domingo, 28 de fevereiro de 2021

Reflexão


Para reflectir e curtir. Como habitualmente. Com António Barreto, a quem agradecemos a análise ponderada, como sempre. E num português bonito de se ler.

OPINIÃO:         Ainda as duas esquerdas

A esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Mas sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no universo esquerdista.

ANTÓNIO BARRETO               PÚBLICO, 27 de Fevereiro de 2021

Por vezes, as grandes crises são propícias às transformações. A actual pandemia é disso um bom exemplo. Aliás, mesmo antes de esta última se ter revelado, já havia sinais de que se preparava uma reconfiguração da política portuguesa. Havia sinais inconfundíveis. O declínio assustador da direita democrática e da democracia cristã. A decadência do centro social-democrata. A frenética ascensão da extrema-direita e do Chega. O imobilismo comunista. A deriva da esquerda radical não comunista. O desenvolvimento das tendências e das “sensibilidades” socialistas. E a proliferação de pequenos partidos.

O protagonismo do Presidente da República acrescentou uma nota consistente e um peso específico próprio com o qual teremos de contar durante os próximos anos. Na sociedade em geral, no mundo sindical, nos meios católicos, nos ambientes maçónicos, nos círculos profissionais e no universo intelectual, surgem fenómenos inéditos que não desmentem a descrença política e sugerem novas afirmações políticas.

Por enquanto, em Portugal, a pandemia tem favorecido o que está estabelecido, o statu quo e o poder do dia. E tem beneficiado os socialistas. Não se sabe por quanto tempo. Por isso, com a necessidade de aprovar três novos orçamentos, com a aproximação das eleições autárquicas e já com as legislativas (antecipadas ou não) no horizonte, a urgência de revisão política é total. Tanto nas esquerdas como nas direitas.

Estranhamente ou não, a esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Aos outros, na oposição, nas margens e nas extremas, compete o mais difícil: reconquistar, reorganizar, renovar e consolidar. Mas a esquerda sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no universo esquerdista. E aqui surge, uma vez mais, a necessidade de clarificar as semelhanças e as diferenças entre as duas esquerdas.

Há muitos anos, mais de um século, as divisões dentro das esquerdas são conhecidas. Martov e Kerenski, por um lado, Lenine e Trotski ou Estaline, por outro, representam boa parte dessas diferenças. Que atingiram estados elevados de violência, como é sabido: o assassinato de milhares de socialistas pelos bolchevistas constitui ainda hoje inesquecível marco.

Antes e depois deles, na Rússia e alhures, as discussões dentro das esquerdas nunca foram suaves. Karl Kautsky e Eduard Berenstein protagonizaram visões moderadas do socialismo. Tal como Ebert, na Alemanha, Leon Blum, em França, ou os trabalhistas ingleses Attlee, Bevin e Bevan. Enquanto os comunistas desses países se constituíram depositários do poder soviético e da tradição autoritária e despótica da esquerda.

Em todas as esquerdas europeias, passando pelas alemãs, as suecas, as italianas e as espanholas, encontramos fenómenos semelhantes: desde a segunda metade do século XIX e, até há bem pouco tempo, as separações dentro das esquerdas foram sempre um capítulo fundamental, muitas vezes violento, da história política europeia. Por exemplo, os confrontos entre as duas esquerdas, em plena guerra civil espanhola, ficaram para a história. Mais perto de nós e sem o carácter sangrento de outras paragens, o confronto entre socialistas e comunistas, ou entre Soares e Cunhal, transformou-se no mais sério contributo dos portugueses para a história política das esquerdas na Europa.

A associação do PS às esquerdas radicais (PCP e BE), no Parlamento e no governo, já criou uma situação inédita que dura há quase seis anos. Na crise actual, já se percebeu que as coisas não ficarão como estão ou como têm sido. E o que está em causa é muito importante. Juntam-se finalmente as esquerdas democráticas e as não democráticas? Separam-se de vez? A esquerda democrática consegue atrair e digerir as esquerdas não democráticas? Ou estas últimas obtêm a vitória histórica de mudar e dominar os socialistas democráticos?

