Desencanto era no tempo de Camões, por conta
dos seus males de amores, em que nestes tempos de covid nem lembra ao diabo praticar, cuido eu, por via das contaminações. Se o recordamos, é mais para amenizar este
clima de perturbação em que navegamos, e que em nós se acentua, com o escândalo
de largar a poia dessa esquerda futilmente apressada, que acrescentou à
violência de uma pandemia demoníaca, a alarvidade traiçoeira da decisão a
respeito da despenalização da eutanásia, que Paulo
Rangel bem condena, juntamente com o frisar do atabalhoamento
governativo na gerência da covid e da economia, provavelmente com as excepções habituais
de favorecimento próprio. Sim leiamos o sofredor Camões, para amenizar este clima abafado
do nosso horror prisioneiro:
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não dissesse
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,
Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos. Luís de Camões
Um país a precisar de “cuidados intensivos”
Se os Presidentes forem mais exigentes
e críticos, os governos actuam melhor. A distância crítica do Presidente é do
interesse nacional.
PÚBLICO, 2 de Fevereiro de 2021
1.Não há como iludir, não há como
enganar, não há como fazer de conta. Este é o pior momento da vida portuguesa –
o mais grave, o mais duro, o mais difícil – desde a revolução de 25 de Abril de
1974 ou, pelo menos, desde a entrada em vigor da Constituição. O momento nacional é aflitivo. Há mais de uma
semana morrem mais de 250 portugueses por
dia devido à
pandemia. Morrem muitos outros, também em claro excesso, por causas não
identificadas, que são resultado indirecto da pandemia. Os hospitais estão sobrelotados, em profundo esforço, resistindo para lá de todos os limites. Os médicos e
os cientistas fazem há meses apelos diários, que se tornaram lancinantes nas
últimas semanas.
Sem
que ninguém perceba como é possível, os lares de idosos continuam a ser foco de surtos um pouco por todo o
país. A grande massa dos cidadãos oscila entre o medo e o cansaço. Velhos e
jovens sofrem o drama do confinamento. Os mais velhos temendo a doença e a
morte, lamentando a perda ou o congelamento dos seus últimos anos de vida. Os
mais novos são largamente privados do convívio e do contacto físico, das
aprendizagens escolares até aos tempos de lazer. No meio, ficam as gerações de
média idade, que não deixarão de pagar em saúde mental a factura pesada das
privações, dos lutos, das perdas económicas.
A
actividade comercial, já muito afectada e a funcionar com restrições, está
basicamente parada, com excepção dos sectores de bens e serviços essenciais. O
turismo, a hotelaria e a restauração sucumbiram forçadamente à pandemia. A contracção económica é evidente. O número de
sem-abrigo nas cidades aumenta diariamente e é visível a olho nu. Os
desempregados e os inactivos proliferam. As escolas tiveram de interromper a
sua actividade. Apesar do enorme tempo de preparação para os cenários
de agravamento da situação e das promessas estivais de uma revolução digital na
escola, o Governo não tinha nenhum plano de contingência, nenhuma solução alternativa. O mesmo vale para os tribunais e o sector da
justiça, onde, mais uma vez, ninguém ousou pensar em planos de contingência
para confinamentos parciais ou totais de segundas ou terceiras vagas. No mundo
dos tribunais, reina a balbúrdia e a confusão, sem que ninguém saiba
exactamente que processos e que prazos estão suspensos; que diligências podem
ter lugar; quais as que podem fazer-se física ou digitalmente.
Vivemos uma crise sem paralelo. O
Governo, designadamente por uma absoluta incapacidade de previsão, planeamento
e preparação, não está à altura da gravidade das circunstâncias.
Esta generalizada falta de planeamento e preparação, em todas as
áreas da governação, aumenta enormemente a ansiedade e o temor dos cidadãos. A
tudo isto acresce a óbvia improvisação em matéria de estratégia de vacinação. O modo como se deixou para trás os
maiores de 80 anos que não
residem em lares ou os profissionais de saúde do
sector privado era
inexplicável. A pressão
da opinião pública e das instituições europeias forçou mudanças nas
prioridades, mas com custos no plano da confiança e a nível operacional. O
florescimento de casos de oportunismo e abuso ilustra também as falhas de
organização e de transparência da estratégia de vacinação. A andar assim, ainda
terminamos no já proverbial “salve-se quem puder”.
