quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Já não vai a tempo


Do mesmo jornal PÚBLICO de 12/11/22 cedido pela minha irmã, extraio mais uma crónica das que mereceriam destaque para reflexão de todos nós, e sobretudo dos que comandam a orientação do país, sobre a nossa cidade capital, com que ANTÓNIO BARRETO com a costumeira visão crítica - haverá quem a apelide de bota de elástico - numa poderosa eloquência feita de indignação pela destruição histérica de Lisboa, e num poderoso registo linguístico, que o rigor mental e moral acompanham, formata uma “peça” de saber e arte a exigir atenção, para o recuo implícito do erro, embora proposta inútil, na pátria, como sempre enfiada “no gosto da cobiça e na rudeza”. Reduzamo-nos aoRequiem” por um amor destroçado.

Opinião

Requiem para a cidade de Lisboa

Todos os dias a câmara e o Governo têm invenções. Vias para bicicletas, congressos de web, passes gratuitos... Mas o mais simples, limpar, tapar buracos, alojar e legalizar fica para trás.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO, 12 de Novembro de 2022, 6:29

Foi esta semana anunciada a decisão de transformar o edifício da Caixa Geral de Depósitos em sede do Governo. Era para ser apenas uma parte, sabe-se agora que será por inteiro. As mudanças já começaram. Parece que dentro de quatro anos a operação estará terminada. É possível que a maior parte do Governo e dos ministérios se localize ali, naquele que a opinião designou, há anos, por Palácio Ceausescu, versão reduzida de um dos mais horrorosos edifícios de toda a Europa!

Será então a altura para prestar atenção, comparar e reflectir. À Lisboa do Governo do Terreiro do Paço e da Praça do Comércio, do Cais das Colunas e da Ribeira das Naus, sucede a Lisboa do Governo da Caixa e da arquitectura vulgar e pseudo… Pseudo monumental, pseudo pós-moderna, pseudo funcional e pseudo ousada!

Entre as duas cidades, houve hesitação. Durante dois séculos, o coração e o poder balanceavam entre as Necessidades, a Ajuda e Belém. Os ministérios foram dispersos. Parecia desenhar-se São Bento como lugar de referência, primeiro por causa de Salazar e da sua residência, depois por causa dos deputados e seu Parlamento. Mas nunca foram suficientes para organizar a cidade e seus poderes. O retrato agora é simples: da Lisboa do Terreiro do Paço para a Lisboa da Caixa.

A serena majestade do Terreiro do Paço, o apuramento de linhas dos edifícios, o equilíbrio das arcadas e das janelas, a abertura para o rio, o comovedor Cais das Colunas, a calma do tablado central, a nascença das ruas pombalinas, a vista para algumas colinas, a visão do Castelo São Jorge e um sentimento de grandeza recatada serão substituídos pela medonha arquitectura pagode da burocracia. Aliás, a evolução desenhava-se. Na Praça do Comércio, a que outros também chamam a Praça do Cavalo Negro, vem crescendo a cidade do burburinho pechisbeque, feita de hamburgers e tuk-tuk, hotéis atrevidos e restaurantes pretensiosos, à procura dos turistas da cerveja e da bola.

Apesar das chamadas de atenção e mau grado os programas eleitorais, a cidade prossegue o seu declínio. Ou antes, a sua metamorfose, a transformação numa cidade desinteressante, difícil, incaracterística, suja, barulhenta e desconfortável.

A cidade é seguramente uma das mais belas do mundo. A sua disposição, a sua geografia e a sua orografia fazem dela uma raridade. Vista da Outra Banda, do Cristo Rei, das pontes, do Tejo, do Parque de Monsanto ou de qualquer outro local que permita uma panorâmica, a cidade exibe-se esplendorosamente. A Lisboa de Carlos do Carmo, de Ary dos Santos e seus amigos é inesquecível, emparceira com as mais bonitas do mundo.

O problema é Lisboa por dentro, Lisboa por perto, às voltas em Lisboa, Lisboa de todos os dias, Lisboa das ruas e do comércio, Lisboa do trabalho e do passeio, Lisboa do património e da vida.