Os socialistas têm o benefício das opiniões e dos votos. Por enquanto. Fortemente identificados com a Europa e a democracia (e a Aliança Atlântica), mostram vantagem. Mas a sua vulnerabilidade diante dos negócios, dos grandes grupos económicos, da corrupção e do jacobinismo abre-lhe um flanco mais fraco. Tal como a sua dificuldade em combater a desigualdade e em alicerçar uma aliança durável com o mundo do trabalho. Dependentes das outras esquerdas, os socialistas, para ganhar, podem ter de vender alma e doutrina.

Na sua melhor tradição, os socialistas opõem-se aos métodos revolucionários, ao terrorismo, à violência, à colectivização, à destruição da iniciativa privada, à opressão da Igreja, ao monopólio do Estado na educação e na saúde, à aniquilação das Forças Armadas e a formas de governo não democráticas e não parlamentares. Mas também sabem que nas esquerdas há muito fortes tendências exactamente contrárias, com especial inclinação para destruir o mercado livre e a iniciativa privada, com um estranho afecto por formas “populares” de governo, com a obsessão do monopólio do Estado e com uma absoluta aversão pelo investimento privado. Estão ainda conscientes de que as esquerdas radicais têm uma concepção elástica dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos cívicos e políticos; assim como têm convicções condescendentes sobre a guerra civil e a luta das classes, a violência e o terrorismo (se este for de esquerda, das minorias, de tudo quanto é anti-capitalista ou anti-americano…) contrárias às tradições socialistas. Como é sabido que nas esquerdas vegeta uma grande complacência, quando não admiração, por formas de governo muito especiais, como sejam as do despotismo tropical latino-americano, as das ditaduras militares africanas e asiáticas, as das burocracias parasitárias africanas e árabes, as dos movimentos radicais muçulmanos e as dos separatistas europeus violentos.

Quando, há seis anos, António Costa decretou “o fim do tabu”, isto é, dispôs-se a governar em aliança com as esquerdas radicais, iniciou-se uma nova e interessante fase na política nacional: a colaboração entre as duas esquerdas. Na Europa, com o desaparecimento dos partidos comunistas e aparentados, já não se falava disso. Mas, em Portugal, quase sempre atrasado, iniciou-se essa colaboração. Por necessidade, claro, mais do que por convicção. Mas, sem esclarecimento, trata-se de colaboração passageira. Sem objectivos. Sem horizonte. Quer isto dizer que a hora das escolhas está a chegar.

Sociólogo

TÓPICOS: OPINIÃO  ESQUERDA  PARTIDOS POLÍTICOS  PS  ANTÓNIO COSTA  BE  PCP

COMENTÁRIOS:

