Tenho andado a reler “Memorial do Convento” que já em
tempos antanhos precisei de ler, por dever de ofício e resolvi retomar, para
relembrar uma obra bem integrada ainda nas leituras obrigatórias do 12º ano, se
bem que me espante tal imposição, em época de tanta fixidez de atenção, desde a
mais tenra idade, num aparelhozinho digital, que, dificilmente, torna acessível
a leitura de uma obra de tal envergadura espiritual como é este “Memorial do Convento”.
Obra minuciosa de investigação,
sapientíssima de conhecimento humano, moldada, é certo, no cadinho batalhador
de um espírito simultaneamente sério e jocoso, que de tudo faz cenário, quer do
panorama social abrangente, quer do estilo distintivo com que acompanha a
diversa trama narrativa, quer da diversa paisagem que tão minuciosamente
transpõe, quer do percurso histórico que tão afincadamente buscou, quer, enfim,
da própria língua cuja gramática, sobretudo na dialogação integrada na
sequência narrativa, acompanha o fluir da vida, numa criatividade discursiva
que tudo refunde, temporalidade e intriga, o narrador não participante e sempre
presente, em comentários de reflexão, séria ou mordaz, o aqui e agora
impondo-se, o hoje e o amanhã salientes na trama, não na boca das personagens,
mas do próprio narrador, o tal não
participante e sempre saliente na sua contemporaneidade de condução e
reflexão.
Mas o que me levou a este ligeiro
comentário foi o texto anterior sobre o tal “discurso do ódio” que a Professora
Universitária Patrícia
Fernandes tratou no seu artigo, que veio de encontro ao meu
pensamento sobre uma tão rica obra que é esta do nosso segundo Prémio Nobel, e
no entanto escrita com o facciosismo tão dos nossos tempos, de indignação em Saramago - por divertida que seja – contra as
classes da primazia, de simpatia e comiseração, embora com igual riqueza e
força expressiva, no caso dos populares explorados, ou com os seus dons
próprios, como os protagonistas Blimunda e Baltazar e os sábios que deram projecção
intelectual ou moral ao enredo, como Bartolomeu de Gusmão, o criador da “passarola”,
peça chave na intriga, afinal de simbolismos vários, que, de certo modo,
contribuem para uma “tournure” um tanto
artificial e cansativa da sua intenção poética, mau grado a mordacidade.
Apenas um cheirinho, todavia, a essa
mordacidade, como diversão do nosso agrado:
“Bem servido de milagres,
igualmente. Ainda é cedo para falar deste que se prepara, aliás milagre não
tanto, mas simples obséquio divino, descimento de olhar piedoso e propiciatório
para um ventre sáfaro, que há-de ser o nascimento do infante na hora própria,
mas é justamente tempo de mencionar veros e certificados milagres que, por
virem da mesma e ardentíssima sarça franciscana, bem auguram da promessa do rei”.
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