terça-feira, 8 de novembro de 2022

Uma de “Memorial”


Tenho andado a reler “Memorial do Convento” que já em tempos antanhos precisei de ler, por dever de ofício e resolvi retomar, para relembrar uma obra bem integrada ainda nas leituras obrigatórias do 12º ano, se bem que me espante tal imposição, em época de tanta fixidez de atenção, desde a mais tenra idade, num aparelhozinho digital, que, dificilmente, torna acessível a leitura de uma obra de tal envergadura espiritual como é este “Memorial do Convento”.

Obra minuciosa de investigação, sapientíssima de conhecimento humano, moldada, é certo, no cadinho batalhador de um espírito simultaneamente sério e jocoso, que de tudo faz cenário, quer do panorama social abrangente, quer do estilo distintivo com que acompanha a diversa trama narrativa, quer da diversa paisagem que tão minuciosamente transpõe, quer do percurso histórico que tão afincadamente buscou, quer, enfim, da própria língua cuja gramática, sobretudo na dialogação integrada na sequência narrativa, acompanha o fluir da vida, numa criatividade discursiva que tudo refunde, temporalidade e intriga, o narrador não participante e sempre presente, em comentários de reflexão, séria ou mordaz, o aqui e agora impondo-se, o hoje e o amanhã salientes na trama, não na boca das personagens, mas do próprio narrador, o tal não participante e sempre saliente na sua contemporaneidade de condução e reflexão.

Mas o que me levou a este ligeiro comentário foi o texto anterior sobre o tal “discurso do ódio” que a Professora Universitária Patrícia Fernandes tratou no seu artigo, que veio de encontro ao meu pensamento sobre uma tão rica obra que é esta do nosso segundo Prémio Nobel, e no entanto escrita com o facciosismo tão dos nossos tempos, de indignação em Saramago - por divertida que seja – contra as classes da primazia, de simpatia e comiseração, embora com igual riqueza e força expressiva, no caso dos populares explorados, ou com os seus dons próprios, como os protagonistas Blimunda e Baltazar e os sábios que deram projecção intelectual ou moral ao enredo, como Bartolomeu de Gusmão, o criador da “passarola”, peça chave na intriga, afinal de simbolismos vários, que, de certo modo, contribuem para  uma “tournure” um tanto artificial e cansativa da sua intenção poética, mau grado a mordacidade.

Apenas um cheirinho, todavia, a essa mordacidade, como diversão do nosso agrado:

“Bem servido de milagres, igualmente. Ainda é cedo para falar deste que se prepara, aliás milagre não tanto, mas simples obséquio divino, descimento de olhar piedoso e propiciatório para um ventre sáfaro, que há-de ser o nascimento do infante na hora própria, mas é justamente tempo de mencionar veros e certificados milagres que, por virem da mesma e ardentíssima sarça franciscana, bem auguram da promessa do rei”.

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