José Cruz Magalhaes MODERADOR: A solução que permitiu uma maioria de governo estável, desde 2015, não pode ser percepcionada como nefasta, ou contranatura, como AB, abnegadamente, pretende fazer crer. Os governos monopartidários, à semelhança do que sucede, desde há três décadas, pelo menos, por toda a Europa, são cada vez mais, simples miragens e as hegemonias partidárias, meros acidentes de percurso. Ao contrário, em todas as democracias estáveis, são os compromissos e a qualidade das alianças que determinam o sucesso ou fracasso de cada governo. Poderá objectar AB, como se depreende, que a qualidade, os objectivos e os programas dos partidos do que classifica como esquerda radical, não permitem soluções estáveis, o que representa preconceito, ou a avaliação da praxis destes, por transposição simples, de episódios condenados que a História finou           Fowler Fowler INICIANTE: Há seis anos que a esquerda democrática (PS) fez a sua escolha: governar em aliança com os partidos de esquerda com assento parlamentar, afirmando os seus valores democráticos nos programas de governo e a defesa da Constituição. Agora, está mais que na hora dos partidos do centro Direita se demarcarem da Direita radical. Mas, sobre isso, o autor nunca se pronunciou. Só se preocupa com a demarcação entre as esquerdas como se se tratasse de uma necessidade urgente e vital para o país. Não se estranhe, pois, o lavor obsessivo do sr. Barreto em relação às esquerdas que odeia e despreza, em tempo de crise ou fora dela. É uma luta de décadas que impõe a si próprio, irresistível.           Fragoso Borges INICIANTE Seria possível ao António Barreto explicar melhor o que significa "jacobinismo"?!!!          Luis INICIANTE: Wikipédia: "Originário da Revolução Francesa, o termo jacobinismo, também chamado jacobinos, é evolutivo ao longo dos tempos. Mas como expressão é, às vezes, usada na Grã-Bretanha de maneira pejorativa para políticas radicais revolucionárias de esquerda e qualquer corrente de pensamento republicana e laicista de extrema-esquerda, assim como, o de jacobino para quem fosse e seja "defensor de opiniões revolucionárias extremistas" dessa mesma linha política, social e económica." 27.02.2021 17:12           Gualter Cabral INFLUENTE: Ouço dizer, porque de bola não gosto, que nos campeonatos depois de todos os recontros, quem ganha é a Alemanha. Não gosto dos Partidos pela mesma razão que não gosto de bola: corrupção, e hipocrisia. Assim, arrisco um prognóstico; nas próximas eleições, depois de toda a disputa ganha a abstenção; e porquê? Estão fartos de blá...blá...e de muito pouca obra feita.          Jose MODERADOR: Caro Gualter Cabral Está a vista em que blá...blá...blá... vota, custe o que custar.            GMA EXPERIENTE: Nos modelos de sociedade de sociedade sem partidos é tudo "obra feita"! Que tal experimentar a Coreia do Norte?           Gualter Cabral INFLUENTE: É evidente que me vou abster. José. Além das razões referidas, acrescento, que não voto em eleições viciadas onde se não pode escolher candidatos e onde os movimentos estão, na prática, excluídos. Parece ao GMA, que diz ser do centro, uma "tentação,", que parece estar no cerne das pessoas que não sabem o que é democracia, em querer exilar cidadãos dos países onde nasceram para partes remotas do planeta, ficando eles, os "sensatos e bons" a governar a seu belo proveito. Enxerguem-se. Gualter sem subterfúgios escondidos em siglas.          GMA EXPERIENTE: No comments!...            chagas_antonio MODERADOR: A opção pela abstenção é compreensível, mas só obliquamente tem a ver com a falta de representatividade. Na maior parte das vezes, o desinteresse anda de mãos dadas com a falta de cultura política. E esse é o maior dos problemas da sociedade actual. Existe um enorme fosso entre os representantes e os representados, não só devido ao natural conflito de agência, mas principalmente porque os representados se demitem do seu dever cívico de se interessarem pela política. Este não é um problema recente: já Platão o identificou. Mas é precisamente por ser tão antigo que é confrangedor hoje continuarmos a assistir a essa demissão da vida política. Lamento que se abstenha, Gualter Cabral; perdemos todos.           