De intimismos e frivolidades reduzidas a rumores
que pouco adiantaram em relação aos dos tempos das “saias de Elvira”, trunfo irónico
da designação queirosiana para uma mentalidade sacudida por estremeções de
sentimento e ruído, como já era e continua a ser esta nossa, pouco apurada em
aprofundamentos mais do foro espiritual, não admira o ruído à volta dessas
novas temáticas em torno das novas “saias” da presunção actual, sacudida dos
frémitos revolucionários dos vingadores dos seus antepassados escravizados,
segundo lhes é martelado, no incitamento ao ódio. “Pela calada”, mas com o murmúrio
saliente, que não haveria caso fôssemos um grande país, do tipo desse que de
tantos se apoderou e pretende continuar, sem que jamais lhe fosse ou seja imputada
a designação de “colonizador”, tratado sempre com a veneração específica das
cobardias dos tais povos pequeninos da bajulação aos grandes … e do desprezo aos
pequenos, que se ajuda a reduzir, explorando, em proveito próprio, mau grado
esses tais desígnios de fraternidade igualitária, chavão para boi dormir…
Fazer
reset e avançar pela calada
O objectivo dos activistas woke já não
é convencer-nos da especificidade maléfica do envolvimento português no tráfico
e na escravidão, mas introduzir esse estigma no ensino da disciplina de
História.
JOÃO PEDRO MARQUES, Historiador
e romancista
OBSERVADOR, 09
nov 2022, 00:1621
Em
Abril de 2017 o activista, historiador e político Rui Tavares veio exigir, nas páginas do Público, uma grande discussão
pública sobre o papel de Portugal na história da escravatura. Em finais de Outubro
de 2022 — há dias, portanto — a também activista (e socióloga) Cristina
Roldão repetiu, no mesmo jornal, aquele apelo: “urge saber fazer uma
discussão aberta sobre a participação de Portugal no tráfico transatlântico,
sobre o trabalho forçado (…)”.
Importa
ter presente que a activista fez este apelo após cinco anos e meio de
alargadíssimo debate sobre o tema da escravatura, durante o qual muito se
escreveu, mostrou e disse sobre o assunto (só à minha conta foram 50 artigos,
três livros, várias entrevistas e algumas intervenções televisivas). Tendo isso
em mente, pergunta-se: fará algum sentido o apelo de Cristina Roldão? Os
leitores que seguiram, mesmo que ao de leve, o debate sobre escravatura poderão
julgar que se trata de distracção da socióloga ou que tanto ela como outros
activistas são herméticos ou refractários ao conhecimento. Mas não é nada
disso. Muitos dos mais conspícuous activistas woke são atentos e
argutos. O que se passa é que o debate não correu como tinham desejado e
antecipado, e por isso fingem que ele não chegou a acontecer. Ou seja,
fazem resetpara limpar o que está para trás e começar tudo de novo numa
folha em branco. E, tapando os olhos e os ouvidos ao que durante estes cinco
anos e meio foi contraposto ao seu wokismo, persistem na repetição das mesmas
mensagens e na estratégia de contornar o obstáculo que surgiu no seu caminho.
Numa palavra, vencidos mas não convencidos.
E não se ficam por esse reset.
Não se sentindo competentes e suficientemente sabedores para fazer vingar os
seus pontos de vista num embate directo em torno de factos e questões
concretas, os activistas woke vão transferindo esse embate para a
questão do ensino. O objectivo principal passou a ser já não o de convencer a
opinião pública sobre uma suposta especificidade maléfica e pioneira do
envolvimento português no tráfico e na escravidão, mas introduzir essa
caracterização, essa mensagem, esse estigma, no ensino secundário da disciplina
de História e nos manuais por onde ela é
ministrada. Trata-se de um objectivo mais subterrâneo, alcançável no
âmbito dos gabinetes de estudo e das decisões ministeriais, e que por isso
mesmo se torna muito mais difícil de confrontar e de contrariar. Há razões para
crer que a esquerda woke está a levar essa água ao seu moinho e que a
versão politicamente correcta da História que essa esquerda privilegia irá, pé
ante pé, cozida com as paredes, chegar aos manuais da disciplina e às cabeças
dos alunos.
E
há uma segunda linha de combate de retaguarda em que a esquerda woke confia
para, no fim, prevalecer. Essa segunda linha é a actual
historiografia, ou melhor, a esperança de que a nova historiografia consiga
virar a mesa do conhecimento histórico de pernas para o ar. Acabei há pouco de ler Lourenço da Silva
Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth
Century (Cambridge University Press, 2022), um recentíssimo livro de José
Lingna Nafafé, historiador oriundo da Guiné-Bissau, actualmente na Universidade
de Bristol. Nesse livro o autor pretende mostrar, entre outras coisas, que não
existiria escravidão nas regiões do Kongo e de Angola e que ela teria sido aí
introduzida, bem como o tráfico de escravos, pelos portugueses. Nafafé quer demonstrar, também, que o primeiro
movimento abolicionista terá sido negro e terá surgido no século XVII por acção
e intermédio de africanos, ou seja, muito antes do universalmente reconhecido e
eficaz abolicionismo euro-americano (ocidental), maioritariamente branco, que
se afirmou e triunfou de finais do século XVIII em diante.
