diariamente
bombardeados, indique que as pessoas tendencialmente se adaptaram, outras
houve, sobretudo aquelas que já apresentavam alguns factores de
vulnerabilidade, que tiveram
na pandemia o gatilho para o adoecimento mental. Para isso, crê-se,
em muito terá contribuído o confinamento, mas sobretudo o agravamento da situação social e económica de muitos
por via do desemprego e/ou da perda de rendimentos. Infelizmente, no
que diz respeito às consequências sociais e económicas da pandemia, estamos
ainda longe de conseguir prevê-las na totalidade.
Aquilo
que todos sabemos é que não pode acontecer com a saúde mental o mesmo que
aconteceu com a preparação do sistema de saúde para o outono/inverno, ou seja, a
estratégia para a saúde mental não pode ser definida em contra-relógio nem
ficar apenas no papel. É hora de
colocar em prática, no terreno, o Programa Nacional para a Saúde Mental
2007-2016, entretanto estendido até 2020, e que parece hoje pouco mais do
que uma declaração de intenções tal a insuficiência da sua implementação no
passado.
É por demais evidente que, para
algumas pessoas, a pandemia terá implicações na saúde mental, sejam estas directas
(por via do confinamento ou da morte de entes queridos), sejam estas indirectas
(por via da perda de emprego e/ou de rendimentos). Portanto, quando chegar a dita “bazuca europeia”, é
essencial que uma parte substancial da mesma seja canalizada, por exemplo, para
a contratação de profissionais de saúde mental para os cuidados de saúde
primários. De igual modo, é fundamental
garantir os apoios sociais necessários às pessoas que se
apresentarem em situação de maior vulnerabilidade já que, contrariamente à
mensagem que tantas vezes se procura demagogicamente veicular, os apoios
sociais trata-se de um investimento de inestimável valor para a sociedade e,
concretamente, para a minimização dos efeitos da pandemia na saúde mental das
pessoas.
No
investimento a realizar importa apostar na contratação, por exemplo, de
psicólogos clínicos, profissionais tão importantes mas também tão
escassos no Serviço Nacional de Saúde. Porém, importa enfatizar que a
prestação de cuidados de saúde mental não se circunscreve apenas a psiquiatras
e psicólogos clínicos. A título de exemplo, os enfermeiros especialistas em
Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica encontram-se, não raras vezes,
alocados a serviços e/ou actividades que nada têm que ver com a sua área de
especialidade, representando assim casos de verdadeiro subaproveitamento de
recursos humanos.
Em diversos
países europeus os enfermeiros de saúde mental desempenham um papel importante
na promoção da saúde mental, na promoção da literacia em saúde mental da
população, na detecção precoce de sinais de alarme/alerta e encaminhamento para
serviços de saúde mental, e até mesmo ao nível da intervenção precoce. Ignorar
estes e outros profissionais e a sua relevância, no contexto actual, será um
erro histórico e, acima de tudo, a perda de uma oportunidade única para
garantir a melhoria da prestação de cuidados de saúde mental aos cidadãos.
Enfermeiro; Professor na Escola Superior de Saúde da Fundação Fernando
Pessoa; Investigador no CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e
Serviços de Saúde; presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem
de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros
TÓPICOS
COVID-19 SAÚDE SAÚDE MENTAL PSICOLOGIA CORONAVÍRUS DOENÇAS SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
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