Sociedades bipartidas, por cuja
manipulação, em questão de eleições, a comunicação social é responsável, como
4º poder, segundo designação já ultrapassada, pois parece estar à frente na exposição das opiniões... e dos números, na sua qualidade investigadora, nem sempre,
contudo, de grande plausibilidade, como, no caso brasileiro e norte-americano,
o Dr. Jaime Nogueira Pinto bem
demonstra, com a reflexão costumeira.
Estados Unidos: o dilema republicano
A crer nalguns comentadores da imprensa conservadora,
Trump é o principal responsável pelo facto de a vitória republicana não ter
tido a dimensão esperada.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 12 nov 2022, 00:2034
Já
me devia ter habituado, mas ainda me espanto com a capacidade de manipulação e
prestidigitação da chamada “imprensa de referência” e, por arrastamento, de
grande parte da comunicação social.
Na
semana anterior, as habilidades mediáticas passavam-se no palco das eleições
brasileiras, terminando com a vitória apoteótica do favorito dos ilusionistas
da informação. Ali, a
proeza era demonstrar que o impoluto Lula da Silva, o “metalúrgico idealista,
moderado, pragmático e generoso” vencia – tinha de vencer – o quase-fascista
Bolsonaro, para que os bons prevalecessem sobre os maus. Houve até um
observador português que chegou a ver do camarote de um Observatório
devidamente credenciado e financiado, a derrota, não do “quase-fascista
Bolsonaro”, mas do “fascista Bolsonaro”. E quem diz fascista, diz nazi.
Ficou
por dizer que o angélico Lula ganhou exclusivamente à custa do Nordeste, uma
região encantadora na paisagem, na literatura e na música, terra de coronéis,
jagunços e caipiras nas sagas de Jorge Amado e de José Lins do Rego, mas que só
representa 15% do PIB do Brasil. E que o diabólico Bolsonaro ganhou no resto do
imenso território da nação-continente, com os votos de 58 milhões de
brasileiros de todas as classes e regiões. E ganhou apesar das omissões, das
histórias mal contadas, das distorções grosseiras da verdade, e do empenhado
discurso de ódio ao maligno dessa mesma imprensa de referência, dentro e fora
do Brasil.
Esta
semana, na Terça-Feira, 8 de Novembro, foi outra história de encantar, um
circense “era uma vez na América” com todo um outro, mas igualmente criativo,
guião. No
festival eleitoral de luz e som que a generalidade dos media proporcionou
ao povo, os maus eram os Republicanos, com Trump, co-adjuvado pelos juízes do
Supremo Tribunal de Justiça, como super-vilão. Os bons eram os
Democratas, com o inefável Biden como cabeça de cartaz. Como toda a gente sabe,
os Republicanos querem acabar com a Democracia, tanto que passaram a pertencer
a uma nova categoria, a de “semi-fascistas”, produto da criatividade
sociopolítica do genial Joe Biden: “Quem vota em “semi-fascistas”, põe
em perigo a Democracia”, disse Joe, soprando o cano da sua arma fumegante e
rumando ao pôr-do-sol.
Este
democrático desempenho de Biden e da imprensa de referência – com um “quem quer
salvar a Democracia na América só pode votar num partido: o Democrático” como
moral da história – é consciente ou inconscientemente adoptado, por militância
ou ignorância, pela maioria dos nossos noticiaristas, especialistas e
comentadores.
Adiante.
Passado o desabafo, e ainda sem dados definitivos, vou tentar centrar-me nos
resultados.
O que está em jogo: princípios e pessoas
As
eleições do chamado “Mid-Term” são, em geral, desfavoráveis ao partido que está
na Casa Branca. Ficou famosa, em 1994, durante o primeiro biénio da presidência
de Bill Clinton, a conquista do Congresso pelos Republicanos, capitaneados por
Newt Gingrich, um líder conservador, agressivo e determinado. Desta vez, com
a baixíssima popularidade de Joe Biden e com a inflação e o preço dos
combustíveis como preocupações maiores dos eleitores, esperava-se,
moderadamente, uma onda vermelha, dando-se praticamente por certa a tomada da
câmara baixa dos Representantes pelos Republicanos e prevendo-se uma possível,
ou até provável, conquista do Senado.
Até
agora, tal não sucedeu, mas espera-se que os Republicanos venham a ficar em
maioria nos Representantes – embora com uma vantagem ligeira. O Senado
(quando ainda não saíram os resultados do Nevada e do Arizona) terá
provavelmente de esperar pela segunda volta em Dezembro, na Geórgia, onde nem o
candidato republicano nem o democrata chegaram aos 50%. E, ali, pode ficar tudo
na mesma.
A
agenda principal dos Republicanos assenta na crítica do circunstancialismo
económico e social do momento, cuja culpa é sempre dos governos. Além desta
questão central, os temas são os clássicos do nacionalismo conservador e
identitário: a defesa da família e da vida, o combate à doutrinação radical
na educação, a luta contra a imigração ilegal, contra a criminalidade e contra
a droga e defesa da liberdade de porte de arma. Nem todas estes assuntos
têm a mesma importância e prioridade, dependendo dos Estados e da sua tradição
e cultura.