Estas duas teses vão frontalmente
contra o saber construído ao longo de décadas ou mesmo de séculos. Contestam e tentam derrubar, como o próprio autor
admite, o trabalho de John Thornton, Joseph C. Miller, Linda M. Heywood e de
muitas dezenas de grandes e sólidos historiadores, brancos e negros, dos tempos
pré-woke. Não é isso, porém, que desvaloriza as teses de Nafafé. A História
faz-se mesmo assim, debatendo, explicitando, apontando fragilidades no
conhecimento herdado, propondo novos caminhos e novas explicações. O
problema é que ambas as teses são erradas, muito conjecturais, e a sua defesa
por Nafafé nada convincente, bem pelo contrário.
Mas
isso será assunto para um futuro artigo no Observador e para uma
recensão crítica numa revista científica porque julgo que o que está em causa
justificará essa abordagem a dois níveis. Em Abril de 2017, antes ainda deste
debate sobre escravatura arrancar, eu critiquei, em interpelação à historiadora Filipa Lowndes Vicente, a
tendência para considerar que o saber construído por historiadores negros sobre
o tema da escravatura era melhor, mais verdadeiro, do que o construído pelos
seus colegas brancos. Filipa Vicente sugerira, então, tendo em mente as
universidades norte-americanas, que a história da escravatura tinha ganho
relevância e feito assinaláveis progressos com o afluxo e a proeminência dos
estudantes e professores negros, o que contestei. O que estava (e está) em
jogo, em minha opinião, e como nessa altura escrevi, não é a qualidade
historiográfica, mas o facto de que a população negra querer uma História
investigada pelos “seus” e contada à sua maneira.
Essa
História woke já está aí a bater-nos à porta e penso que estará na
altura de voltar a esse assunto e com um exemplo concreto na mão. É que, como escrevi na minha crítica de 2017 a Filipa
Lowndes Vicente, a História não tem que ver com opções políticas, não tem que
ver com preto ou branco, mas sim com a verdade. É isso que os historiadores
prezam, ou deviam prezar, e julgo que aquilo que José Lingna Nafafé nos propõe
nas suas principais teses — que ilustram a tal historiografia que Filipa
Vicente enaltecia e que, suponho, Cristina Roldão aplaudirá e desejará
difundir —, está longe dessa verdade e vem lembrar-nos que é aconselhável
olharmos com muita reserva para a historiografia que quer “descolonizar” o
conhecimento.
ESCRAVATURA SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS.
Ark NabuL > Filipe F: Não é só o conteúdo, é principalmente a forma como as coisas são apresentadas. Na escravatura, o africano é sempre um ser puro e imaculado e o europeu é sempre um ser demoníaco. Depois convida-se os alunos a identificarem-se com o 1° e a odiarem o 2° através de perguntas como "diz o que sentiste ao ver a figura". Depois, afirma-se que a escravatura ainda existe na península ibérica, com exemplos ligados à agricultura, para sustentar que a sociedade é opressora. O wokismo é disseminado nas escolas através da pedagogia do oprimido que leva os alunos a sentir injustiças sociais e dinâmicas de poder opressor em todo o lado. Na discipilina de Cidadania, um dos assuntos hiper focados é o feminismo e a ideia de que a sociedade é um patriarcado opressor. Já agora, alguém conhece algum manual de cidadania? Filipe F: A questão do conteúdo dos manuais escolares é fulcral para o futuro do país e tem sido descurada pelos partidos moderados. Pelo que já li, suspeito que o processo é controlado no ME pela esquerda radical. Por exemplo, lembro-me de há uns anos, num manual de História, logo no estudo da Pré-História, se gastar uma página inteira para se tentar demonstrar que já nesse tempo a sociedade assentava em luta de classes. Rui Teixeira > bento guerra: Tirando Barreto, MEC e Tavares, o Público é, com o bolso sonae à direita e o coração woke/cancel à esquerda, torcidamente repugnante. Ler os efectivos do jornal é uma estopada! João Floriano: O Dr. João Pedro Marques lembra-me aquele poema «Cantarei até que a voz me doa». Em Portugal a cultura nunca foi uma questão de massas, nem uma questão de mainstream como abordava há dias Martim Sousa tavares. No nosso ensino, os alunos sempre se arrastaram contrariados para as aulas de História (conto pelos dedos de uma mão os alunos que me disseram que gostavam de História). Apesar da preponderância que conseguiram na CS e na organização de currículos escolares, os wokes nacionais continuam a ser um grupo restrito e elitista como o Américo refere, e bem, no comentário que publicou. O wokismo subverte o significado da democracia