Gualter Cabral INFLUENTE: Chagas - Há os que se abstêm por desinteresse, e os que se abstêm por considerarem as eleições, aqui, se não possa escolher os representantes democraticamente. Como está explícito eu estou nessa linha. Portanto a " pedagogia" do meu amigo cai, quase, pela base já que, curiosamente observa que os cidadãos não se consideram representados. Assim, a "representação" anda na casa dos 20% Convenhamos que a representação é pindérica. E, depois onde fica o "dever cívico?", votar, tipo totobola ou na esperança do milagre imorredouro dessas cabeças duras? Claro que com esta " pedagogia" do pensamento abstracto, sem fim que o valha, há sempre quem ganha, mas não é certamente o cidadão comum, esquecido e enxovalhado.          chagas_antonio MODERADOR: Talvez me tenha treslido, já que eu não referi que o problema fosse uma crise de representação - antes pelo contrário. E, se é verdade que votar é um dever cívico (e a abstenção seria, por essa via de raciocínio, uma fuga a esse dever), também é verdade que a participação na vida política para além do voto, nomeadamente nos fóruns partidários ou não, também o é. Era a isso que eu me referia, Gualter Cabral; não sei se agora terei sido entendido.      Hugo Miguel Campos Rodrigues dos Santos Santos INICIANTE: O centro tem detido o poder em Portugal. A alternância de poder em Portugal fez-se com os partidos do arco da governação. A corrupção e a falta de escrutínio e o discurso TINA alimentado pelo estableshiment tem sido refém dos grandes interesses. A esquerda em Portugal não é só parlamentar é autárquica, sindical e ligada ao activismo. Equiparar o PCP e o BE ao Chega não é só um erro de avaliação, é falso e um insulto. Esqueceu-se de referir que a esquerda radical não comunista foi a única força parlamentar que se não foi banquetear com o Estado Chinês quando lhe abriram as portas dos negócios do país. Se isto não é uma concepção elástica dos direitos humanos e políticos fundamentais, é o quê? Certamente, não é anticapitalismo. Sabemos que não existe iniciativa livre na China, só o Estado Chinês pode ser capitalista.           viana EXPERIENTE: Muito bem visto! E AB também se deve ter "esquecido" quem é que tinha relações muito amigáveis com o regime ditatorial Angolano, em particular nos tempos em que jorrava dinheiro daquela zona do mundo... e quem é que sempre denunciou o carácter assassino e absolutamente corrupto desse regime. Não, não foi a Direita "democrática", nem o PS, ou o PCP... honestidade intelectual é algo difícil de encontrar nestes textos. Ao contrário da hipocrisia.          Mario Coimbra INFLUENTE: Caro AB, excelente crónica. Obrigado           GMA EXPERIENTE: Definitivamente, o Dr. Barreto é perseguido pela assombração da "esquerdas radicais", ao contrário das "direitas radicais", com as quais parece conviver pacificamente. Não sei se como sequela de noites assombradas pelos radicais de esquerda, meia volta e cá temos o Dr. Barreto a perorar sobre as suas assombrações esquerdistas. Está o Dr. Barreto na política para o Dr. Todo Bom (JdN e Expresso) na economia / gestão! Contra as "esquerdas radicais" marchar, marchar!...         Mario Coimbra INFLUENTE: Caro GMA, no parlamento tem, infelizmente, um deputado da direita radical. Da esquerda radical tem muitos mais - BE, PCP e Verdes. O PAN, nem percebo muito bem o que é. Acha que o autor deve preocupar-se com um deputado ou bancadas inteiras. A geringonça esteve e está ligada à governação de Costa para o bem e para o mal. E está a aburguesar-se cada vez mais. Portanto é uma questão de tempo até serem facções dentro do PS. Isto a mim no longo prazo preocupa-me claro. Mais por causa da resposta da direita e como ela vai reagir a isso. Eu continuo a preferir o centro e a governação ao centro e não nos extremos. Mas é o que é.      GMA EXPERIENTE: Caro Mário Coimbra, obrigado pelo seu comentário. O Mário prefere a governação "ao centro" que, julgo, ser sinónimo de governação em regime Democrático e de Estado de Direito. E, se assim é, então estamos do mesmo lado da barricada. Diz o Mário que a direita radical tem apenas um deputado; mas nas presidenciais teve mais de 10% dos votos. Mas, independentemente de números e percentagens, diga-me, caro Mário, uma proposta, posição, da dita esquerda radical que atente contra os princípios do Estado de Direito. Faça o mesmo exercício para a direita radical que "tem, infelizmente, um deputado...". Com consideração do Gualter.         pintosa INICIANTE: E ainda bem que temos António Barreto (suave) e Todo Bom (frontal)! Sem eles a esquerda radical dominava isto tudo, nos media.

 

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