Um bonito texto, que nos traz à memória
tanto que por nós passou – em notícias, apenas, por cá – que gostamos de
recordar – desta forma compacta e trabalhada, oferecida por João Caetano Dias, da Iniciativa Liberal, a quem
ficamos gratos, não só pela evocação histórica, mas pela analogia com os tempos
de hoje, com tanto apreciador de muralhas, mas dos que vivem do lado de cá das
ditas, onde podem sobressair mais, numa boa.
Duas Histórias de Uma Cidade
Berlim – e a Alemanha - serviu de experiência perfeita
para testar a eficiência de dois sistemas: de um lado, democracia, capitalismo
e liberdade. Do outro, comunismo, economia planificada e repressão
JOÃO CAETANO DIAS Membro da Comissão Executiva na
Iniciativa Liberal
OBSERVADOR, 10
nov 2022, 00:128
It was the best of times, it was the worst
of times
it was the age of wisdom, it was the age of foolishness
it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity
it was the season of Light, it was the season of Darkness
it was the spring of hope, it was the winter of despair
Charles Dickens, A Tale of Two Cities
Em 1945, a capital da Alemanha estava
uniformemente devastada pela guerra. It
was the worst of times. Berlim era uma cidade homogénea com mais de 750 anos
de existência e que nunca tinha sido dividida. De
súbito, com a separação de Berlim em sectores atribuídos aos vencedores da
Segunda Guerra Mundial, tudo se alterou. De um momento para o outro existiam
duas cidades, uma dominada pela União Soviética, outra formada pelos sectores
britânico, francês e americano.
Foram 45 anos em que a linha da história da cidade se bifurcou, em que
a mesma urbe ensaiou dois sistemas alternativos de governo. No fim desse
período ninguém podia contestar qual tinha sido o melhor.
E
nem foi preciso esperar muito tempo para compreender as diferenças. Nos
primeiros 3 anos de separação, já era manifesta a tendência migratória da
Alemanha controlada pela União Soviética para as outras zonas, usando Berlim
como ponto de passagem. Foi o
incómodo causado por este fluxo incentivou a União Soviética a anexar as zonas
da cidade que não tutelava. Em 24 de Junho de 1948, todos os acessos a Berlim Ocidental foram
cortados, por via fluvial, por estrada e pela via-férrea, e o fornecimento de
energia foi interrompido. A esperança dos líderes comunistas era que a cidade
capitulasse rapidamente pela fome e pela escassez. Começou nesse dia o Bloqueio
de Berlim.
O que se seguiu foi uma das mais extraordinárias pontes aéreas da
história, conhecida como Berlin Airlift.
Contra todas as expectativas, e desafiando os cálculos mais optimistas, foi
mesmo possível continuar a abastecer a cidade sitiada de 2.5 milhões de
habitantes. It was the epoch of incredulity.
Quando os soviéticos se convenceram que não era viável forçar a
capitulação da cidade, o bloqueio foi levantado.
Pouco depois formalizava-se a separação da Alemanha em dois países
independentes, a República
Democrática Alemã, que
herdou o sector soviético, e a República Federal
Alemã que uniu os sectores americano,
britânico e francês. A divisão
da cidade mimetizava a divisão da própria Alemanha e Berlim
Ocidental passou a ser um enclave, uma ilha, no meio do que chamavam,
ironicamente, de Mar Vermelho. It was the
age of foolishness.
Nos
anos seguintes prosseguiu a fuga de cidadãos da Alemanha Oriental para o
Ocidente através de Berlim. O que preocupava de sobremaneira os dirigentes
comunistas era o número desproporcionalmente elevado de professores,
engenheiros e cientistas entre aqueles que abandonavam o país. Uma fuga de
cérebros. A situação era embaraçosa para o mundo comunista, porque apesar de toda a propaganda acerca do sucesso dos
países da cortina de ferro, só
se fugia num sentido. Em 1961, as
autoridades do Leste resolveram colocar um ponto final na situação, construindo
um Muro, que para sempre será chamado pelos amantes da liberdade de Muro da
Vergonha.
Este
não era um muro como os outros. Os muros servem habitualmente para impedir a
entrada de indesejáveis, para proteção ou defesa. Aquele
muro, bem pelo contrário, servia para impossibilitar a saída. Era como o muro
duma prisão que se manteve em pé por 28 anos, como uma barreira num deserto que
impedisse o acesso a um oásis.