entendida como a vontade da maioria. Parece-me cristalino que as minorias devem ser respeitadas e acolhidas mas é na maioria que devemos procurar o mainstream. Se a maioria permite, a minoria woke avança e com ela todos os estragos que pode fazer e que no caso português aparecem no sistema educativo. Na CS e nas redes sociais o debate está circunscrito sempre aos mesmos. Ontem, a propósito das intercalares nos Estados Unidos , falando sobre o bom resultado que os republicanos podiam obter e no regresso de Trump, alguém referia a baixa popularidade de Biden e o wokismo associado aos democratas. Os wokes americanos estão em várias instituições, na cultura, na política, na CS, nas redes sociais mas não conseguem conquistar o americano médio, aquele muito mais preocupado com a inflação do que com a lei do aborto e as causas fracturantes como a nova História. Ressalvando as proporções também não será muito diferente entre nós. Uns poucos continuarão a cantar até que a voz lhes doa. espero que os primeiros a enrouquecer sejam os nossos wokes domésticos: estamos fartos deles! Duarte Correia: O cronista que se tranquilize. Para lá da escravatura em forma de tráfego, finalmente liquidada na segunda metade do século XIX, quando o escravocrata-mor Brasil aplicou a Lei Áurea, restava o esclavagismo in loco, nas terras africanas, finalmente erradicado entre as décadas de 1950 e 1970 quando os patriotas africanos reenviaram de volta os colonizadores (que os escravizava lá nas suas terras) para a Europa. Nos tempos coloniais africanos, o povo era escravizado pelo colono no seu próprio país. Depois, como se sabe da literatura realista o coitado do povo começou a desabafar "-Isto nem no tempo do colono". Agora, como se tem visto em Ceuta e Melila, é o povo que quer vir para a Europa "meter-se debaixo da pata do colonizador, auto-escravizar-se, na terra do próprio colonizador. Mal por mal, na Europa ainda podem ir ao médico, ter filhos, não "morrer" à fome e, note-se bem, refilar no autocarro. O povo, qualquer povo, sabe distinguir a verdade empírica do embuste. O povo que frequenta a escola, e que pouco se interessa em aprender, vai-se "estar nas tintas" para a nova história Woke, entra por um ouvido e sai pelo outro, ou talvez gere o efeito contrário ao pretendido. Os activistas das modas tontas, desportos radicais, não são, nunca foram, sujeitos da História. bento guerra: Não são os autores que menciona, que preocupam, mas a linha que segue o Público, um jornal com uma redacção desconfortável com o seu percurso de crescimento. Servidor do poder, acarinha as aberrações que testemunham um arrependimento por serem o que todos somos, enquanto nação e pátria (saberão o que é?) João FlorianoFilipe F: Bom dia Filipe. O ensino desde os ciclos iniciais até às universidades está nas mãos da esquerda mais radical. Foi uma das moedas de troca do PS. Os belíssimos resultados estão à vista. Se a educação já estava mal no tempo de Tiago Brandão que percebia tanto de ensino como eu percebo de submarinos nucleares, agora com o actual ministro da educação piorou e muito. As escolas são locais de pancadaria tanto para adultos como para os jovens. Essa é a única «luta de classes» que realmente tem prosperado. Guilherme Lourenço: Os activistas woke são exímios em ocupar o espaço mediático e apresentar a sua narrativa como a única aceitável. Obrigado ao João Pedro Marques e ao Observador pelos múltiplos artigos sobre este tema. Sem a vossa contribuição temo que também eu estivesse convencido que as distorções woke eram a realidade. José Pinto de Sá: E na realidade, no interior de África, a escravatura só acabou quando lá chegou o colonialismo, e não o contrário. Isto depois da Conferência de Berlim de 1885, que acordou na proibição terminante da escravatura, antes da penetração ocidental na África central. Desde a acção missionária de Livingstone, às campanhas belgas contra a escravatura árabe, passando pelos testemunhos do leste de Angola, os exemplos não faltam. Sugiro, a quem duvide, que procure na net o título "Campagnes de l'État indépendant du Congo contre les Arabo-Swahilis". Maria Emília Ranhada Santos: O compromisso dos nossos (des) governantes, é mesmo pôr-nos a pedir, para que a globalização venha impor a sua ditadura! Claro, para nos subjugarem, precisam de eliminar a instrução e a cultura, para não haver organização nem capacidade para tal, e eles possam esmagar o povo e escravizá-lo à vontade que ele não terá condições de reagir e se defender!
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