segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Da incúria ao descaramento


Geralmente sinónimos.

 Um texto – de Helena Garrido - a reler… e a meditar: Da cepa torta de que nunca sairemos, buracos que tapamos com os remendos que usamos, que esgarçarão até nova remessa que receberemos, de quem naturalmente se cansará de acudir, que não merecemos… E cada um interpretará como mais gosto lhe der… ou dará… até ver…

Mais analgésico do que vitamina no PRR/premium

O Plano de Recuperação e Resiliência será mais analgésico do que vitamina. Promete tratar feridas antigas e há investimentos que trarão mais despesa. Só por milagre aumentaremos o crescimento potencial

HELENA GARRIDO

OBSERVADOR, 22 fev 2021

É difícil encontrar um raciocínio no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que nos permita alimentar a perspectiva de um crescimento económico mais elevado e menos desigual do que no passado. O que vemos no PRR que estará em debate público até dia 1 de Março é demasiado dinheiro para os problemas do costume para onde já foi deitado muito dinheiro ou onde nada se fez aparentemente por falta desse dinheiro. E há promessas que, a serem cumpridas, exigem ainda mais despesa pública. Não é certo que deste plano possamos esperar mais prosperidade.

Dos cerca de 14 mil milhões de euros em subsídios, 60% será aplicado na componente de Resiliência, 20% na Transição Climática e outros cerca de 20% na Transição Digital. Os recursos, no quadro das regras europeias terão de estar comprometidos ou aplicados até 2026. Os planos terão de estar em Bruxelas até dia 30 de Abril, a Comissão terá dois meses para se pronunciar e o Conselho decide no prazo de um mês. Com este calendário que se pode ver aqui, estará tudo decidido algures em Julho e os 13% do montante total previsto no plano deverá ser desembolsado em Agosto.

Além do montante que lhe foi distribuído a título de subvenções, Portugal pode também aceder a empréstimos que o Governo ainda não decidiu se fará. No PRR em debate público há três investimentos, no montante global de 2,7 mil milhões de euros, que ficam condicionados à decisão de aceder aos empréstimos. Neste grupo estão 1250 milhões de euros para o Banco Português de Fomento, que tem como objectivo financiar empresas para restabelecer a sua autonomia financeira; pouco mais de mil milhões de euros para habitação a custos acessíveis e para alojamento estudantil; e 300 milhões de euros para adquirir locomotivas.

Em termos gerais, quando lemos o PRR, concluímos que estamos a resolver problemas básicos ou estruturais do país. O PRR coloca em questão a eficácia das políticas públicas seguidas até agora e expõe o défice de investimento público ou a sua total ineficácia. Há compromissos que envolvem mais despesa pública e recursos que não sabemos se vamos ter como na saúde –, há medidas para combater a pobreza que replicam as que já existem, há projectos para resolver problemas que se arrastam como a prevenção de fogos ou a falta de água - e até há dinheiro para a “sustentabilidade das finanças públicasque debatemos há duas décadas.

Teremos dinheiro para depois?

Comecemos pelo caso da Saúde. Ninguém pode estar em desacordo com a ambição que está no Plano, mas, mais uma vez e tal como no passado, onde estão as contas sobre os efeitos em matéria de aumento de despesa corrente que essas medidas vão gerar? Promete-se, por exemplo, rever a carteira de serviços nos cuidados primários criando gabinetes de medicina dentária, centros de diagnóstico e respostas para a reabilitação. Nos cuidados continuados, prometem-se mais 5.500 camas, mais 1.000 lugares no domínio da saúde mental e 50 equipas domiciliárias. São apenas alguns exemplos, sem que se perceba como se vão garantir esses serviços. Porque o dinheiro do Fundo europeu dará para lançar a oferta, mas não para manter a contratação de pessoas e a manutenção dos edifícios e equipamentos. Vale, no entanto, a pena sublinhar que se contabilizaram recursos para a digitalização da saúde.

Nas designadas “Respostas Sociais” coloca-se exactamente a mesma questão. Promete-se “alargar a rede de equipamentos e respostas sociais ao nível da infância, pessoas idosas e pessoas com deficiência ou incapacidades” garantindo mais 28 mil lugares assim como criar “equipas multidisciplinares de intervenção social” para todo o país. Onde é que haverá recursos depois, no Orçamento do Estado, para garantir que isto funciona?