O
muro, quando concluído, tornou-se quase inexpugnável. Ninguém sabe ao certo
quantos alemães foram mortos ao tentar escapar do mundo comunista para a
liberdade através dele, mas as estimativas apontam para que o muro tenha
ceifado mais de 100 vidas, grande parte abatidas a tiro. It was the season of Darkness.
Berlim – e a Alemanha – serviu de
experiência quase perfeita para testar a eficiência de dois sistemas: de um
lado, democracia, capitalismo e liberdade. Do
outro, comunismo, economia planificada e repressão. E os resultados foram, como
sempre, irrefutáveis. O lado livre venceu, por goleada.
Tal como na divisão das Coreias, na separação da China e de Taiwan,
o fracasso do lado comunista foi também aqui, evidente. Partindo de situações
idênticas, chegaram-se a resultados bem diferentes.
E mesmo sendo a República Democrática Alemã a menos mal-sucedida de todas as
experiências comunistas, não deixou de constituir uma exemplar demonstração da
incapacidade de uma economia estatista em comparar-se com outra em que existe
liberdade económica, quando ambas começaram exactamente do mesmo ponto.
O nível de vida incomparavelmente
superior, a qualidade e variedade dos produtos que estavam disponíveis no lado
ocidental, a liberdade política e as superiores opções de vida dos Berlinenses
Ocidentais eram apenas uma miragem para quem estava do lado de fora do muro.
Esses tinham de viver numa autocracia, sem liberdade política, com temor duma
STASI impiedosa e omnipresente num país que não respeitava os mais básicos
direitos humanos, com um sistema económico ineficaz e que deixava as pessoas
sem esperança e sem direito à ambição.
Duas histórias para a mesma cidade. E o que já era evidente aos olhos de quase todos,
tornou-se cristalino no dia em que as barreiras se abriram. Em 9 de
Novembro de 1989, milhares de
pessoas atravessaram o muro e iam praticamente todas na mesma direção, com
olhos marejados de lágrimas, soltando gritos de alegria incontida, espalhando a
felicidade de uma sociedade reprimida que subitamente respirava o aroma da
liberdade. It was the Autumn of hope.
Foi
há 33 anos que o muro foi derrubado. Infelizmente, muitos muros
mentais continuam em pé. São os muros daqueles que continuam a acreditar em
amanhãs que cantam, dos que anseiam por implementar as mesmas tristes ideias
que condenaram tantos milhões a viver em pobreza, sem liberdade, numa prisão dentro
das fronteiras dos seus próprios países. São os muros dos que nunca chegaram a
compreender o que é viver sem liberdade.
COMUNISMO POLÍTICA ALEMANHA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS: (de 8)
João Floriano: Ainda bem que João Caetano Dias nos fez recordar o
bloqueio de Berlim. O ADN russo é imutável. Bloquear e matar pela fome e pelo
frio não são nenhuma originalidade de Putin. A história repete-se só que desta
vez as pontes, não só aéreas, estabelecem-se com os ucranianos. E mais uma vez
o Ocidente será bem sucedido. Aparentemente os processos de retirada mantem-se
inalterados: a União Soviética também saiu do muro de mansinho, pela calada. Só
que sair do muro não foi a mesma coisa que sair de Berlim como prova a
linda cidade histórica de Potsdam que se viu aflita para se livrar dos
ocupantes. Quando passados uns anos finalmente abandonaram as casas, as
patentes russas levaram tudo o que puderam desde torneiras a maçanetas de
portas, desde vidraças a mobiliário. Agora também não há diferenças: nem
as panelas e talheres dos ucranianos escapam aos ocupantes russos. Uma das
grandes recordações dos tempos em que o Muro dividia Berlim, é o Beijo
fraternal entre Honecker e Brejnev: mesmo fraternal não deixa de ser grotesco
duas bocas velhas e masculinas, os olhos semicerrados, as gravatas de
burocratas. Apostaria que deve ser tão fotografado como a porta de Brandeburgo.
Foi uma ideia feliz ter desenvolvido a crónica com um plano baseado na
obra de Dickens. Mas eu não ficaria por ali e acrescentaria mais um uma
alínea: The age of Stupid Gullibility, quando a Europa com os alemães à cabeça
se colocaram na dependência do gaz e petróleo russos, baratos, abundantes.
Perante o lucro esqueceram as tradições russas de atacar o inimigo. Putin não
esqueceu.
S Belo:
Um óptimo texto, simples e claro que deveria ser de
leitura obrigatória para quem pretende votar ou vir a votar, neste país.
Obrigada. As sociedades têm memória curta; muitos associam o drama
berlinense a um vago folclore em nov/89 que "dá para
tudo", como já vimos.
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