quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Águas passadas


Desta história de JPP não gostei tanto como da anterior, julgo que, entre outros motivos, porque me lembrei do choque que sentira por aquela altura com o fuzilamento do casal Ceausescu, (como, de resto, sentiria, mais tarde, com o enforcamento de Saddam Hussein). A pena de morte, tendo sido abolida na generalidade do mundo em que vivemos, dificilmente me adaptaria a esse horror – embora nos preparemos para o retomar, sob uma capa, todavia, misericordiosa, como é a que (en)cobre a eutanásia. De toda a maneira, é uma página de História que gostei de rever, amortecido o horror com a borracha do tempo, e que complementei com a Wikipédia do nosso facilitismo.

OPINIÃO

Para não estarmos sempre a falar das mesmas coisas (2)

Em 1990, pouco depois da queda e da execução de Ceausescu, perdi a diplomacia numa reunião em Bucareste onde se discutia o futuro da polícia política.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 20 de Fevereiro de 2021

Pouco tempo depois da queda e da execução de Ceausescu participei numa delegação internacional que visitou a Roménia em 1990. Os acontecimentos do dia de Natal de 1989 ainda estavam encobertos por muitas obscuridades e não se sabia muito bem o que tinha acontecido no julgamento fantoche de Ceausescu e da mulher Elena, e a sua imediata execução por fuzilamento numa caserna em Targoviste, onde tinham sido presos depois de fugirem de Bucareste. Havia igualmente muita controvérsia sobre o papel da polícia política Securitate, na própria queda do regime, assim como dos soviéticos, que Ceausescu culpou no julgamento fantoche de serem os culpados do que lhe estava a acontecer. Havia também uma discussão em aberto sobre o futuro da Securitate, num regime que se apresentava como democrático.

Nesses dias de transição e durante alguns anos, os sucessores “democráticos” de Ceausescu, como Iliescu, mantinham muitas práticas autoritárias, perseguição de dissidentes, controlo do aparelho de Estado e da comunicação social, mas recebiam legitimação ocidental, principalmente no quadro das alianças militares com a entrada na OTAN em 2004 e, depois, na União Europeia. A Roménia, na verdade, não cumpria as condições para ser membro da União Europeia a que aderiu em 2007, mas, como se passou com outros Estados da Europa Central e do Leste, por razões geopolíticas os olhos fecharam-se.

Houve uma reunião no edifício do Parlamento em que participaram dirigentes romenos ligados à junta que derrubara o regime comunista, entre os quais Petre Roman, que ia suceder a Iliescu à frente do governo, e alguns deputados opositores ao novo regime. Quando se discutiu o papel da Securitate, que as novas autoridades queriam manter sob o pretexto de que o fariam apenas para os “serviços técnicos” e não para a parte de polícia política, eu fiz uma intervenção sobre o que acontecera à PIDE em Portugal. Referi que a PIDE fora colectivamente incriminada, sem qualquer distinção sobre as funções dos agentes, que, aliás, não podiam ser efectivamente separadas entre uma parte “técnica” e outra política. Fui omisso quanto às circunstâncias do modo como a maioria dos agentes tiveram a porta aberta para fugir e a escassez de responsabilização, mesmo nos casos mais graves, uma vergonha da nossa democracia. Mas insisti na responsabilização colectiva de uma associação de malfeitores como um modelo possível para a Securitate.

FOTO: Fotografia de agência a partir do filme feito pelos executores de Ceausescu e sua mulher Elena ARQUIVO EPHEMERA

Notei então uma certa agitação na sala, mas não lhe atribuí nenhuma importância. No dia seguinte, na continuação da reunião, as coisas começaram a aquecer. Sem eu saber, alguns dos presentes que eram contra a preservação cosmética dos “técnicos” da Securitate tinham saído da reunião e irromperam numa reunião destinada a discutir o futuro da Securitate, que formalmente ainda existia, apresentando o exemplo português do que acontecera com a incriminação colectiva da PIDE. Ao menos numa coisa, aliás das mais imperfeitas, a experiência portuguesa da revolução de Abril poderia servir para alguma coisa.

Só que na reunião estava outra personagem que até então permanecera silenciosa, Virgil Magureanu, um dos membros do tribunal que julgara Ceausescu e Elena, e então, informalmente, o chefe da Securitate. Ele pega num dossier e faz uma intervenção dirigida ao “português” (eu), negando que a PIDE tenha sido colectivamente extinta e incriminada e que, bem pelo contrário, como acontecia na Roménia, os “serviços técnicos” continuavam a funcionar.

