quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Curiosidade


E amor pelos caminhos pátrios, impregnados de histórias…

PELOS CAMINHOS DA HISTÓRIA

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A  BEM DA NAÇÃO,  15.11.22

Estando o Rei D. Manuel, o primeiro desse nome, no seu paço da Ribeira, em Lisboa, mandou aparelhar cavalos e mulas para viajar a Cintra (Sintra, na ortografia actual). Viagem de passeio com Damas e cortesãos anosos. Iriam «por baixo», ou seja,  rumariam ao paço dos arcos (Paço d’Arcos) e daí entrariam por terra adentro pelas margens da ribeira de Barcarena. (50 kms quando hoje, pelo IC19 são 32). No regresso, «por cima», passariam pela Serra da Carregueira para visitar o Senhorio de Belas.

* * *

No século XVI, o que seria um «cavalo de rei»? Comeria o quê? De que medicina disporia? A que equitação estariam submetidos?

Muito pouco comeriam. Talvez palha, erva verde quando a houvesse, algum cereal. Comparando com hoje, alimentação pobre indutora de problemas no desenvolvimento físico, parasitismo, raquitismo, maus aprumos, andamentos pobres ou mesmo defeituosos… Ou seja, um «cavalo de rei» no séc. XVI não passaria hoje de uma pileca. E, perante a rudeza equestre daquelas épocas, as pilecas, coitadas, faziam-se manhosas. Então, para evitar alegrias que fizessem os reais costados roçarem pelo chão, a comida era pouca pelo que, comparando com os primores de hoje, «cavalo de rei» naqueles tempos não passaria de pileca raquítica e manhosa. E mesmo assim, para segurança absoluta do Senhor absoluto, mais valia que o palafreneiro caminhasse ao lado esquerdo da cabeça do cavalo segurando cautelosamente o palafrém que é como hoje chamamos à faceira.

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Pronto para marcha logo pela manhãzinha, saiu o séquito real do pátio principal do paço da Ribeira rumando a poente. Passaram por trás de todas as carreiras onde se construíam naus (hoje, a Ribeira das Naus, o largo do Corpo Santo, a Rua de S. Paulo…) pela praia do Tejo até subirem à arriba (Calçada Ribeiro Santos) passando junto à Ermida de Santos o Velho e (pela actual Rua das Janelas Verdes) passaram junto ao novo hospital (Posto de Saúde da GNR/Quartel da Brigada de Trânsito), seguiram à Pampulha e ao Convento do Livramento (que no séc. XVII viria a ser residência temporária de D. Catarina de Bragança, recém viúva de Carlos II de Inglaterra e hoje gabinete do ex-Presidente Cavaco Silva – instituição, pelos vistos, vocacionada para albergar pretéritos mais ou menos perfeitos ou imperfeitos) e chegaram junto do poço (al kantara, em árabe, significa “o poço” = Alcântara) na base do Baluarte do Livramento (onde o Prior do Crato, já aclamado Rei pelo povo reunido em Santarém no âmbito das Cortes de Almeirim, viria a ser traído e assim perdendo o trono para Filipe II de Espanha). Na foz da ribeira, subiram o vale (Avª de Ceuta) para atravessarem a vau (na actual Repsol/Quinta do Cabrinha) e desceram até à Praia das Fontainhas. Seguiram ao longo do juncal (Rua da Junqueira) para verem as obras da igreja de Stª Maria de Belém e as da torre que haveria de (nunca) defender a entrada do Tejo. Continuaram pelas praias até chegarem à foz do Jamor. Subiram até encontrarem um vau seguro e retomaram caminho por arribas que haviam de os depositar no pátio retrós do paço dos arcos.

Descansados, aliviados dos «besoins», comidos e bebidos, foi hora de marcha até à margem da ribeira de Barcarena. Sempre pela margem esquerda, subiram até à charneca do Cacém onde escolheram o melhor vau para seguirem quase sem obstáculos até à fresca Aldeia de S. Pedro. A partir daí, foi tudo a descer mas se a descida é amiga dos bípedes, os quadrúpedes não gostam de sentir a cabeça mais baixa que a garupa e foi com alívio que todos chegaram a salvo ao paço da Vila de Cintra. Quase treze horas tinham passado desde que tudo começara.

«A ver se mandava fazer uma ou outra ponte… mas a prioridade era o caminho marítimo para a Índia» - pensou o Rei - «…a ver se falo com Vasco Anes…», o Corte Real mais  novo que era o seu Vedor da Fazenda (actualmente, Ministro das Finanças). Mas dessa conversa não encontrei rasto (nem procurei).

Tags: história

 COMENTÁRIOS (3)

Anónimo  15.11.2022  10:18: Delicioso

 Rui Bravo Martins  15.11.2022  12:55: Interessante relato de uma deslocação real de D. Manuel I, entre a actual Praça do Comercio (Terreiro do Paço) e a Vila de Sintra (consideremos o interessantíssimo Paço Real, com salas lindas e as célebres cozinhas e respectivas chaminés), feita há 500 anos, evidenciando o habitual trajecto da época e comparando-o com o de hoje, com as consequências nos Kms percorridos e especialmente no tempo despendido (13h). Fico curioso em saber quais os cálculos das emissões de CO2, produzidos em cada viagem em épocas tão distintas. Presumo que ficaríamos muito surpreendidos, e que nos faria rever os nossos "remorsos" de actuação para a contribuição do aquecimento do nosso Planeta!

 Adriano Miranda Lima  15.11.2022  17:32: É sempre curioso saber que duração levou esse périplo do rei venturoso. A passo de galope da carruagem, o mais certo seria ir parando pelo caminho, acolhido no palácio de um nobre de mais confiança. Tempo foi coisa que não lhe deve ter faltado para ir pondo em dia o seu diário íntimo, talvez nunca cessando de se interrogar sobre a circunstância de ter sido o monarca mais afortunado do seu tempo.

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