sábado, 6 de fevereiro de 2021

Disputas na vacinação


Uma forma de criar suspense e ruído, num mundo de silêncio e vazio… Há sempre alguém atento. Teresa de Sousa, como sempre.

OPINIÃO CORONAVÍRUS

A União Europeia quis poupar nas vacinas. Está a colher o que semeou

A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o esforço.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 31 de Janeiro de 2021

1.“No total, o Reino Unido e os Estados Unidos gastaram antecipadamente cerca de sete vezes mais per capita no desenvolvimento, compra e produção [da vacina] que o bloco europeu, de acordo com a informação recolhida pela Airfinity, uma empresa de análise científica sediada em Londres”, escrevia o Financial Times há poucos dias.

O diário britânico acrescentava que, “apesar dos números incluírem tipos diferentes de financiamento e poderem não ser rigorosamente comparáveis, esta informação parece indicar que os membros da União Europeia deviam ter usado mais cedo o seu poder económico para financiar a ampliação de fábricas [das farmacêuticas] e apoiar os fornecedores da matéria-prima para as vacinas”.

Apenas um exemplo. A União gastou 1,78 mil milhões de euros em “dinheiro de risco”, entregue às farmacêuticas sem qualquer garantia de retorno. O Reino Unido adiantou 1,9 mil milhões e os EUA 9 mil milhões – para, respectivamente, 450 milhões, 62 milhões e 330 milhões de cidadãos. “A União Europeia conseguiu garantir alguns dos mais baixos preços do mundo [na compra das vacinas]”, escreve o site Politico.eu. “Mas a que custo?”

Numa carta enviada ao Financial Times, datada de 28 de Janeiro, Daniel Gros, investigador-chefe do Centre for European Policy Studies de Bruxelas, escreve o seguinte. “É claro que a compra conjunta de vacinas pela União Europeia falhou. Um dos principais fornecedores, a AstraZeneca, acaba de anunciar atrasos no calendário de entregas, enquanto a pandemia continua a fustigar a Europa.

Como se chegou aqui? Os negociadores europeus cometeram dois erros. Primeiro, fecharam os contratos muito mais tarde do que outros grandes compradores – por exemplo, três meses depois do Reino Unido com a AstraZeneca. A AstraZeneca pôde, portanto, começar a preparar-se com segurança para aumentar o fornecimento ao Reino Unido, muito antes de começar a fazê-lo para a União Europeia. Em segundo lugar, Bruxelas regateou um preço mais baixo, criando um incentivo para as companhias servirem primeiro quem encomendou mais cedo e pagou mais.”

A Comissão quis poupar o dinheiro dos contribuintes europeus? Não creio que, neste caso, nenhum contribuinte europeu lhe agradeça o esforço.

2. No dia 28, os países da UE tinham vacinado, em media, dois em cada 100 cidadãos, o Reino Unido 11 e os EUA sete. Este atraso talvez ajude a compreender melhor a “guerra das vacinas” que está instalada na União Europeia e que tem a sua expressão mais recente no conflito entre Bruxelas e a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca – acusada de não cumprir os prazos de entrega previstos no contrato.

A farmacêutica anglo-sueca avisou a Comissão de que não estaria em condições de cumprir a totalidade das entregas prometidas para o primeiro trimestre. A culpa do atraso dos programas de vacinação na Europa continental é da AstraZeneca? A resposta é não. A Pfizer e a Moderna também estão a atrasar as entregas e convém lembrar que apenas na sexta-feira passada a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) validou a vacina de Oxford, o que quer dizer que não é da sua responsabilidade a lentidão dos programas de vacinação. Mas encontrou-se um “bode expiatório” que permite desviar as atenções dos eventuais erros cometidos na estratégia de compra e de certificação das vacinas. Melhor ainda: a empresa é anglo-sueca e está “propositadamente” a beneficiar os britânicos, de acordo com as autoridades de Bruxelas. E os britânicos são, na narrativa preferida da União Europeia, os maus da fita. Segunda acusação preferida de Bruxelas: a empresa beneficia quem lhe paga mais porque só pensa no lucro.

Continuamos a aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de vacinação. Sem que isso aconteça, o número de vítimas mortais continuará a ser assustador

A fábrica da AstraZeneca na Bélgica foi, entretanto, alvo de uma vistoria pelas autoridades do país, embora ainda não se conheçam as conclusões. A União adoptou uma norma que dá aos Estados-membros a possibilidade de bloquear as exportações da AstraZeneca ou da Pfizer para o Reino Unido, aplicando-se esta restrição também EUA e ao Canadá e a mais ninguém. Na sexta-feira, perante os protestos de Dublin e de Belfast, a Comissão teve de voltar atrás numa das cláusulas desta norma, que permitia o controlo da fronteira entre a Irlanda e o Ulster. O acordo de saída dos britânicos preserva a ausência de fronteira entre as duas Irlandas.