Eu não sabia quem era a personagem, só soube depois, mas achei que aquilo era demais e perdi a diplomacia e disse-lhe que o que ele estava a dizer era tudo mentira. Na agitação subsequente, um dos participantes militares romeno resolveu acalmar as coisas prometendo-nos uma visita a Targoviste, para o dia seguinte. Eu calei-me e Magureanu também. Era uma magnífica proposta visto que não havia precedentes, que eu saiba, do local do julgamento e execução do casal Ceausescu ter sido visitado por observadores independentes, havia dúvidas sobre o fragmento de filme então realizado com o objectivo de mostrar que estavam realmente mortos, se fora ali a execução, e onde estavam os cadáveres. E lá fomos, mas isso é toda uma outra história.

A caminho do pelotão de fuzilamento, Ceausescu cantou A Internacional e Elena insultou as mães dos soldados. A Roménia, dias depois, aboliu a pena de morte, sendo os Ceausescu os últimos a serem executados.

HISTORIADOR

TÓPICOS

HISTÓRIA  EUROPA  ROMÉNIA  PIDE  COMUNISMO  DIPLOMACIA  BUCARESTE

COMENTÁRIOS

Makidada: EXPERIENTE: Gostei destas duas últimas crónicas, seria interessante que outros contemporâneos de JPP também começassem a fazer o mesmo. Porque não um programa de televisão entre estes protagonistas seniores? Por temas, não necessariamente cronológicos, podem ser temáticos: a gastronomia, a estupidez, a mentira, a vaidade, a beleza, a gaffe, o insulto, a cabala, etc, etc.              rafael.guerra EXPERIENTE: Envelopes no bolso ou por baixo da mesa, pequena e grande corrupção, têm sido moeda corrente na Roménia. País flagelado por uma corrupção selvagem após a praga do comunismo e de 3 séculos de domínio otomano. Há sinais de que as coisas estão a melhorar com a ajuda da UE. Infelizmente, o nacionalismo idiota também por lá está bem difundido, o qual traz benefícios apenas para quem vive dele. (PS: que prazer de ler JPP)       fernando f franco EXPERIENTE: Estas histórias da diplomacia pouco têm de verdadeiramente interessante, sobretudo quando narradas na primeira pessoa, pois parecem uma colecção de cromos que nos alimenta o Ego. Quanto ao episódio em si, de tão banal e frequente nas deposições de regimes, precisava de um bom acervo de ficção para o transportar para uma outra latitude, sei lá, talvez um certo atrevimento ideológico por parte de PP, quebrando a básica ideia de que de um lado estão os bons e do outro os maus.            pintosa INICIANTE: Surpreende-me que JPP tenha sugerido o modelo português de responsabilização colectiva da polícia política (PIDE/DGS), o qual nunca foi aplicado em mais país nenhum, nem às polícias das ditaduras comunistas, nem às das ditaduras fascistas e/ou militares! Pela simples razão de que sendo as polícias reguladas pelas leis dos Estados depostos, e não prevendo expressamente os seus Regulamentos a prática de crimes como tal universalmente considerados (assassinato, tortura, sequestro, etc), em si mesmas não eram consideradas criminosas face à lei que as criou, e não podem vir a sê-lo retroactivamente a não ser violando o artº. 8 da Declaração dos Direitos do Homem, segundo o qual "ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada ANTES do delito".       FPS INFLUENTE: Estas transições foram, e continuam a ser, histórias ainda mal e insuficientemente contadas ou, pelo menos, percebidas. O fuzilamento do casal Ceausescu, presumo, nunca vai ser completamente digerido e muito menos compreendido. E veremos como é que a Ucrânia vai resolver a sua transição que, com o regresso das políticas de Obama, as coisas podem mesmo complicar-se, e muito...     Paulo Batista EXPERIENTE: Gosto destas partilhas de JPP. Contudo não esqueça de ir fazendo a leitura do que se vai passando cá na paróquia pois precisamos do seu sentido analítico e crítico, independentemente de concordarmos mais ou menos.            Figueira da Foz EXPERIENTE: Quero também agradecer a partilha desta história. Ceratioidei MODERADOR: O JPP podia oferecer-nos um livro de memórias, que compraríamos com muito gosto. História viva contada na primeira pessoa. Interessante, informativo, enfim, excelente! Palavras para quê?