Dinheiro em cima de políticas públicas?

O combate à pobreza é uma das componentes que exemplifica a falta de avaliação das políticas públicas. As verbas envolvidas não são significativas, mas justificavam que se reflectisse sobre a forma como está a funcionar o Rendimento Social de Inserção (RSI). Para os Açores, um dos territórios em que não se consegue garantir a eficácia do pilar da Inserção do RSI, prometem-se agora medidas para essa inserção com um montante de 35 milhões de euros.

Igualmente na eliminação das bolsas de pobreza em Lisboa e Porto, a actuação, e bem, passa pela formação profissional e qualificação de adultos. Mas não valia a pena perceber porque é que essas mesmas políticas não estão a produzir resultados?

Corremos um risco sério de continuar a fazer exactamente o mesmo o que, obviamente, nos garante os mesmos resultados que têm sido maus.

A resolver problemas adiados

Depois temos os recursos para problemas que nunca conseguimos resolver. Um deles é a habitação com preços acessíveis para a classe médias, que nos últimos anos tem estado no Orçamento do Estado sem que nada se concretize, aparentemente por falta de dinheiro. Mas há mais e mais preocupante.

Um dos casos é o da “componente florestal”. A proposta do Governo é que tenha 665 milhões de euros, dos quais 259 milhões (quase 40%) destinam-se a prevenir ou combater incêndios. É impossível não nos lembrarmos do que foi anunciado esta semana: a Infra-estruturas de Portugal vai gastar 1,8 mil milhões de euros para se construir um lago artificial em homenagem às vítimas dos incêndios de Pedrogão Grande. Quem passar pelas regiões que arderam pode verificar que muito pouco foi feito e vamos gastar num lago mais do dobro do que se pretende investir na floresta com dinheiro europeu. E não, não é populismo, é saber gerir o pouco dinheiro que temos.

É também com dinheiro do Fundo europeu que pretendemos fazer o cadastro da propriedade rústica.

Olhemos agora para a componente hídrica, que é um exemplo do que já devíamos ter feito e que o défice de investimento tem impedido. Quase metade dos 441 milhões de euros vão para o que é designado como “plano de eficiência hídrica do Algarve”, ou seja, vamos usar o dinheiro do Fundo de Resiliência e Recuperação para resolver um problema de falta de água no Algarve que se arrasta há anos e que não se resolve por falta de investimento público.

Muitas finanças públicas, pouca justiça?

Finalmente uma das componentes que causa perplexidade: “qualidade e sustentabilidade das finanças públicasonde o Governo quer usar pouco mais de 400 milhões de euros, quase 3% dos fundos. Desde o início do século XXI, desde a famosa frase de Durão Barroso que nos disse que o País estava de tanga, que não falamos de outra coisa que não seja de finanças públicas. (Aliás, já no caminho para o euro, em 1999, o tema era esse). De repente descobrimos que é preciso investir, de forma autónoma, para conseguir ter as contas públicas bem geridas. Uma parte desse dinheiro vai para os sistemas de informação de gestão financeira e outra para a autoridade tributária. Finalmente há uma verba, quase metade do total, para a transição digital da Segurança Social. Não se percebe a razão desta autonomia, uma vez que a Administração Pública é uma das componentes do plano, ficando com 25% da verba para a transição digital.

A área que parece ter sido desvalorizada, tendo em conta a verba envolvida, é a Justiça: tem 1% das verbas previstas para a transição digital e não se identifica em mais nenhuma outra componente. Levando em conta que um dos critérios de avaliação do PRR dos Estados-membros passa pelas recomendações feitas pela Comissão Europeia, no âmbito do Semestre Europeu, este pode ser um problema.

Nas recomendações do Conselho de Maio de 2020 diz-se explicitamente que Portugal precisa de “aumentar a eficiência dos tribunais administrativos e fiscais”. E esta é uma recomendação que se repete há anos. Será essa verba suficiente?