A
par destas questões substanciais, umas de doutrina e princípio e outras de
política e estratégia, subsistem aspectos mais episódicos e pessoais, mas
também determinantes.
Aqui
avulta, entre todos, a personalidade e o protagonismo do ex-Presidente Trump, e
a sua insistência no assunto (muito discutível e discutido) da validade das
eleições de 2020. A fraude e a
consequente ilegitimidade de Biden é um artigo de fé para Trump e para uma
série de republicanos agora eleitos. Mas não para outros. Não para todos. Os
Democratas procuraram reduzir os seus adversários à controversa figura de
Trump, às suas teses “conspiratórias” e ao ataque ao Congresso de 6 de Janeiro
de 2021.
Mas,
a crer nalguns comentadores da imprensa conservadora, como Rod Dreher em The
American Conservative ou Ann Coulter, na Taki’s Magazine, Trump é
o principal responsável pelo facto de a vitória republicana não ter tido a
dimensão esperada.
Porque,
quando 72% dos inquiridos acham que o país vai na direcção errada, quando o
Presidente tem de ser quase “cancelado” pelos seus próprios colaboradores para
não se enredar em gaffes e confusões, quando o Partido Republicano
cresceu em termos de conquista de votos “hispânicos” e até de votos
afroamericanos, não se compreende a não-eclosão de uma vaga vermelha.
Trump: a persistência
de uma herança ambígua
Segundo
o Washington Post, “um terço dos eleitores americanos acredita que a
eleição de Biden em 2020 foi ilegítima”. Independentemente do valor deste
género de sondagens, a questão acaba por ser marginal – e divide os
Republicanos, embora os negacionistas sejam maioritários no partido.
Para
outros conservadores, como o historiador Victor Davis Hanson, Trump, que em
2016 conseguiu captar o descontentamento da América dos “perdedores” do
globalismo, dos Estados da “ferrugem”, dos descendentes das famílias operárias
de Detroit e Pittsburgh, dos trabalhadores do automóvel e do aço, cujas
fábricas e empregos voaram há 30 anos para o México e para a China, pode agora
estar a transformar-se num elemento de divisão dos Republicanos; alguém que
divide os amigos e une os inimigos.
A
avaliação objectiva deste papel de Trump, baseada na performance dos
seus seguidores e protegidos na eleição, não é fácil de estabelecer, na medida
em que alguns desses seus seguidores, como J.D. Vance, eleito senador pelo
Ohio, têm substância e tiveram sucesso; enquanto outros, como Doug Mastriano,
derrotado na eleição para governador da Pensilvânia, tiveram uma campanha
radical, com ditos e resultados desastrosos.
O protagonismo de Trump funcionou como
um elemento perturbador num cenário em que, no seu essencial, era favorável aos
Republicanos. Ao centrar na sua figura a causa da oposição, o ex-Presidente –
que teve os seus méritos no passado e está longe de ser o lunático criminoso
que pintam os seus inimigos – facilitou a propaganda dos Democratas. A
memória do “assalto ao Capitólio”, em Janeiro de 2021, persistiu como um ícone
negativo para Trump e para os seus seguidores e, nas vésperas das eleições, os
Democratas mobilizaram esforços e figuras – de Obama a Biden – para dramatizar
a situação, descrevendo uma eventual vitória Republicana como a vitória da
opressão e da desordem. E veio a
história de que o paranóico que invadiu a casa dos Pelosi e agrediu o marido da
líder democrata era um elemento do MAGA, possuído pelo discurso de ódio; e o
apelo de Biden ao voto contra os Republicanos, caricaturando a legislação
sobre o aborto, que se limita a passar para as instâncias estaduais a decisão,
como uma sentença de morte passada às jovens americanas grávidas, atiradas para
os perigos do aborto clandestino.
Apesar
de toda esta propaganda e demagogia, apesar de algum caos nas contagens, da
confusão dos votos pelo correio, que alimentam as suspeitas populares sobre
fraudes e recontagens, os Republicanos vão muito provavelmente ganhar a Câmara
dos Representantes e manter o empate formal no Senado (sempre desempatado pela
Vice-Presidente Kamala Harris).
Claramente, a
táctica da Esquerda, uma esquerda muito híbrida, que vai do errático grande
capital financeiro aos radicais Woke, é transformar em vitória uma derrota –
que temiam, e com razão, que fosse muito maior. E explorar as divisões no campo
republicano, sobretudo a rivalidade entre Trump e o governador De Santis,
encorajando-os a atacarem-se mutuamente.
De Santis foi reeleito governador da
Florida. Há quatro
anos tinha ganho o cargo por uma margem mínima de 32.463 votos. Desta vez,
contra o mesmo adversário, ganhou por mais de 1.500 000 votos, cerca de 60%
contra os 40% do seu opositor, com proezas eleitorais inéditas, como ganhar em
Miami- Dade County, que há mais de 20 anos não elegia um republicano.
