E amor pelos caminhos pátrios, impregnados de
histórias…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 15.11.22
Estando o Rei D. Manuel, o
primeiro desse nome, no seu paço da Ribeira, em Lisboa, mandou aparelhar
cavalos e mulas para viajar a Cintra (Sintra, na ortografia actual). Viagem de
passeio com Damas e cortesãos anosos. Iriam «por baixo», ou seja, rumariam
ao paço dos arcos (Paço d’Arcos) e
daí entrariam por terra adentro pelas margens da ribeira
de Barcarena. (50 kms quando hoje, pelo IC19 são 32). No regresso, «por
cima», passariam pela Serra da Carregueira para visitar o Senhorio de Belas.
* * *
No século XVI, o que seria um «cavalo de rei»? Comeria o quê? De que medicina
disporia? A que equitação estariam submetidos?
Muito pouco comeriam.
Talvez palha, erva verde quando a houvesse, algum cereal. Comparando com
hoje, alimentação pobre indutora de problemas no desenvolvimento físico,
parasitismo, raquitismo, maus aprumos, andamentos pobres ou mesmo defeituosos…
Ou seja, um «cavalo de rei» no séc. XVI não passaria hoje de uma pileca.
E, perante a rudeza equestre daquelas épocas, as pilecas, coitadas, faziam-se
manhosas. Então, para evitar alegrias que fizessem os reais costados roçarem
pelo chão, a comida era pouca pelo que, comparando com os primores de hoje,
«cavalo de rei» naqueles tempos não passaria de pileca raquítica e manhosa. E
mesmo assim, para segurança absoluta do Senhor absoluto, mais valia que o
palafreneiro caminhasse ao lado esquerdo da cabeça do cavalo segurando
cautelosamente o palafrém que é como hoje chamamos à faceira.
* * *
Pronto para marcha logo pela
manhãzinha, saiu o séquito real do pátio principal do paço da Ribeira
rumando a poente. Passaram por trás de todas as carreiras onde se construíam
naus (hoje, a Ribeira das Naus, o largo do Corpo Santo, a Rua de S.
Paulo…) pela praia do Tejo até subirem à arriba (Calçada Ribeiro Santos)
passando junto à Ermida de Santos o Velho e (pela actual Rua das Janelas
Verdes) passaram junto ao novo hospital (Posto de Saúde da GNR/Quartel da
Brigada de Trânsito), seguiram à Pampulha e ao Convento do Livramento (que no
séc. XVII viria a ser residência temporária de D. Catarina de Bragança, recém
viúva de Carlos II de Inglaterra e hoje gabinete do ex-Presidente Cavaco Silva
– instituição, pelos vistos, vocacionada para albergar pretéritos mais ou menos
perfeitos ou imperfeitos) e chegaram junto do poço (al kantara, em árabe,
significa “o poço” = Alcântara) na base do Baluarte do Livramento (onde
o Prior do Crato, já aclamado Rei pelo povo reunido em Santarém no âmbito das
Cortes de Almeirim, viria a ser traído e assim perdendo o trono para Filipe II
de Espanha). Na foz da ribeira, subiram o vale (Avª de Ceuta) para
atravessarem a vau (na actual Repsol/Quinta do Cabrinha) e desceram até à Praia
das Fontainhas. Seguiram ao longo do juncal (Rua da Junqueira) para
verem as obras da igreja de Stª Maria de Belém e as da torre que haveria de
(nunca) defender a entrada do Tejo. Continuaram pelas praias até chegarem à
foz do Jamor. Subiram até encontrarem um vau seguro e retomaram caminho por
arribas que haviam de os depositar no pátio retrós do paço dos arcos.
Descansados, aliviados dos
«besoins», comidos e bebidos, foi hora de marcha até à margem da ribeira de
Barcarena. Sempre pela margem esquerda, subiram até à charneca do Cacém
onde escolheram o melhor vau para seguirem quase sem obstáculos até à fresca Aldeia
de S. Pedro. A partir daí, foi tudo a descer mas se a descida é amiga dos
bípedes, os quadrúpedes não gostam de sentir a cabeça mais baixa que a
garupa e foi com alívio que todos chegaram a salvo ao paço da Vila de Cintra.
Quase treze horas tinham passado desde que tudo começara.
«A ver se mandava fazer uma ou
outra ponte… mas a prioridade era o caminho marítimo para a Índia» - pensou o
Rei - «…a ver se falo com Vasco Anes…», o Corte Real mais novo que era o
seu Vedor da Fazenda (actualmente, Ministro das Finanças). Mas dessa conversa
não encontrei rasto (nem procurei).
Tags: história
Anónimo 15.11.2022 10:18:
Delicioso
Rui Bravo
Martins 15.11.2022 12:55: Interessante relato de uma deslocação real
de D. Manuel I, entre a actual Praça do Comercio (Terreiro do Paço) e a Vila de
Sintra (consideremos o
interessantíssimo Paço Real, com salas lindas e as célebres cozinhas e
respectivas chaminés), feita há 500 anos, evidenciando o habitual trajecto da
época e comparando-o com o de hoje, com as consequências nos Kms percorridos e
especialmente no tempo despendido (13h). Fico curioso em saber quais os
cálculos das emissões de CO2, produzidos em cada viagem em épocas tão
distintas. Presumo que ficaríamos muito surpreendidos, e que nos faria rever os
nossos "remorsos" de actuação para a contribuição do aquecimento do
nosso Planeta!
Adriano Miranda
Lima 15.11.2022 17:32: É
sempre curioso saber que duração levou esse périplo do rei venturoso. A passo
de galope da carruagem, o mais certo seria ir parando pelo caminho, acolhido no
palácio de um nobre de mais confiança. Tempo foi coisa que não lhe deve ter
faltado para ir pondo em dia o seu diário íntimo, talvez nunca cessando de se
interrogar sobre a circunstância de ter sido o monarca mais afortunado do seu
tempo.
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