Em termos gerais, a principal perplexidade do PRR apresentado pelo Governo é a ausência de uma linha de raciocínio que nos permita perceber como é que estas medidas vão garantir um crescimento mais robusto e menos desigual. As medidas associadas à transição climática e digital estão em linha com o que pretende a União Europeia e com o que se perspectiva que seja o desenvolvimento. Mas quer nesses pilares como na resiliência há investimentos que são mais analgésicos do que vitaminas, que tratam antes feridas crónicas e antigas que, eventualmente, podem ou não aumentar o nosso crescimento potencial.

Infelizmente para nós precisamos muito mais do que dinheiro para crescer mais, precisamos do que é mais difícil, mais organização e gestão. E só por milagre o PRR nos vai trazer essa nova cultura que exigia aquilo de que este Governo não gosta, reformas estruturais. Teremos mais uma oportunidade perdida, um balão de oxigénio para tapar buracos. Esperemos que não seja assim, que seja apenas pessimismo.

CRESCIMENTO ECONÓMICO  ECONOMIA  PACTO DE ESTABILIDADE E CRESCIMENTO  UNIÃO EUROPEIA  EUROPA  MUNDO

COMENTÁRIOS

COMENTÁRIOS

Adelino Lopes:  “precisamos do que é mais difícil, mais organização e gestão.”? Espero que na gestão se encontrem os estudos de viabilidade económica. Mas o mais importante do que aqueles 2 parâmetros é o planeamento. Sem planeamento, não há plano que resista. E este plano PRR é mais um plano tipo “plano de vacinação”; atiram-se as vacinas ao ar e quem conseguir que as agarre. E portanto, esperar o quê? Que ocorra um milagre? Meu Deus.        João Freire: Li o PRR. Quis comentar! Não consegui. Canalizar a quase totalidade dos recursos para o Estado? É o Estado que cria riqueza? Como é possível não perceber que o sector privado é que cria riqueza que possa, depois (não antes!) ser distribuída? Não o saberá o Dr António Costa? Ou prefere-se ao futuro do País? É importante que a próxima falência seja percebida pelo povo: durante uns tempos não se paguem salários ao sector público nem pensões. Quando o povo finalmente perceber o que quer dizer o País falir, pode ser que consigamos progredir, afastando do poder esta esquerda não séria e irresponsável. Talvez assim valha a pena aos meus filhos e netos apostarem em Portugal - opção difícil nestes dias de clareza do precipício onde todos vamos cair. Triste quando, ao reflectir Portugal, me vem sempre à memória a grande música dos Pink Floyd “Comfortably Numb” (confortavelmente entorpecido).                   josé maria > João Freire: Li o PRR. Você também deve ser como a Helena do Restelo, só leu a primeira página do relatório, esqueceu-se das restantes 65 e depois vêm para aqui falar do que desconhecem.              Adelino Lopes > João Freire: Uma pequena correcção se me permite. Eu acredito que existem umas verbas para os privados, ou para as empresas, mas só para os privados “bons”, ou para as empresas “boas”; tipo “TAP”. Os que não provarem serem “bons”, ou seja, são “maus” ficam de fora  a sofrerem concorrência desleal.           Joaquim Moreira: Apesar do erro de cálculo no que diz respeito à relação entre os gastos com o lago de Pedrógão Grande e o investimento previsto com dinheiro europeu na floresta, faz todo o sentido estas suas, mais do que uma preocupação, mas o mais importante é mesmo a conclusão: Infelizmente para nós precisamos muito mais do que dinheiro para crescer mais, precisamos do que é mais difícil, mais organização e gestão. E só por milagre o PRR nos vai trazer essa nova cultura que exigia aquilo de que este Governo não gosta, reformas estruturais. É exactamente por isso que os portugueses, se devem preparar para votar no político que não tem nada a ver com estes que “são todos iguais”. Começando, por dar o sinal, de que é preciso um novo Governo, que defenda o interesse nacional. Antes que aconteça uma desgraça ainda maior em Portugal.                 Manuel Ferreira21: Excelente resumo.  Tenho quase a certeza de que o multiplicador do pseudo investimento seja próximo de zero ou negativo, equivalente a gastar em rotundas. Era preferível agarrar no dinheiro e dá-lo a todos os que perderam na pandemia e deixar a sociedade e a economia em liberdade a escolher o melhor caminho. Vão criar mais despesa pública e monstros como o banco de fomento, quando a europa toda assiste a um movimento de fusão de bancos. Vamos ficar mais inviáveis economicamente como Estado independente, vamos ser um Rabo de Peixe em grande a viver de subsídios da U.E. e os jovens vão em massa emigrar com a "mala de cartão". Não se queixem, os Portugueses assim quiseram ao votar no Costa.           