“Este belo plano [de vacinação conjunta] está em risco de correr mal”, escreve o Monde na sua edição de sábado. “A insuficiente capacidade de produção das empresas farmacêuticas, sob pressão de uma procura que explode perante a erupção imprevista de novas variantes e a chegada de uma terceira vaga, semeia o caos nas campanhas de vacinação. De novo, o pânico toma conta de Bruxelas e das capitais europeias.”

3. Vale a pena olhar para a forma como o Reino Unido organizou o seu sistema de vacinação, bem como as respectivas prioridades. O objectivo é ter 14 milhões de pessoas vacinadas em meados de Fevereiro. Na primeira fase, a Comissão para as Vacinas e a Imunidade estabeleceu as seguintes prioridades: residentes em lares e respectivos cuidadores; os trabalhadores do sector da saúde e do apoio social que estão na linha da frente; todas as pessoas com mais de 70 anos, a que se juntam as pessoas clinicamente muito vulneráveis. Segundo a Comissão, o critério é simples: visa cobrir o mais depressa possível os grupos em que se registaram 88% das mortes. Nada mais claro e mais lógico, se o objectivo for salvar vidas humanas.

Já foram criados 11 grandes centros de vacinação em estádios ou centros de congressos, que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana (vão abrir mais), aos quais se somam os centros de saúde e os hospitais. O exército foi mobilizado para a distribuição das vacinas e para identificar áreas que não estejam cobertas pela rede de vacinação instalada. O sector privado da distribuição também foi mobilizado. O NHS inglês seleccionou a Asda como a primeira rede de supermercados a fornecer a vacinação nas suas lojas desde o dia 25 de Janeiro. A rede de farmácias Boots abriu na semana passada o seu primeiro estabelecimento. Outros se seguirão. Parece ser um modelo eficaz.

4. Na Europa, cada país definiu as suas prioridades. Na generalidade, as pessoas mais velhas, cuja taxa de mortalidade é incomparavelmente superior, estão na primeira fase da vacinação. Menos em Portugal. O processo já nasceu inquinado e ainda não se endireitou. Em finais de Novembro, quando se começaram a conhecer os critérios do plano nacional de vacinação preparado por uma “task-force” criada para o efeito, não foi certamente por acaso que o primeiro-ministro disse em público que “as vidas não têm prazo de validade”. Nessa altura, António Costa referiu que era inaceitável que as pessoas com mais de 75 anos não estivessem na primeira fase da vacinação. Olhando à distância, as suas palavras não tiveram qualquer efeito.

Foi preciso que, no dia 21 de Janeiro, a União Europeia insistisse no objectivo comum de vacinar os mais velhos até ao início da Primavera para que o plano de vacinação nacional incluísse todas as pessoas com mais de 80 anos na primeira fase. Muito longe ainda dos 70 ou 75 anos que a maioria dos países europeus fixou.

Nas últimas semanas, foram raros os dias em que mais um grupo profissional não viesse reivindicar o seu direito a estar na “linha da frente” da vacinação. Ouvi representantes sindicais de bombeiros, polícias ou professores reclamarem acaloradamente o seu direito de preferência, alguns equiparando-se aos profissionais de saúde.

Não podemos olhar cada grupo individualmente para avaliar o seu papel mais ou menos fundamental neste ou naquele serviço à sociedade. Temos de olhar sempre para o conjunto e pensar: quem é que está em maior risco de perder a vida? Se for este o critério, conseguiremos estabelecer prioridades mais justas e muito mais humanas. A única excepção são os profissionais de saúde. E por uma razão que nem sequer é altruísta: convém que estejam em condições de exercer o melhor possível as suas funções, para nos salvarem a vida. Tão simples quanto isto.

Entretanto, continuamos a aguardar que o Governo reponha alguma decência nas prioridades de vacinação. Sem que isso aconteça, o número de vítimas mortais continuará a ser assustador.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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COMENTÁRIOS:

