Olha se ele não desmaiasse – isto é, “negasse”! Abençoado
desmaio!
Sobre a negação
em política
Em política, a negação radical não é
bem-vinda. A fuga pura e simples – a admissão da derrota, por mais insuportável
que seja – deve ser a regra. Mas foi o desmaio que Trump escolheu quando
perdeu.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 10
nov 2022, 00:209
Aparentemente,
haverá vitória republicana na Câmara dos Representantes. No Senado, ainda não
se sabe. Pode continuar tudo na mesma, com republicanos e
democratas empatados e Kamala Harris a desempatar a favor dos democratas. Não procurei seguir a lista enorme de outras coisas
em que os americanos votaram nestas eleições. Mas sei que muitos
republicanos estão frustrados por a anunciada “onda vermelha” não se ter
verificado. E, naturalmente, o sentimento dominante entre os democratas é o de
alívio. Ouvi mesmo um deles, na CNN americana, declarar que
o sentimento mais poderoso não é a felicidade: é o alívio. Por acaso, tendo, em
geral, a concordar.
De
qualquer maneira, pesava sobre estas eleições o fantasma do mais célebre
morto-vivo da história recente, Donald
Trump, e não
parece que a sua presença tenha sido particularmente favorável aos
republicanos, que têm agora uma nova estrela, Ron DeSantis.
E, convenhamos, depois da farsa grotesca – é, creio, a expressão que convém
– do ataque ao Capitólio, numa versão peplum das lutas entre populares e optimates no
fim da República Romana, dificilmente se poderia passar de modo diferente. Com
efeito, não tenho memória de um tão gigantesco suicídio político, feito quase a
pedido dos democratas. O
historiador e classicista Victor Davis Hanson escreveu há uns anos um livro (The
Case for Trump) onde
analisava aquilo que, até 2018, fora bom – e houve coisas boas – e mau na presidência de Trump. Acabava,
interessantemente, recorrendo à figura do western. E imaginava que Trump poderia acabar como aqueles
heróis que, depois de terem feito o necessário para pôr ordem na terrinha, são
despachados para outro lado qualquer. O que ele não imaginava (nem eu) é
que a coisa se pudesse passar como se passou. Como se, no final do filme, John
Wayne começasse a disparar em todas as direcções. Ou, na obra-prima de
Ford, O homem que matou Liberty Valance, tivesse assassinado Jimmy
Stewart.
À sua maneira, isto mostra até que ponto a democracia é artificial,
no sentido de ser uma construção humana que vai contra muitos dos nossos
instintos mais primitivos. Reconhecer uma derrota é tudo menos natural,
sobretudo em eleições, como as americanas, que exigem dos concorrentes um
investimento psíquico tão formidável que nos é difícil imaginá-lo. A
quantidade de mecanismos mentais mobilizados para perseverar na campanha não se
conta. As doses de auto-ilusão consumidas no processo são praticamente
infinitas. O choque bruto da derrota – o confronto com um Não-Eu que limita
decisivamente o Eu, para falar filosoficamente – é tudo menos facilmente assimilável. Já o é para políticos que se formaram e cresceram no
interior dos partidos, onde, apesar de tudo, adquiriram, de múltiplas maneiras,
a experiência de conviver com derrotas dentro desses mesmos partidos (lembrem-se
de Hillary Clinton). Agora
imaginem como o será para alguém – é, claramente, o caso de Trump – que, pura e simplesmente, tomou conta de um
partido a partir do exterior. A dificuldade em aceitar uma derrota pode
atingir proporções cósmicas: ela é, literalmente, inconcebível. O fortíssimo
investimento psíquico não admite tão colossal decepção.
A filosofia, desde há muito,
estabeleceu uma analogia entre, por um lado, afirmação e negação, e, por outro,
perseguição e fuga.
Encontramo-la em autores tão diversos como Aristóteles e Descartes. E Hobbes associava a negação a uma
“vontade de omitir”. No caso
das eleições, os vencedores – aqueles que se afirmam – figuram os
predadores e os derrotados
– aqueles que negam – a presa. É
a negação que é verdadeiramente interessante. Porque ela pode dar-se de, pelo
menos, duas maneiras. Como pura e simples fuga, e isso corresponde,
eleitoralmente, à admissão da derrota. Mas a negação pode ser mais radical.