josé maria: A Helena do Restelo só deve ter lido a primeira página do PRR, não teve tempo para ler as restantes 65. A pressa de dizer mal do governo, a qualquer custo, é tanta que pouco lhe importa o que consta nas demais páginas do Programa.             advoga diabo: Quando por tudo e por nada, sem razão ou com ela, recorrentemente se repete o mesmo discurso, o efeito é ficar a falar sozinho ou para uma clientela que, paulatinamente, deixará de ouvir wishful thinking's.           Mario Silva > advoga diabo: Esse comentário assenta que nem uma luva às dezenas de comentários que a "Ana Ferreira" publica diariamente no Observador.             Francisco Tavares de Almeida: A autora aponta o óbvio (o que já não é nada mau). Durante anos os subsídios da Europa provocaram o crescimento da respectiva administração, isto é, do Estado na vertente mais burocrática. Agora vem aí um super subsídio que na maior parte se aplicará ao próprio Estado o que resultará num enorme aumento do Estado. Já conhecemos o socialismo por via revolucionária, o socialismo por via fiscal e regulatória, agora teremos o socialismo subsidiado..., ou alavancado como gostam de dizer os economistas.                Manuel Magalhães: A proposta de Portugal para o tal PRR é mais uma prova do manobrismo e incompetência do actual governo, o que o governo pretende no fundo é tentar tapar os buracos que abriu durante os últimos 5 anos e fazê-lo com dinheiros que lhe são oferecidos e portanto sem qualquer mérito seu, quanto ao desenvolvimento do país isso é o que menos lhes interessa, apenas fará o que lhe for mesmo obrigado e vamos ver em que medida o cumprirá e, pelos exemplos que temos tido temos todas as razões para duvidar...              Alberto Gonçalves Lambetraseiros: A culpa de toda esta miséria é do Passos Coelho que em 2011 se aliou à extrema-esquerda para deitar abaixo o governo com o PEC 4 e assim ele poder chegar ao pote, como tanto queria.             bento guerra: Eu chamar-lhe-ia bronzeador solar. Sai com boa lavagem, depois de alteração que é temporária               Alexandre Areias: Faltou dizer o mais importante, é que não só toda esta bonança vai ser mal aplicada, isto é sem qualquer lógica ou fio condutor, sem qualquer rigor ou organização, mas também que a falta de rigor e organização advém do propósito claro de fazer o dinheiro seguir para as mãos e bolsos do costume. No fundo mais um balão de oxigénio para alimentar a ganância do sistema mafioso que nos domina.             Gonçalo Rebelo Pinto: Não são 1,8 mil milhões mas sim 1,8 milhões.              António Duarte: Ao ler estes artigos lembro-me sempre de Einstein: loucura é bater uma vez com a cabeça na parede e partir aquela e voltar a fazer o mesmo pensando que desta vez derrubará esta última. O Costa já foi secretário de estado várias vezes e ministro várias vezes também, em áreas diversas (administração interna justiça, relação parlamentar etc.) e em governos que sempre fizeram mais do mesmo e os loucos que somos (a maioria de nós, entenda-se) esperam que desta vez ele fará as coisas bem depois de sucessivamente ter partido a cabeça contra a parede (a última cabeçada está em andamento e não necessita de mais explicações). Enfim, somos uma democracia onde os loucos predominam, pelo que nada há a dizer a não ser esperar sentado a ver o autocarro a despenhar-se.               Daniel Rodrigues: Excelente artigo!: Só uma breve nota, está indicado que o custo do lago serão 1.8 mil M de euros. Naturalmente, são uns igualmente absurdos 1.8 M Eur.              Paulo J Silva: Sim, o PRR vai ser mais uma oportunidade perdida porque do lado do Governo não há vontade nem competência para promover reformas estruturais. E sim, este dinheiro será apenas um paracetamol para atenuar a dor provocada pelo cancro que é esta esquerda.            Hugo F.: Bom dia. Corrijam sff a parte da noticia relativamente ao custo do lago artificial. A autoria queria escrever 1,8 milhões de Euros.

 


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