Jonas Almeida INFLUENTE_ Obrigado TdS pelo artigo que faltava no Público para pôr os pontos nos i's desta estória. Os números que pede emprestados do Financial Times andam a circular há muito - a UE sub-investou e desleixou as vacinas enormemente (como nota o artigo, gastou 7 vezes menos per capita que o UK ou os EUA!). A "guerra das vacinas" fica neste excelente artigo exposta como aquilo que é - uma operação de marketing deslavado para distrair as vítimas desta enorme incompetência de chamarem à ordem os seus responsáveis na Comissão Europeia. Quantos falhanços destes acumulou em apenas 1 ano o gabinete da ineleita Sra Leyen ? De que estão à espera para a demitir? Mais asneiras destas? Como é possível continuar a forçar "coordenações obrigatórias" por Bruxelas com desastres sistemáticos destes?         Joao MODERADOR: Eu cá acho que não foi tanto em investimento que Bruxelas falhou, aliás comprou doses suficientes para mais de cinco vezes a população incluindo recém-nascidos. Acho que deverá ter falhado mais em acreditar em tretas de mercado livre, globalização, tribunais internacionais, concorrência, etc, quando outros mais pragmáticos têm algum controlo sobre as empresas, seja o “Patriotic Act” ou parecido nos USA, sejam o que forem em Israel, UK, etc. Aí as empresas têm de estar ao serviço e disponíveis para confluírem nos objectivos e interesses nacionais, senão estão fora do negócio. Ponto. Por aqui … lembro por exemplo o esforço meritório em arranjar soluções para as empresas contornarem as sanções ao Irão … nenhuma empresa mesmo “europeia” aderiu pois não se atreveu sequer a desafiar Washington. Veja as empresas gozam com Bruxelas, são as fugas na Irlanda, as fugas no Luxemburgo, na Áustria e demais paraísos, as empresas batem o pé e Bruxelas pouco pode fazer, só por vezes vemos o governo Francês puxar umas orelhas, o alemão mais raramente, o húngaro também, mas pouco mais, mas quase sempre proibindo comprar estrangeiras e exigindo maioria nacional, não só em negócios estratégicos (até na imobiliária estou a lembrar-me).   Jonas Almeida INFLUENTE: Sem dúvida essas manobras mafiosas são parte do problema. Para mim o que me fez ver que o comportamento apparatchik é já completamente a norma da Comissão Europeia foi a forma como impediram a Pantest de servir o SNS ( ver aqui no Público há um mês "Covid-19: Brasil abre porta ao produtor do teste antigénio português").   Roberto34 MODERADOR: Os responsáveis por este fracasso têm de facto de ser chamados a responsabilidade. Mas a culpa não é apenas da Comissão Europeia. São os nossos governantes que são os principais culpados, ao não terem sido ambiciosos e céleres. A Comissão Europeia não tem e não tinha nem os meios financeiros nem a independência e competência para adquirir e financiar vacinas. Foram os Estados Membros que a incumbiram de tal tarefa. A Comissões Europeia não forçou nada. Macron já admitiu isso numa entrevista. Agora para se evitar o erro no futuro ou se dá mais competência as instituições Europeias e mais meios financeiros e independência, ou então retrocede-se. Eu prefiro a primeira opção. E já agora a Comissão Europeia não proibiu nenhum uso de teste antígeno Português. 01.02.2021 08:46                   Jacob van der Sluis INICIANTE: A UE foi aldrabada pela AstraZaneca, existia um contrato e até foi financiada pela UE. Outros países quiseram pagar mais e assim AZ antecipou as vendas. Mais nada. Money talks first.        Jonas Almeida INFLUENTE :Não são esses os factos. TdS transcreve-os entre aspas - "Bruxelas regateou um preço mais baixo, criando um incentivo para as companhias servirem primeiro quem encomendou mais cedo e pagou mais.". Não percebe o conceito de servir primeiro quem, cito, "encomendou mais cedo e pagou mais"? 31.01.2021    Nuno_P EXPERIENTE:  Jonas, o facto é que a pressão exercida pela CE e pelos responsáveis políticos europeus está a começar a produzir efeito. Mais 9 milhões de doses e entrega antecipada uma semana e ampliação da fábrica na Bélgica. Sozinhos nunca teríamos este poder, pois não?.........         João Sem Terra EXPERIENTE: Sendo verdade que a Comissão Europeia não se cobriu de glória neste processo há aqui também a questão da má-fé por parte da Astra-Zeneca: assinou um contrato, secreto, com o Reino Unido em que se compromete a não fornecer vacinas da fábrica do RU a países terceiros antes de entregar 100 milhões de doses no país (o que obviamente demorará vários meses e pouco tempo depois assinou outro contrato secreto, com a União Europeia, em que calendarizou entregas de vacinas e menciona a fábrica do Reino Unido como uma das unidades que iriam produzir essas vacinas. Se a AZ tivesse sido séria o contrato com a UE deveria mencionar que só poderia abastecer a UE a partir do RU depois das tais 100 milhões de doses terem sido entregues...          rogerio borges INICIANTE: Não percebo como a Teresa de Sousa não faz parte de um painel de comentadores nas televisões portuguesas, lacuna grave. Não perco uma única crónica sua, informação de qualidade. Continue e os meus parabéns por contribuir com o melhor do jornalismo nacional. 31.01.2021      Jonas Almeida INFLUENTE: Associo-me aos parabéns e à solicitação de maior visibilidade em debates televisivos.      graça dias INICIANTE: É uma excelente análise crítica, se bem que nunca poderemos ignorar o poder económico" monstruoso" da indústria farmacêutica, logo a seguir à indústria do armamento.

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