Em 1998, nas Midterm Elections do
segundo mandato de Bill Clinton, também se esperava uma vaga vermelha que não
veio, e Newt Gingrich e a sua liderança foram atingidos por esse insucesso.
Dessas eleições emergiu George W. Bush, então governador do Texas, que em 2000
ganharia por uma pequeníssima diferença a Casa Branca para os Republicanos.
Comparado
com o puro e duro Gingrich, Bush, com o seu conservadorismo de rosto humano e o
seu cristianismo born-again, aparecia como um republicano com grande
sucesso junto do eleitorado “latino”. Gingrich abandonou a liderança do
Congresso uma semana depois.
Alguns
analistas americanos, como Matthew Continenti, do America Entreprise Institute,
autor de The Right: The Hundred Years War of American Conservatism,
convergem na ideia de que foram o “abrasive style” e a “divisive leadership” de
Trump, que causaram este relativo insucesso e que poderão causar outros, na
medida em que o Presidente se terá tornado um elemento perturbador da
reconquista pelos Republicanos do poder na América.
Além dos efeitos da guerra da Ucrânia
na economia americana (note-se que a política externa ficou de fora da
campanha, como se não existisse ou fosse comum), a conjuntura actual é
marcada pela influência que os elementos da esquerda radical ganharam no
Partido Democrático, um partido tradicionalmente entre o centro e
centro-esquerda. Essa influência em matéria de princípios, de família e de
religião, desencadeou – como sempre sucede – uma radicalização paralela entre
os Republicanos.
A
surpreendente vitória de Trump em 2016 não teve tanto a ver com esta
contradição. Foi mais um reflexo popular ou populista das classes trabalhadoras
e das classes médias brancas americanas, perante uma representante da elite
liberal-chique, desligada dos seus problemas e da sua sorte, que lhes chamou
“deploráveis”.
Trump,
com o seu modo truculento e agressivo, encarnou então o protesto, a alternativa
a Hillary Clinton que, por sua vez, simbolizava essa elite deslumbrada e
arrogante de que os “deplorables” se queixavam. Havia uma América profunda,
patriota, conservadora, identitária, que se sentia ameaçada e humilhada pela
elite liberal, uma América que J.D. Vance, agora eleito senador pelo Ohio,
lembra em Hillbilly Elegy.
Desta
vez, a situação e as contraposições são outras: as
concessões e contradições de Biden, um católico oficial que se empenha na
campanha pró-abortista, tropeça nas palavras e promove o wokismo, criavam um
inimigo ideal para unir os amigos e aliados objectivos. Só que Donald Trump, com as suas intervenções e a sua
Agenda de reivindicações pessoais – como o tema da Eleição de 2020 e os seus
escolhidos e rejeitados – criou, internamente, um forte sentimento de rejeição
que afectou potenciais eleitores conservadores.
Líderes
republicanos como Ron De Santis, com a sua vitória em toda a linha, parecem ser
a alternativa. Trump foi
importante na criação de um outro Partido Republicano, socialmente mais
alargado e racialmente mais integrado. Porém, as suas escolhas e o seu
patrocínio de maus candidatos parece estar na base das derrotas e insucessos do
Partido Republicano em Estados como a Pensilvânia, o Arizona e a Geórgia, onde,
à partida, os Republicanos podiam ter vencido.
De
Santis é um nacional-conservador afirmativo, coerente e combatente, com ideias
e com coragem. A escolha de um candidato republicano à Presidência deveria,
racionalmente, cair nele ou em alguém como ele. Mas, realisticamente,
Trump tem influência e poder mais que suficientes para neutralizar qualquer
concorrente alternativo ou para lhe fazer a vida negra. E, se rejeitado pelo
Partido, pode bem patrocinar uma candidatura independente.
O dilema da direita americana não vai
ser fácil de resolver.
ELEIÇÕES
EUA ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS: (De 34)
V. Oliveira: Como
habitualmente, impoe-se a leitura dos artigos de J.N. Pinto. Haja onde possamos
ver o contraditório. Do "jornalismo de referência", o reino da
opinião única, já se sabe: á nascença a esquerda é um santuário imaculado e na
direita estão os maus deste mundo... E qualquer ideia contrária á dos
imaculados dá direito a ser rotulado com algo que rima com taxista... João Ramos > Joaquim Ribeiro: Eu assino o Observador apenas pelos artigos de opinião,
em que ressalvo os de Jaime Nogueira Pinto, João Ramos e Alberto Gonçalves e
poucos mais, o resto, sobretudo a parte jornalística deixa muito a desejar o
que é de facto uma frustração… Maria Nunes:
Excelente, como sempre. De leitura
obrigatória. Obrigada, JNP. Maria Clotilde Osório:
Excelente análise. Pelo que se entende,
lá como cá, a crise da direita é patrocinada pela própria direita. Maus
candidatos e maus programas. Mas, sobretudo, uma incapacidade de se fazer ouvir
pela CS. Nesta altura do campeonato o CM e a CM TV são excelentes opções. Há
que usar as mesmas armas se se quer atrair as franjas e uma classe média cada
vez menos média
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