Foi o que senti também, nesses dias de
eleições brasileiras e sucedânea recusa de Bolsonaro em aparecer à janela do
seu desportivismo, cumprimentando o adversário vencedor. A nossa televisão
gastou horas vibrando, comunicando, interrogando os populares, que mal
entendiam as perguntas, tudo no propósito de bem servir o povo português – se possível,
com um escandalozinho que remataria as tendências fofoqueiras da nossa intelectualidade,
habilitada nas disputas futeboleiras altissonantes do nosso quotidiano televisivo.
Mas Paulo Tunhas dá-lhes uma interpretação bem sua, e bem nossa, afinal, de
amizade estridente e fofa de velha guarda, que nos aquece a alma.
As televisões, o Brasil e a democracia
Os Unidos do Jacarezinho, esses
danados, não querem, no fundo, o samba. Detestam o samba. Querem acabar com o
samba. Dito de outra maneira, e falando com o mais puro rigor académico: são
fascistas.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 03 nov
2022, 00:193
É
sempre um espectáculo curioso. Refiro-me ao facto de, em certas e determinadas
circunstâncias, os media portugueses entrarem em regime de dupla
nacionalidade. Desta vez foi com as eleições brasileiras. Era como se fossem as
nossas. Mais. Como prova certa do nosso universalismo, eram ainda mais
emocionantes do que as nossas. Porquê? Porque tudo estava, cosmicamente, em
jogo, enquanto que nas nossas, comicamente, nada conta, mornas e tristes que
são. Quem se interessa verdadeiramente por
elas? Os políticos, certamente. E fora deles? Talvez uma ou outra pessoa
preocupada. E a jornalista Anabela Neves, é claro.
Mas
não se trata de uma dupla nacionalidade puramente platónica. É antes uma dupla
nacionalidade que se entusiasma e participa, é parcial, toma partido. Quem
tiver passado a noite eleitoral brasileira a ver televisões portuguesas não
poderá ter deixado de pensar que se encontrava no Sambódromo da Marquês de
Sapucaí entre a claque torcedora dos Caprichosos de Pilares, desejando o
desaire dos Unidos do Jacarezinho. Com efeito, os jornalistas não
disfarçavam em momento algum o seu entusiasmo pelos primeiros – que, aos seus
olhos, unem – e a sua detestação pelos Unidos do Jacarezinho – que, pecado dos
pecados, dividem. E os convidados ao comentário também partilhavam a
doutrina, tal como os entrevistados nas ruas. Uma unanimidade tanto mais
surpreendente quanto, na apreciação final, os votos puseram as duas escolas de
samba quase empatadas, com ligeira vantagem para os Caprichosos de Pilares.
Como encaixar neste contexto a misteriosa doutrina da
união/divisão? E: porquê, assim, tal parcialidade?
A
coisa foi-nos sendo explicada, no entanto. É que os Unidos do
Jacarezinho, esses danados, não querem, no fundo, o samba. Detestam o samba.
Abominam o samba. Querem acabar com o samba. Dito de outra maneira, e falando
com o mais puro rigor académico: são fascistas. A
natureza desse fascismo resulta clara das análises de alguns consagrados
especialistas na matéria. Segundo um deles, o
cortejo carnavalesco era um golpe de estado feito às claras, que dura desde há
muito, inspirado no exemplo de Hitler. Objectivo: destruir o samba,
substituindo-o pelo passo de ganso. Sinistras forças internacionais,
representadas por não menos sinistros indivíduos, denodadamente militavam para
que o fim do samba tivesse lugar e para tal financiavam os Unidos do
Jacarezinho, dirigindo as operações a partir de um covil em São Paulo.
Será que a vitória dos Caprichosos
terá posto fim a estes transparentes desígnios? Desenganem-se. A estratégia
fascista, garante-nos o especialista em questão, vai apenas entrar numa nova
fase. Será uma fase mais subterrânea, plena de ardis e conspirações,
mobilizando todas as forças do crime disponíveis. Apenas uma solução se
vislumbra no horizonte para impedir a cavalgada sem fim das forças que manobram
por detrás dos Unidos do Jacarezinho. E qual é ela? Reconhecer plenamente um
facto crucial: o voto não é o único factor que legitima a vitória de uma escola
de samba sobre a outra. Para que a vitória seja justa é necessário ter em conta
vários outros critérios, que cabe aos especialistas definir. E só tendo-os em
conta se poderá designar o justo vencedor da competição.
Chegados
aqui, convém dizer uma coisa. Gosto muito do Brasil e dos brasileiros em geral.
