sexta-feira, 11 de novembro de 2022

"Murófilos"

 

Um bonito texto, que nos traz à memória tanto que por nós passou – em notícias, apenas, por cá – que gostamos de recordar – desta forma compacta e trabalhada, oferecida por João Caetano Dias, da Iniciativa Liberal, a quem ficamos gratos, não só pela evocação histórica, mas pela analogia com os tempos de hoje, com tanto apreciador de muralhas, mas dos que vivem do lado de cá das ditas, onde podem sobressair mais, numa boa.

Duas Histórias de Uma Cidade

Berlim – e a Alemanha - serviu de experiência perfeita para testar a eficiência de dois sistemas: de um lado, democracia, capitalismo e liberdade. Do outro, comunismo, economia planificada e repressão

JOÃO CAETANO DIAS Membro da Comissão Executiva na Iniciativa Liberal

OBSERVADOR, 10 nov 2022, 00:128

It was the best of times, it was the worst of times
it was the age of wisdom, it was the age of foolishness

it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity

it was the season of Light, it was the season of Darkness

it was the spring of hope, it was the winter of despair

Charles Dickens, A Tale of Two Cities

Em 1945, a capital da Alemanha estava uniformemente devastada pela guerra. It was the worst of times. Berlim era uma cidade homogénea com mais de 750 anos de existência e que nunca tinha sido dividida. De súbito, com a separação de Berlim em sectores atribuídos aos vencedores da Segunda Guerra Mundial, tudo se alterou. De um momento para o outro existiam duas cidades, uma dominada pela União Soviética, outra formada pelos sectores britânico, francês e americano.

Foram 45 anos em que a linha da história da cidade se bifurcou, em que a mesma urbe ensaiou dois sistemas alternativos de governo. No fim desse período ninguém podia contestar qual tinha sido o melhor.

E nem foi preciso esperar muito tempo para compreender as diferenças. Nos primeiros 3 anos de separação, já era manifesta a tendência migratória da Alemanha controlada pela União Soviética para as outras zonas, usando Berlim como ponto de passagem. Foi o incómodo causado por este fluxo incentivou a União Soviética a anexar as zonas da cidade que não tutelava. Em 24 de Junho de 1948, todos os acessos a Berlim Ocidental foram cortados, por via fluvial, por estrada e pela via-férrea, e o fornecimento de energia foi interrompido. A esperança dos líderes comunistas era que a cidade capitulasse rapidamente pela fome e pela escassez. Começou nesse dia o Bloqueio de Berlim.

O que se seguiu foi uma das mais extraordinárias pontes aéreas da história, conhecida como Berlin Airlift. Contra todas as expectativas, e desafiando os cálculos mais optimistas, foi mesmo possível continuar a abastecer a cidade sitiada de 2.5 milhões de habitantes. It was the epoch of incredulity.

Quando os soviéticos se convenceram que não era viável forçar a capitulação da cidade, o bloqueio foi levantado. Pouco depois formalizava-se a separação da Alemanha em dois países independentes, a República Democrática Alemã, que herdou o sector soviético, e a República Federal Alemã que uniu os sectores americano, britânico e francês. A divisão da cidade mimetizava a divisão da própria Alemanha e Berlim Ocidental passou a ser um enclave, uma ilha, no meio do que chamavam, ironicamente, de Mar VermelhoIt was the age of foolishness.

Nos anos seguintes prosseguiu a fuga de cidadãos da Alemanha Oriental para o Ocidente através de Berlim. O que preocupava de sobremaneira os dirigentes comunistas era o número desproporcionalmente elevado de professores, engenheiros e cientistas entre aqueles que abandonavam o país. Uma fuga de cérebros. A situação era embaraçosa para o mundo comunista, porque apesar de toda a propaganda acerca do sucesso dos países da cortina de ferro, só se fugia num sentido. Em 1961, as autoridades do Leste resolveram colocar um ponto final na situação, construindo um Muro, que para sempre será chamado pelos amantes da liberdade de Muro da Vergonha.

Este não era um muro como os outros. Os muros servem habitualmente para impedir a entrada de indesejáveis, para proteção ou defesa. Aquele muro, bem pelo contrário, servia para impossibilitar a saída. Era como o muro duma prisão que se manteve em pé por 28 anos, como uma barreira num deserto que impedisse o acesso a um oásis.