Foi
essa concepção radical da negação
que Sartre desenvolveu numa sua
obra de juventude, o Esboço de uma teoria das emoções. O exemplo
que ele dá é o do desmaio por medo.
Ignoro se a teoria de Sartre é verdadeira, mas é tão boa que merecia sê-lo. O
que faz, ao fim e ao cabo, quem assim desmaia? Nega a existência do objecto que
o ameaça. O objecto, como por milagre, desaparece da consciência, e, de um
certo modo, deixa de existir. Imaginem que estão na vossa sala a ver
televisão e, de repente, vos entra por ela dentro um tigre siberiano. Admito
que haja pessoas de valor extraordinário que, qual Tarzan, avancem para o
animal para um heróico combate corpo-a-corpo. Por mim, e sem ter qualquer
prazer em me diminuir através desta confissão, o mais possível era que
desmaiasse. Seria muito mais fácil: o tigre deixaria de existir na minha consciência,
que o negaria por inteiro. É claro que ele me esfacelaria à mesma, mas a
minha consciência estaria, por assim dizer, segura.
É um tipo de segurança que não convém
à política. Em política, a negação radical não é bem-vinda. A fuga pura e
simples – a admissão da derrota, por mais insuportável que seja – deve ser a
regra. Mas foi o desmaio que Trump escolheu, para sua desgraça, quando perdeu
as eleições para Biden. E, aparentemente, continua desmaiado, em intensa
actividade onírica. Segundo todas as aparências, Ron DeSantis não se inclina
para a negação radical. Tanto melhor para ele e para os republicanos. É mais
normal.
ELEIÇÕES EUA ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS
Paulo Sousa: Tudo bom. Obrigado pelo texto. Cisca Impllit
> Paulo Sousa: Sim, muito bom texto; pura e simplesmente é de
agradecer tê-lo-no dado a ler! Carlos Quartel:
Há que saudar o fim do pesadelo. Trump
foi uma excrescência anormal no sistema, o disparatado movimento que criou está
em remissão e a sua democracia americana parece entrar nos eixos. De
facto, o que há a considerar é que os americanos continuam a ser os mais
activos e radicais nas opções, autêntico laboratório para sociólogos e
filósofos, como o autor. À vista do leigo, parece que os democratas fizeram uma
campanha de apelo à racionalidade e que tiveram êxito. Em todo este episódio, o
que ressalta é a liberdade e a confiança na capacidade individual de destrinçar
entre o correcto e o incorrecto, entre a mentira e a verdade. Cisca Impllit
> Carlos Quartel: O seu comentário também é mt bom de ler! José Manuel Pereira: Excelente de novo. Estou em perfeita sintonia e aprendi
outra vez mais alguma coisa. João
Floriano: Excelente
crónica. Uma das coisas que me confunde em políticos como Trump, Lula e
Berlusconi é o desperdício que fazem dos seus últimos anos de vida que bem
podiam ser passados de modo tranquilo e a gozar os prazeres da vida em vez de
se imolarem na fogueira da vaidade (eu sei que é um lugar comum...). Não
aproveitam as companheiras jovens que todos têm, o solzinho para umas tacadas
de golfe, as recordações fantásticas das experiências que a vida lhes
proporcionou. E lá vão eles de novo para o combate queimar os seus últimos
cartuchos. No caso de Trump (separemos Trump do resto do partido republicano),
o que mais me custou foi o ataque nada leal a DeSantis. Pedro de Freitas
Leal: Filosoficamente muito divertido! Paulo,
gostei muito da sua análise. Mas não se esqueça de que os Democratas, ao que
tudo indica perdedores destas intercalares, já cantam vitória por não terem
perdido ainda mais. A isto se pode chamar a generalização do desmaio, não
apenas dos políticos do Partido Democrata, mas sobretudo dos jornalistas que
inabalavelmente os apoiam mundo fora. Américo Silva: Quem está e vai continuar em total narcolepsia, é a
democracia, dirigida pelo financiamento ganha o mais financiado, e pela
comunicação social, ganha o mais bem apresentado. bento guerra: Tão intelectual e tão acintoso. De Trump se dirá, como
de Mark Twain, o anúncio da sua "morte" é manifestamente prematuro.
Os maus resultados resultaram de más sondagens. Aguardemos a clarificação entre
ele e DeSanctis,mas a popularidade dele é mais alargada. E do lado
"democrático", será o já caquético Biden , então com 80 anos?
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