sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Admirável crónica


Não resisto à tentação de transpor na íntegra o texto de António Barreto, com mais de uma dezena de dias já, mas, como sempre, um marco de eficiência histórica analítica – neste caso, desses dois países enormes e seus governantes ainda mais descomunais em arrogância pelo seu poderio, indiferentes ao relativismo desse, e ao ridículo de actuações majestosas a seu modo, impondo regras que, no caso da China, transformam em admiráveis marionetes os populares respeitosos, e no caso da Rússia, em seres aparentemente orgulhosos, talvez por desconhecimento – todos na submissão e no receio - que não impede os actos corajosos de transgressão dos russos mais conscientes. Para um Ocidente mais solto na sua democracia - de relativização e pseudo igualitarismo embora – tais atitudes tornam-se caricatas, por muito que ameaçadoras da estabilidade terrena. O texto de António Barreto, do PÚBLICO, é uma perfeita demonstração de argúcia descritiva histórica, que nos faz sorrir… para não chorar.

Duas ditaduras

Ambos os países se dizem ameaçados. Apelam ao seu grande passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO, 22 de Outubro de 2022

Especial: Guerra na Ucrânia

Vale a pena recordar. Duas imagens ou sequências que servem para ilustrar um novo mundo possível. Coincidentes no tempo, mas também na intenção. A primeira tem origem lá muito longe, nos palácios de Pequim: são as cerimónias inaugurais do grande congresso quinquenal do Partido Comunista Chinês, numa esplendorosa sala com milhares de delegados, quase todos homens, muito aprumados, quase todos iguais, com os mesmos fatos escuros, as mesmas gravatas, o mesmo sapato escuro envernizado, a mesma pose, a mesma maneira de aplaudir, a mesma inclinação de cabeça, o mesmo sorriso que não é bem um sorriso, todos colocados simetricamente, arrumados em perfeita geometria, com o grande líder à frente, ao centro, e todos os restantes iguais, hirtos, áulicos em filas de prioridades e dignidades.

Mantém-se a foice e o martelo, pois claro, abundam as bandeiras chinesas vermelhas, evidentemente, mas o uniforme de Mao desapareceu, agora é o fato burguês e burocrata do Ocidente, feito uniforme civil. Os soldadinhos de chumbo tinham mais vida e alegria. As marionetas têm mais fantasia.

A segunda vem de mais perto. De Moscovo, pois claro, onde um ditador minúsculo percorre corredores imperiais e atravessa portas colossais, com enormes porteiros e soldados gigantescos, em gestos de autómatos e que apenas aumentam o ridículo do pretenso imperador. Este último, a passo saltitante, mas com aparência de agilidade, aproxima-se de um pódio, numa sala imensa, preenchida com centenas de cadeiras arrumadas e ordenadas, com quase só homens, títeres ungidos, vestidos da mesma maneira, hirtos, aprumados, de fato escuro e gravata a condizer, de caras fechadas sem sorriso nem vontade, só com esgar obediente, a aplaudir ao mesmo tempo, com os mesmos gestos mecânicos. Num cardume, há mais liberdade.

Naquelas salas imensas, preparadas para reduzir a gente, criar a ilusão do poder, fingir a majestade do colectivo, simular a grandeza dos bens e a pequenez das pessoas, encena-se a liturgia do totalitarismo, como poucas vezes aconteceu na história. Aquelas cerimónias revelam as mais sérias advertências contra a humanidade, sobretudo contra a democracia e a liberdade. Uma coincidência seguramente não casual: em ambos os casos, o poder não é apenas do Estado e da força militar, é também o do ditador, do líder indiscutido e não eleito.

Outras coincidências não escaparam. Ambos os países se dizem ameaçados. Ambos apelam à sua história e ao seu grande passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.

É impossível saber se estes dois homens e seus países alguma vez serão aliados sérios e duráveis, se conseguirão partilhar o mundo ou parte dele, se poderão ser capazes de afrontar todos os outros, poderosos ou não. Há quem pense que uma aliança séria e consistente entre estas duas potências é impossível e que qualquer aproximação temporária resulta sempre em desastre. Até nos tempos da primeira grande aliança comunista, com Estaline e Mao no poder, a amizade durou pouco, a cumplicidade foi sonho de breve duração, apesar de ter sido de terror para a Europa e a América.

Ali perto, a Índia e o Japão constituem outros pólos asiáticos também poderosos. E as Coreias não se podem esquecer. Certo e seguro, para já, é que as duas ditaduras conseguem condicionar o mundo inteiro, intimidar os vizinhos, ameaçar as nações que entenderem e criar uma crise económica à escala planetária quase sem precedentes.

Curiosamente, Putin e Xi, assim se chamam os dois ídolos, entenderam ser necessário recordar aos seus e ao mundo que defendiam as suas pátrias, não aceitavam ordens, não obedeciam a poderes estrangeiros, fariam tudo o que fosse necessário para defender os seus interesses, que poderiam utilizar a força armada, quando assim o entendessem e que não abdicariam nunca do uso da arma nuclear. Mais claros não poderiam ter sido.

Que não sobrem dúvidas: estão ali, naquelas imagens de ditadores quase sagrados, os maiores riscos de guerra, os maiores inimigos da paz mundial, as maiores ameaças contra a democracia e a liberdade. Estão ali as principais e mais letais armas contra as repúblicas de cidadãos, de homens e mulheres livres e iguais, de ideias que se exprimem, de acções e de gestos que se escolhem, de sonhos individuais que se realizam e de promessas que se cumprem. Estão ali os principais inimigos dos direitos humanos, da dignidade individual e da liberdade de pensamento e expressão.

Em pouco mais de uma década, o mundo mudou. Para nunca mais voltar a ser o que era no fim do século XX. Agora, novamente, a democracia está em recuo. As ditaduras políticas, militares ou religiosas na ofensiva. Os equilíbrios que se conheciam desapareceram, novos estão em preparação. Regressa-se ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça. As duas grandes ditaduras tiveram já alguns êxitos, nomeadamente abriram divisões dentro da Europa e das Américas, onde encontraram mesmo admiradores.

Regressa-se ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça.

Souberam aproveitar as fragilidades e os erros do mundo capitalista e democrático. Muitos se convenceram, do lado de cá, que aprofundar o comércio e a colaboração com aqueles dois países era suficiente para os amarrar ao mundo da cooperação internacional e do equilíbrio de paz internacional. Assim agiram. Até ficarem nas mãos da Rússia para os recursos naturais, especialmente gás e petróleo, mas também cereais. E nas mãos da China, para toda a espécie de trabalho industrial e para a aquisição da dívida pública de quase todos os países ocidentais. É difícil ver, com precisão, as alternativas. Todas têm defeitos e riscos. Mas as vias seguidas foram talvez as que mais expuseram debilidades do Ocidente.

No novo desenho do mundo, em curso, é errado pensar que os blocos já estão definidos. Grande parte das Américas, a África e a Ásia, assim como o mundo islâmico, estão sob influência, sedução, atracção e conquista das duas grandes ditaduras. Também nestes continentes, a democracia ocidental e o capitalismo estão em recuo, defrontados e cercados pelos regimes totalitários, claríssimos nas noções de poder, de Estado, de força militar e de imperialismo.

Não tenhamos dúvidas. O que está em causa é a democracia. E a liberdade.

O autor é colunista do PÚBLICO

 

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