Chega-se lá e (como nos Estados Unidos) encontra-se uma genuína simpatia que
quase por inteiro desapareceu da velha Europa. É tão estranho que a
primeira reacção é de desconfiança – parece uma artimanha –, até que se bate
com a mão na testa e dizemos para nós mesmos, envergonhados: “Que estúpido que
sou! São mesmo simpáticos!”. Da segunda vez que lá fui, no longínquo ano de
2006, passei seis meses a dar aulas no Rio de Janeiro (digo “passei” porque seis
meses é pouco para dizer “vivi”). Aproveitei para viajar por vários lugares do
Brasil. Mas, por intensa que seja São Paulo ou maravilhosamente barrocas as
cidades de Minas Gerais, por exemplo, foi o Rio que nunca mais me
saiu da cabeça. Aquela
cidade cuja configuração geral está constantemente a mudar consoante o lugar em
que estamos – algo que Stefan Zweig notou bem no seu livro sobre o Brasil
(aparentemente encomendado por Getúlio Vargas). Ao ponto de, regressado a
Portugal, durante meses e meses ter tido regularmente quase-alucinações do Rio:
imagens súbitas que me vinham ao espírito da beleza extraordinária daquela
cidade.
Mais. São tantos os aspectos – incluo
o académico – em que o Brasil é superior a Portugal que me irrita a linguagem
de sambódromo que por cá se utiliza para descrever a vida de lá. Lula e Bolsonaro não são chefes de escolas de samba. Tratá-los assim, e
adoptar o ponto de vista do torcedor de uma escola contra outra, como fizeram
as nossas televisões, parece-me uma miserável manifestação de
pseudo-superioridade que é, no fundo, uma involuntária confissão de
inferioridade. Uma inferioridade que, como é fatal, traz consigo a estupidez
pura e simples: dar de barato que metade da população de um país imenso é
fascista e a outra constituída por doces anjos do Bem roça a oligofrenia.
Por
razões diferentes, e algumas idênticas, Bolsonaro e Lula pareciam-me maus candidatos.
Não simpatizo nem com o estilo de Bolsonaro nem com muitíssimo do que diz e
pensa e não me esqueço que Lula – que achava extraordinariamente empático
quando o via quase diariamente na televisão em 2006, mesmo quando já se
“agilizavam” envelopes com dinheiro em todas as direcções – foi o candidato de
uma força política constituída por grupos daquilo que, na óptima linguagem do
Jornal de Notícias da minha juventude, se designava por “ardilosos
amigos do alheio”.
Acontece,
no entanto, que não sou brasileiro: sou português. Quer dizer: há toda uma
distância que tenho, por respeito pelo outro, de manter nos meus juízos. Por
alguma razão, lá terão sido aqueles dois. Os brasileiros sabê-lo-ão melhor do
que eu. E essa obrigação de distância vê-se redobrada pelo facto de a
democracia ter funcionado. E ter
funcionado por si mesma, sem o recurso àqueles misteriosos critérios
suplementares propostos, na sua linguagem de sambódromo em versão académica, pelo
teórico da conspiração fascista acima referido. Ou melhor: ter funcionado
exactamente por esses critérios, que sugerem uma revolução anti-democrática –
em tudo idêntica àquela que certos apoiantes mais irados de Bolsonaro agora
reclamam, só que de sinal contrário –, não terem sido utilizados. É que nem
mesmo no sambódromo o devem ser.
PS.
As televisões (todas, mais uma vez) descobriram depois das eleições uma
inesperada detestação pelas manifestações, quando as costumam acarinhar se vêm
dos lugares que julgam certos (mesmo quando recusam resultados eleitorais), que
são quase todas aquelas que mostram. É o que se chama no Brasil uma “virada”.
Mas talvez seja porque elas, pelo menos até agora, foram pacíficas e não
partiram montras e incendiaram carros, como aquelas de que costumam gostar. Ou
será porque estas “dividem” e as outras “unem”?
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COMENTÁRIOS:
Rui Lima: Quando a
manifestações vêm da esquerda são louvadas e elogiadas na nossa imprensa como
uma luta pela liberdade dos povos. Quando, na realidade, hoje é a directa
que luta pela liberdade e a esquerda mesma moderada pela censura. Exemplo vem
dos USA o partido republicano é pela liberdade o partido democrático e os
grandes grupos económicos querem censura, algum dia vão deixar de fazer
publicidade no Twitter porque as opiniões vão ser livres com Elon Musk. THAIS MAIA: Sou brasileira, vivo na Galiza e tenho nacionalidade
espanhola. Agradeço
o respeito e reconhecimento do autor com o meu lindo país Brasil. Realmente o Brasil não é só sambódromo; nosso
mundo científico e intelectual não perdem para país algum, por isso agradeço
novamente ao autor do excelente Artigo, o chamado para o
"não-preconceito" e sim para o maior conhecimento sobre a totalidade
do Brasil.
Cisca Impllit: Pôr
as coisas no seu devido lugar!
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