A Lisboa histórica está a desaparecer. É natural. Nada é eterno. Mas o que muda, para diferente, pode ser para pior ou melhor. Com cuidado, o que se transforma pode incluir o que de melhor tem e trazer o que de melhor se pode ter. Com Lisboa, pode simplesmente tratar-se do pior dos mundos. Desaparece o melhor, a história, a beleza, a identidade… E aparece o pior, a uniformidade, o excêntrico, a insegurança, o banal, a vulgaridade com ar de contemporâneo, a infâmia inestética e parola. Para além do que desaparece, e mal, e do que aparece, pior ainda, há o que fica, o que se mantém e agrava. Este é o pior capítulo.

Assistimos a um verdadeiro assassinato da cidade de Lisboa, mais propriamente da Baixa de Lisboa, da Lisboa histórica, da Lisboa da tradição. Morrem as melhores Lisboa. A Baixa Pombalina, um prodígio urbano em vias de demolição. A Lisboa mourisca, quase única na Europa, em vias de destruição. A Lisboa burguesa dos séculos XIX e XX, com irrepetível personalidade. A Lisboa dos monumentos, dos palácios, das quintas nobres e das quintinhas e dos retiros. A Lisboa do rio e das colinas.

Prossegue o despovoamento do centro, da Baixa e dos bairros históricos. Multiplicam-se os hotéis e escritórios de aparente luxo, para reciclar capitais sorrateiros e “vistos Gold”. Nas ruas, alastra o turismo nómada do souvenir e da placa magnética para colar no frigorifico. Nas ruas pombalinas e no Rossio, ainda se poderia ouvir grito desesperado “Acudam, que matam Lisboa!”, mas já é tarde.

As ruas da Baixa estão inundadas de lojas de mau gosto, com grafiti e souvenirs plásticos, portas e janelas tapadas com tijolos para proteger dos sem-abrigo, da droga e dos ratos. Multiplicam-se as lojas que nunca se perceberá o negócio que fazem, dado que os recuerdos não chegam para pagar a luz, quanto mais as rendas de milhares de euros. Crescem os comércios que negoceiam residências falsas e contratos fictícios para imigrantes ilegais. Há lojas de fachada e de droga. Há lojas de residência e de contrato. Há lojas de conveniência e de contrabando. Há lojas de tatuagem e casas de passe. Há negócios escuros para pagar rendas milionárias com que nenhum comércio legítimo será capaz de competir.

Como se fosse pouco, há a sujidade tradicional, aumentada pelo turismo, pela indiferença, pela megalomania dos planos integrados incapazes de arrumar e calcetar. Buracos voltaram a aparecer. Nas ruas e nos passeios, trotinetas e bicicletas são ameaças para os velhos, os deficientes, as crianças e os doentes. Não é seguramente o vereador X ou o presidente Y nem sequer o partido Z… São vários em sucessivos anos que deixaram Lisboa morrer e definhar. Regressaram os pedintes. Voltaram os esfomeados. Cresceram os sem-abrigo. Estão por ali novamente falsas mães com crianças de empréstimo para pedir esmola. Sobram os receptadores de telemóveis, carteiras, iPad, computadores e equipamentos dos automóveis. Esgueiram-se por todo o lado os carteiristas da Carris. Pululam os indocumentados, os imigrantes ilegais e os candidatos a refugiados. A Baixa divide-se por grupos étnicos, por ramos de negócio ilegal, por sectores de actividades nocturnas e por artigos de contrabando.

Todos os dias a câmara, as autoridades e o Governo têm invenções. Vias para bicicletas, centros de negócios, congressos de web, passes gratuitos, é só pensar. Mas o mais simples, lavar e limpar, remendar e tapar buracos, pintar e restaurar, alojar e legalizar, fica para trás. À espera de negócios obscuros e de demolição, casas devolutas e palacetes arruinados morrem devagar, até que a grua e o caterpílar ponham termo à cidade. Lisboa necessita de habitantes, moradores, estudantes residentes, lojas decentes, limpeza e cuidado, não necessita de start-ups chiques.

O autor é colunista do PÚBLICO

Sociólogo

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