De um discurso que nem sabemos se é
carne ou se é peixe. Provavelmente, nenhum dos dois, que estamos na era das verduras,
daí a inconsistência destes discursos em que, ao invés de apoiarem uma frente
comum que fosse ajudar os ucranianos, a defender o seu território, teorizam
sobre a invencibilidade e persistência de Putin, em vez de apelarem a um
auxílio real àqueles que estão a defender-se tão corajosamente e a defender uma
Europa que, se for coerente, terá mesmo que entrar na guerra, se a Rússia
invadir qualquer dos países pertencentes à Nato, coisa que vão arrastando em
relação à Ucrânia, embora ajudando-a com armas e financeiramente. A verdade é
que não entendi bem o discurso de JPP, nem talvez ele queira que o
compreendamos tão drástico se mostra relativamente a uma guerra sem fim à
vista. Ou com o fim de desastre nuclear que ele prevê, sem um apelo – por inútil
que fosse – a uma consciência de maior partilha nesse apoio contra uma Rússia
doente de arrogância e bestialidade. Que “A guerra da Ucrânia não tem solução negociada”, sabe-se. Então o que é
preciso é acorrer em auxílio desse povo e não ficar de boca aberta, à espera do
tal desastre nuclear. Mas isso, não o diz PP, e por isso não entendo bem o seu
discurso de prudência, sabendo o que nos espera.
Habituemo-nos àquilo a que nunca nos deveríamos
habituar
A guerra da
Ucrânia não tem solução negociada.
PÚBLICO, 22 de
Outubro de 2022
A guerra da Ucrânia vai-se
agravar em termos militares, em termos de destruição, em termos de mortes
civis. A guerra da Ucrânia não tem solução negociada. A guerra da Ucrânia
vai-se alastrar em termos geográficos e nacionais. A guerra da Ucrânia vai
chegar ao limiar de um conflito nuclear, não penso que o ultrapasse. Para já.
Quem não compreende isto não se prepara como deve.
Nenhuma previsão realista pode deixar de ter em conta estas circunstâncias: estamos
em guerra com todas as consequências económicas, sociais, militares e políticas.
Não é uma questão de a desejarmos, é um facto. As acusações de belicosidade
só podem ter um destinatário, Putin, e, quando não têm e misturam tudo, são
pura hipocrisia.
Acho, apesar de tudo, que vários governos
democráticos, incluindo o português, já o perceberam. Podem não ter tirado
ainda todas as consequências, mas sabem que vamos conhecer anos, se não
décadas, marcados pela guerra da Ucrânia, seja “a quente” seja “a frio”. Deixo de parte os aliados objectivos de Putin, quer na
direita, quer na esquerda que, mesmo com um palavreado sobre a “paz”, a última
coisa que desejam é que a Rússia perca a guerra que provocou.
Voltemos atrás às afirmações iniciais. Algumas são
evidentes pelo que não vale a pena perder muito tempo com elas, a não ser para
sublinhar o seu aspecto trágico. Vai haver muitos mais mortos civis,
directamente por causa dos combates, mas acima de tudo porque a Rússia
prossegue uma política de destruição de infra-estruturas civis e de
intimidação das populações pela violência. Não é uma política única, são
duas, ambas crimes de guerra, embora com uma longa história das mesmas práticas
em vários conflitos na Europa, no Próximo Oriente, em África, na Ásia. Há pouca
gente com as mãos limpas, os EUA, Israel, a Síria, nos Balcãs, no Cáucaso, nas
Coreias. Seja como for uma coisa não justifica a outra.
A diferença no caso da Ucrânia
está na dimensão de um conflito que se estende por um vasto país, com grandes
cidades e concentrações populacionais. A Rússia vai incrementar esta política
de destruição e ataques a civis, em relação directa com os seus fracassos no
terreno militar.
A afirmação de que esta guerra não tem solução
negociada é talvez a mais controversa e a que precisa de explicação. Em bom
rigor, penso que nunca a teve, mas agora é mais evidente que não tem, desde que
a Rússia anexou os territórios ucranianos na federação. Este é um ponto sem
retorno, porque a partir da anexação não é possível haver uma paz que não seja
a rendição da Ucrânia com perda do seu território nacional. Por outro lado, Putin nunca
pode recuar nessa incorporação imperial, sem admitir que perdeu a guerra e que
as reivindicações territoriais russas na Ucrânia, incluindo a Crimeia, na
Geórgia, na Moldova, são ocupações por uma potência estrangeira. Se a paz já
era difícil, depois das anexações é impossível. Quem continua a falar de “paz”, assobiando para o lado
depois dos referendos fantoches e da formalização da anexação pela Federação
Russa num simulacro de legalidade, de novo quer apenas a rendição da Ucrânia.
A outra afirmação inicial que pode justificar
mais explicações é a do alastramento da guerra. Embora a Bielorrússia esteja na
guerra desde o início, os passos dados recentemente com a criação de
contingentes comuns com a Rússia e as ameaças nas regiões fronteiriças são um
passo para o retorno às formas iniciais do conflito, ameaçando Kiev e a Polónia. A Geórgia, que tem parte do seu território ocupado
num esquema semelhante ao que os russos desenvolveram no Donbass, e a Moldova,
que tem uma “república” cisionista do outro lado do Dniestre, criada pela
presença de um exército russo quando da fragmentação da URSS, podem também
assistir a anexações formais, embora já o sejam de facto.
Os países bálticos também sentem o risco, em
particular a Lituânia, com o enclave da antiga Prússia Oriental, agora com
capital em Kaliningrado, parte da Federação Russa sem contacto geográfico e por
isso dependente de acordos de circulação. A Polónia também está na linha da
frente, por todas razões logísticas, militares e políticas. Cá longe, do outro
lado da Europa, podemos pensar que a guerra é distante, mas para estes países
está à porta e muitas vezes já com um pé na porta.
A razão por que Putin acena com um conflito nuclear
vem de ele e os militares russos saberem que uma entrada da NATO no conflito,
mesmo que apenas com meios convencionais, infligiria uma pesada derrota aos
russos, num período de tempo muito curto. Tradicionalmente a grande vantagem
que a URSS tinha no plano militar sobre a NATO era a sua enorme capacidade numa
guerra terrestre de colocar vagas sobre vagas de tanques a chegarem aos portos
do Atlântico em poucos dias, cortando a possibilidade de chegada a tempo ao
teatro europeu dos reforços americanos. Foi esta desvantagem que justificou a
colocação de mísseis nucleares tácticos na Europa, para além de muitas outras
medidas de pré-posicionamento de meios. Isto, simplificando.
Ora o que aconteceu na Ucrânia
foi a verificação de que o rolo compressor dos blindados russos não funcionou e
mostrou enormes debilidades, o que explica a dependência russa dos mísseis e
dos drones à distância e da
superioridade aérea. Mas, mesmo isso, pode estar a acabar com o novo armamento
que a Ucrânia está a receber.
Por isso, as ameaças de Putin ainda são um bluff, mesmo que ele diga que não
são. Também penso que há racionalidade em Putin e nos seus aliados que não os
impeça de perceber o que aconteceria numa guerra nuclear. Mas a trivialização
da ameaça é em si mesmo muito perigosa.
Por último, há quem diga que
tem mais medo da derrota de Putin do que de uma vitória ou meia vitória russa.
Estão enganados: a derrota é certamente perigosa, mas não haverá paz nem fim da
guerra sem essa derrota.
O
autor é colunista do PÚBLICO
TÓPICOS OPINIÃO RÚSSIA UCRÂNIA GUERRA NA
UCRÂNIA VLADIMIR PUTIN NATO
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