sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Um texto magistral


Para pendurar nas escolas, nas casas, na Assembleia da República, para nossa reflexão. Acompanhadas ou não pelas caricaturas de Daumier para efeito de aviso sobre aquilo em que nos tornaremos, se não arredarmos pé da nossa inércia cultural…

Degradação, informa Pacheco Pereira. Do pensamento será, talvez mais por aqui, pela nossa praia, como sempre foi, tirando as excepções. Um excelente alerta de JOSÉ PACHECO PEREIRA, preocupado, naturalmente, com as questões da Educação, na formação do Homem português. Bom seria que reflexões destas, de racionalidade e saber, penetrassem nas mentes dos responsáveis por esta «degradação dos factores culturais, de mundivisão, aquilo a que os alemães chamam Weltanschauung, que implica educação, vontade de saber.»

Mas aqui fazemos, antes, gala da nossa tendência para o divertimento, que o bom sol proporciona, agasalhando e implicando abulia, na tal questão do saber, por aqui identificado mistificatoriamente com a acepção pacóvia do “Paulino tem olho”, de resto amoravelmente transposto para o “Zé Povinho” do “Queres fiado? Toma…” do nosso Bordalo, decididamente mais positivo, mas talvez menos verdadeiro que as caricaturas degradantes de Daumier… E não são só os sem-abrigo que o comprovam…

OPINIÃO

A CRISE DA DEMOCRACIA E A GERAÇÃO MENOS PREPARADA

Um dos aspectos no cerne da actual crise da democracia é a degradação dos factores culturais, de mundivisão, aquilo a que os alemães chamam Weltanschauung, que implica educação, vontade de saber.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 5 de Novembro de 2022, 6:47

Há muitos factores que explicam a crise actual da democracia, os mais importantes têm que ver com os estragos na qualidade de vida, mas também na dignidade da vida, de muitos milhões de pessoas nos países onde há democracias. Nas ditaduras, este processo não se verifica, porque aí, na Rússia, no Irão, em Hong Kong, a aspiração democrática existe. Eles sabem muito bem o que não têm, por viverem em ditadura, e lutam com todos os riscos para o obter. É nas democracias ocidentais que, com graus diferentes, essa crise existe, nos EUA em primeiro lugar, no Brasil, na União Europeia.

Os dois momentos trágicos que vivemos, a pandemia e a guerra na Ucrânia, aceleraram o processo, mas de há muito uma economia para os ricos, incapaz de defrontar a exclusão e a desigualdade, seja dos trabalhadores, seja dos refugiados, fez passo a passo agravar fossos entre uns e outros. Esses fossos deixaram do lado errado os pobres, mas também aqueles sectores que se tinham emancipado nas últimas décadas da pobreza, em particular pela acção do Estado, e que estão a perder muito.

Todos estão revoltados, avós, pais, mães e filhos, com alvos diferentes, mas profundamente insatisfeitos, seja com as reformas, os salários e as condições de trabalho, e a precariedade, e, atingidos pela carestia de vida, têm uma sensação de impotência crescente.

Por outro lado, um conjunto de fenómenos sociais criou fontes de pobreza e “má vida”. Não é apenas a pobreza material que cresce, é a perda de esperança, a sensação de perda de dignidade com as mutações no mercado de trabalho – não é a mesma coisa ser operário numa fábrica em Detroit ou vender fruta na rua, mesmo quando se ganha quase o mesmo ou até mais – a desagregação da família tradicional, o aumento da violência e do crime, o egoísmo e a solidão urbana, a crise das redes tradicionais de grupo, substituídas por simulacros virtuais, a pressão do consumo, a proliferação de identidades grupais com fronteiras guerreiras, uma maior agressividade por todo o lado. A pobreza “antiga” era mais simples, a pobreza e a queda na pobreza nos dias de hoje são muito mais complexas.

Contra quem é esta revolta? Contra os “políticos” nas democracias, em particular dos partidos de governo, fragilizados pela corrupção, pelo carreirismo e pela incompetência, com a consequência desastrosa, em sociedades mergulhadas numa logomaquia mediática, de parecerem distantes, demasiado burocráticos na sua língua de pau cheia de lugares-comuns, e acima de tudo indiferentes. Esta indiferença mata o elo da representação, fere a democracia. Esta indiferença é um maná para os populistas e o seu discurso do ressentimento.

Chegados aqui, porque tudo isto tem de ser dito antes, podemos ir para os factores culturais em sentido lato, porque a democracia é uma construção da vontade, não é um estado natural, só há democracias se as pessoas as desejarem, construírem e defenderem. Sem isso, tudo o resto, o poder sem limites, o mando, a violência contra os “outros”, o nepotismo, a demagogia, o privilégio da força e do dinheiro, é muito mais eficaz.

Ora um dos aspectos que estão no cerne da actual crise da democracia é exactamente uma crescente degradação dos factores culturais, de mundivisão, aquilo a que os alemães chamam Weltanschauung, que implica uma ideologia da democracia, ou seja, saber-se o que se deve fazer e, talvez mais importante, o que não se deve fazer. Isso implica educação, saber, vontade de saber, ler, ouvir e ver com olhos de ver, procurar informação, reconhecer desinformação, falar com voz alta quando é preciso, e ser prudente na fala também quando é preciso, reconhecer o valor da privacidade, não ir em ondas mediáticas e da moda, nem fazer como a Maria “que vai com as outras”. Implica ter um vocabulário que não seja gutural, feito com meia dúzia de palavras, e uma capacidade de se exprimir, que vem, entre outras coisas, de ler, e não do TikTok, nem dos reality shows, nem da fala que nunca se cala do futebol.

Ora, hoje, mais do que uma geração cresceu e cresce num mundo em que as atitudes da democracia não existem. Não apenas esta actual, mas já os seus pais, como também os seus professores, os seus “influenciadores”. Nunca tantos portugueses chegaram ao ensino superior, mas é uma falácia considerar que isso significa serem a “geração mais preparada” para defrontar a crise da democracia, a que são, aliás, bastante indiferentes no que consomem e no que produzem.

A informação é substituída pelo consumo do “engraçadismo”, pelo desprezo pela privacidade, pela raiva, pela calúnia, pelo comportamento em matilha, pelo julgamento imediato, pelo desprezo pelo outro, sem qualquer esforço sequer para perceber os seus argumentos, tudo substituído pelo prazer narcísico de ler, ouvir e ver apenas aquilo com que se concorda. Rodeados de devices que os prendem num presente inescapável, de mensagens para ler e escrever, vídeos virais, jogos sem fim, incapazes de deixarem os telemóveis um segundo, com uma sociabilidade mais virtual do que real, têm uma vida pobre, com muito mais exclusão do que sequer se apercebem. A seu tempo ficarão deprimidos, a doença psicológica da preguiça e da facilidade de viver num mundo muito pouco fácil.

Não admira que aquilo a que tenho chamado ignorância agressiva campeie, uma espécie de ignorância que pensa que é igualitária com o saber, que valoriza a imediaticidade simplista da reacção, num mundo emocional tão pobre como é o intelectual. O mundo dessa cloaca dos tempos modernos, as redes sociais.

Trump e Bolsonaro são assim, e parte do seu sucesso vem de serem assim, como se essa rudeza, imbecilidade argumentativa, soberba pessoal, anti-intelectualismo militante, hipocrisia religiosa, machismo, violência e agressividade permitissem uma identificação com muitas pessoas que lhes são iguais no mesmo movimento de poder e exclusão. E isto cresce.

O autor é colunista do PÚBLICO Historiador

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