2. Muito
mais se poderia dizer, mas o ponto é um só e só este: vivemos uma
crise sem paralelo. O Governo,
designadamente por uma absoluta incapacidade de previsão, planeamento e
preparação, não está à altura da gravidade das circunstâncias. Diante de
críticas justas e pertinentes, as mais das vezes feitas com intuito
construtivo, o Governo responde à moda venezuelana, apelidando os críticos
de “criminosos” ou de “conspiradores”. Perante um quadro deste calibre, no
sistema constitucional e político português, avulta
uma instituição: a
instituição presidencial. Não é
decerto por acaso que a Constituição entrega directamente o poder de decretar o
estado de emergência ou o estado de sítio ao Presidente da República. Sublinho:
entrega-o ao chefe de Estado, não o comete ao Governo. Registe-se, aliás, para demonstrar a singularidade e
a dimensão sem precedentes da crise – também no plano político e institucional
– que nunca se havia decretado o estado de excepção desde 1976. Agora,
de uma assentada, e sem lhe ver o fim à vista, já lá vão dez
declarações de estado
de emergência. É este,
juntamente com o poder de dissolução do Parlamento (a dita “bomba atómica”), o
poder mais importante do Presidente. E, na intenção original da Constituição,
era um poder que punha mesmo o Presidente ao leme das operações. Depois disso,
por via de emenda constitucional, promoveu-se a confusão na divisão de
competências e responsabilidades.
3. Mas com melhor ou pior texto,
com melhor ou pior interpretação, a constituição não é só texto. Em tempos de
crise, o Presidente tem um papel activo e insubstituível. Quando o Governo dá
sinais ostensivos de falhar e de sucumbir, seja por incompetência, seja por
desgaste, o Presidente não pode estar inerte. A melhor forma de cooperar com o
Governo, de o obrigar a dar respostas, é manter a distância institucional e ser
exigente com ele. Mesmo em tempos de crise, a exigência e a vigilância activa
do Presidente favorecem e estimulam um melhor desempenho do executivo.
Ao Presidente pede-se seguramente
solidariedade e até lealdade institucional; mas também se pede que guarde
distâncias e que se assuma como a reserva última do sistema político. Para
isso, não deve tomar como suas culpas que não tem; não deve caucionar toda a
decisão ou omissão do executivo; não deve aceitar aparecer como “fundido” com
ele. A legitimidade do Presidente é própria e é directa, justamente para não se
confundir com a do Governo, que é parlamentar e indirecta. Escrevi-o, também neste espaço, louvando Soares e
criticando as doutrinas de Sampaio e de Cavaco, que julgando que ajudavam os
governos da época, estavam a premiar a sua inércia e a sua insensibilidade à
crítica. Se os Presidentes forem mais exigentes e críticos, os governos
actuam melhor. A distância crítica do Presidente é do interesse nacional.
SIM E NÃO
SIM Governos
austríaco e alemão. Ao se disponibilizarem para ajudar
Portugal e os portugueses a enfrentar as terríveis
consequências da pandemia, dão um exemplo do que deve ser e é a solidariedade
europeia.
NÃO Assembleia da República. A legalização da eutanásia é um retrocesso
civilizacional perigoso. Mas pense-se o que se pensar, não podia haver pior
contexto para fazer aprovar uma lei com este conteúdo e intuito.
Eurodeputado (PSD)
TÓPICOS
GOVERNO OPINIÃO PORTUGAL PANDEMIA PRESIDENTE DA REPÚBLICA VACINAS SAÚDE
COMENTÁRIO: cisteina:
EXPERIENTE: Mas será que alguém ouve e reflecte no que aqui
escreve? Talvez que agora o PR, cujo objectivo foi atingido, perceba que deve
mudar de táctica e assumir o seu poder, já chega de moderação, o tempo é de actuação
exigente e um grande puxão de orelhas à teimosia, por este andar acordamos
embasbacados num buraco que, dia a dia, se vai alargando e afundando.
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