O muro, quando concluído, tornou-se quase inexpugnável. Ninguém sabe ao certo quantos alemães foram mortos ao tentar escapar do mundo comunista para a liberdade através dele, mas as estimativas apontam para que o muro tenha ceifado mais de 100 vidas, grande parte abatidas a tiroIt was the season of Darkness.

Berlim – e a Alemanha – serviu de experiência quase perfeita para testar a eficiência de dois sistemas: de um lado, democracia, capitalismo e liberdade. Do outro, comunismo, economia planificada e repressão. E os resultados foram, como sempre, irrefutáveis. O lado livre venceu, por goleada.

Tal como na divisão das Coreias, na separação da China e de Taiwan, o fracasso do lado comunista foi também aqui, evidente. Partindo de situações idênticas, chegaram-se a resultados bem diferentes. E mesmo sendo a República Democrática Alemã a menos mal-sucedida de todas as experiências comunistas, não deixou de constituir uma exemplar demonstração da incapacidade de uma economia estatista em comparar-se com outra em que existe liberdade económica, quando ambas começaram exactamente do mesmo ponto.

O nível de vida incomparavelmente superior, a qualidade e variedade dos produtos que estavam disponíveis no lado ocidental, a liberdade política e as superiores opções de vida dos Berlinenses Ocidentais eram apenas uma miragem para quem estava do lado de fora do muro. Esses tinham de viver numa autocracia, sem liberdade política, com temor duma STASI impiedosa e omnipresente num país que não respeitava os mais básicos direitos humanos, com um sistema económico ineficaz e que deixava as pessoas sem esperança e sem direito à ambição.

Duas histórias para a mesma cidade. E o que já era evidente aos olhos de quase todos, tornou-se cristalino no dia em que as barreiras se abriram. Em 9 de Novembro de 1989, milhares de pessoas atravessaram o muro e iam praticamente todas na mesma direção, com olhos marejados de lágrimas, soltando gritos de alegria incontida, espalhando a felicidade de uma sociedade reprimida que subitamente respirava o aroma da liberdade. It was the Autumn of hope.

Foi há 33 anos que o muro foi derrubado. Infelizmente, muitos muros mentais continuam em pé. São os muros daqueles que continuam a acreditar em amanhãs que cantam, dos que anseiam por implementar as mesmas tristes ideias que condenaram tantos milhões a viver em pobreza, sem liberdade, numa prisão dentro das fronteiras dos seus próprios países. São os muros dos que nunca chegaram a compreender o que é viver sem liberdade.

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COMENTÁRIOS: (de 8)

João Floriano: Ainda bem que João Caetano Dias nos fez recordar o bloqueio de Berlim. O ADN russo é imutável. Bloquear e matar pela fome e pelo frio não são nenhuma originalidade de Putin. A história repete-se só que desta vez as pontes, não só aéreas, estabelecem-se com os ucranianos. E mais uma vez o Ocidente será bem sucedido. Aparentemente os processos de retirada mantem-se inalterados: a União Soviética também saiu do muro de mansinho, pela calada. Só que sair do muro não foi  a mesma coisa que sair de Berlim como prova a linda cidade histórica de Potsdam que se viu aflita para se livrar dos ocupantes. Quando passados uns anos finalmente abandonaram as casas, as patentes russas levaram tudo o que puderam desde torneiras a maçanetas de portas, desde vidraças  a mobiliário. Agora também não há diferenças: nem as panelas e talheres dos ucranianos escapam aos ocupantes russos. Uma das grandes recordações dos tempos em que o Muro dividia Berlim, é o Beijo fraternal entre Honecker e Brejnev: mesmo fraternal não deixa de ser grotesco duas bocas velhas e masculinas, os olhos semicerrados, as gravatas de burocratas. Apostaria que deve ser tão fotografado como a porta de  Brandeburgo. Foi uma ideia feliz ter desenvolvido  a crónica com um plano baseado na obra de Dickens. Mas eu não  ficaria por ali e acrescentaria mais um uma alínea: The age of Stupid Gullibility, quando a Europa com os alemães à cabeça se colocaram na dependência do gaz e petróleo russos, baratos, abundantes. Perante o lucro esqueceram as tradições russas de atacar o inimigo. Putin não esqueceu.

S Belo: Um óptimo texto, simples e claro que deveria ser de leitura obrigatória para quem pretende votar ou vir a votar, neste país. Obrigada. As sociedades têm memória curta;  muitos  associam o drama berlinense  a um vago folclore em nov/89 que "dá  para tudo", como já  vimos.  

 

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