Maria Odete Vilas Coutinho MODERADOR: Ideia excelente. PP tem mundivivência, é culto, e não escreve mal; seria muito interessante poder ler as suas "aventuras políticas" sem ser a conta-gotas, aqui no jornal. De resto, identifico-o como uma das mais interessantes figuras contemporâneas, e espero ainda que a sua voz possa voltar a ser ouvida, em perímetros mais vastos...        M Cabral INICIANTE: Obrigado pela partilha de mais uma interessante história da História e pelo gosto de ouvir falar de "outras coisas".         Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Pacheco Pereira, da sua intervenção resultou de facto o quê? Conta uma história em que pretende passar por protagonista, mas que não passa afinal de um episódio anedótico, mais próprio de umas memórias biográficas que de um artigo de opinião.             pronouncer EXPERIENTE: Do texto resulta a tentativa de defender a face da Securitate com base numa mentira. Reflecte uma postura típica de espíritos totalitários e mafiosos. Se não lhe cheirou a isto, consulte um médico do nariz.           José Oliveira INICIANTE: Obrigado pelas belas histórias que nos conta.

 

NOTAS DA INTERNET:

Nicolae Ceaușescu

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Nicolae Ceauşescu (Scorniceşti, 26 de janeiro de 1918 Târgovişte, 25 de dezembro de 1989) foi um político romeno que serviu como Secretário-geral do Partido Comunista do seu país de 1965 a 1989, servindo também, a partir de 1974, como Presidente da República Socialista da Roménia. O seu governo ditatorial foi derrubado na Revolução de 1989.

Nascido em 1918 na cidade de Scornicești, no condado de Olt, Ceaușescu juntou-se, ainda na juventude, ao Partido Comunista Romeno. Ele foi subindo pelas patentes durante o governo socialista de Gheorghe Gheorghiu-Dej até que, quando este morreu, em 1965, Ceaușescu foi apontado seu sucessor como Secretário-Geral do Partido Comunista.

Ao subir ao poder, mostrando-se inicialmente como um moderado, ele aliviou a censura à imprensa e condenou a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia com um discurso em 21 de agosto de 1968, que fez com que sua popularidade aumentasse. O período de estabilidade, contudo, foi breve; o seu governo, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais autoritário e tornou-se um dos mais ditatoriais do Leste Europeu. A sua polícia secreta, a Securitate, era responsável pela vigilância em massa e repressão política, acusada de abuso de direitos humanos. O regime de Ceaușescu acabou por censurar a imprensa e fechar jornais com viés de oposição, criando um dos aparelhamentos de segurança interna mais brutais do mundo na época. Eventualmente, a má gestão económica levaria a um crescimento da dívida externa, colocando a economia romena num forte ciclo de recessão; em 1982, ele ordenou que quase todo o potencial agrícola e industrial produzido pelo país fosse exportado, com o objectivo de gerar renda adicional para pagar as dívidas da nação. Isso causou enormes escassezes de bens de subsistência, levando a subsequentes reduções nos índices de qualidade de vida, devido a falta de água, comida, petróleo e derivados, aquecimento, remédios, electricidade e outras coisas. Para tentar aparentar estabilidade, o culto da personalidade ao redor de Ceaușescu foi aumentado exponencialmente, acompanhado por um deterioração das relações internacionais e falta de apoio externo.

A partir de Dezembro de 1989, protestos anti-governo foram reportados em Timișoara. A resposta de Ceaușescu foi rápida e ele deu ordens para que as forças de segurança nacionais reprimissem os protestantes, levando a muitas mortes. As notícias da repressão levaram a mais manifestações e revoltas populares contra a ditadura em várias cidades do país. Os protestos eventualmente chegaram a Bucareste e a revolta generalizada viria a ser conhecida como Revolução Romena — tornando-se o único derrube violento de um regime comunista durante as revoluções de 1989 pela Europa Oriental. Ceaușescu e sua esposa, Elena, fugiram do sitiado palácio do governo e evadiram-se da capital num helicóptero militar, mas foram logo capturados por tropas do exército romeno que haviam passado para o lado dos revolucionários. Em 25 de Dezembro, com o país mergulhando no caos, Ceaușescu e sua esposa foram rapidamente julgados por "sabotagem económica e genocídio", sendo então sumariamente executados por um pelotão de fuzilamento. Ceaușescu foi sucedido no poder por Ion Iliescu, um dos líderes da Revolução.

 

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