Não resisto à tentação de transpor na
íntegra o texto de António Barreto, com mais de uma dezena de dias já, mas,
como sempre, um marco de eficiência histórica analítica – neste caso, desses
dois países enormes e seus governantes ainda mais descomunais em arrogância pelo
seu poderio, indiferentes ao relativismo desse, e ao ridículo de actuações majestosas
a seu modo, impondo regras que, no caso da China, transformam em admiráveis marionetes
os populares respeitosos, e no caso da Rússia, em seres aparentemente
orgulhosos, talvez por desconhecimento – todos na submissão e no receio - que
não impede os actos corajosos de transgressão dos russos mais conscientes. Para
um Ocidente mais solto na sua democracia - de relativização e pseudo igualitarismo
embora – tais atitudes tornam-se caricatas, por muito que ameaçadoras da
estabilidade terrena. O texto de António Barreto, do PÚBLICO, é uma perfeita
demonstração de argúcia descritiva histórica, que nos faz sorrir… para não
chorar.
Duas ditaduras
Ambos os países se dizem ameaçados. Apelam ao seu grande passado,
para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao
mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho
industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e
pela predisposição para usar a arma nuclear.
PÚBLICO, 22 de
Outubro de 2022
Vale
a pena recordar. Duas imagens ou sequências que servem para ilustrar um novo
mundo possível. Coincidentes no tempo, mas também na intenção. A primeira tem origem lá muito longe, nos
palácios de Pequim: são as
cerimónias inaugurais do grande congresso quinquenal do Partido Comunista
Chinês, numa esplendorosa sala com milhares de delegados, quase todos homens, muito
aprumados, quase todos iguais, com os mesmos fatos escuros, as mesmas gravatas,
o mesmo sapato escuro envernizado, a mesma pose, a mesma maneira de aplaudir, a
mesma inclinação de cabeça, o mesmo sorriso que não é bem um sorriso, todos
colocados simetricamente, arrumados em perfeita geometria, com o grande líder à
frente, ao centro, e todos os restantes iguais, hirtos, áulicos em filas de
prioridades e dignidades.
Mantém-se a foice e o martelo, pois claro, abundam as bandeiras
chinesas vermelhas, evidentemente, mas o uniforme de Mao desapareceu, agora é o
fato burguês e burocrata do Ocidente, feito uniforme civil. Os soldadinhos de
chumbo tinham mais vida e alegria. As marionetas têm mais fantasia.
A segunda vem de mais perto. De Moscovo, pois claro, onde um ditador
minúsculo percorre corredores imperiais e atravessa portas colossais, com
enormes porteiros e soldados gigantescos, em gestos de autómatos e que apenas
aumentam o ridículo do pretenso imperador. Este
último, a passo saltitante, mas com aparência de agilidade, aproxima-se de um
pódio, numa sala imensa, preenchida com centenas de cadeiras arrumadas e
ordenadas, com quase só homens, títeres ungidos, vestidos da mesma maneira,
hirtos, aprumados, de fato escuro e gravata a condizer, de caras fechadas sem
sorriso nem vontade, só com esgar obediente, a aplaudir ao mesmo tempo, com os
mesmos gestos mecânicos. Num cardume, há mais liberdade.
Naquelas salas imensas, preparadas para reduzir a gente, criar a
ilusão do poder, fingir a majestade do colectivo, simular a grandeza dos bens e
a pequenez das pessoas, encena-se a liturgia do totalitarismo, como poucas
vezes aconteceu na história. Aquelas cerimónias revelam as mais sérias
advertências contra a humanidade, sobretudo contra a democracia e a liberdade.
Uma coincidência seguramente não casual: em ambos os casos, o poder não é
apenas do Estado e da força militar, é também o do ditador, do líder
indiscutido e não eleito.
Outras coincidências não escaparam.
Ambos os países se dizem ameaçados. Ambos apelam à sua história e ao seu grande
passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são
imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China
pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela
vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.
É impossível saber se estes dois
homens e seus países alguma vez serão aliados sérios e duráveis, se conseguirão
partilhar o mundo ou parte dele, se poderão ser capazes de afrontar todos os
outros, poderosos ou não. Há quem pense que uma aliança séria e consistente
entre estas duas potências é impossível e que qualquer aproximação temporária
resulta sempre em desastre. Até
nos tempos da primeira grande aliança comunista, com Estaline e Mao no poder, a
amizade durou pouco, a cumplicidade foi sonho de breve duração, apesar de ter
sido de terror para a Europa e a América.
Ali
perto, a Índia e o Japão constituem outros pólos asiáticos também poderosos. E
as Coreias não se podem esquecer. Certo e seguro, para já, é que as
duas ditaduras conseguem condicionar o mundo inteiro, intimidar os vizinhos,
ameaçar as nações que entenderem e criar uma crise económica à escala
planetária quase sem precedentes.
Curiosamente, Putin e Xi, assim se chamam os dois ídolos, entenderam
ser necessário recordar aos seus e ao mundo que defendiam as suas pátrias, não
aceitavam ordens, não obedeciam a poderes estrangeiros, fariam tudo o que fosse
necessário para defender os seus interesses, que poderiam utilizar a força
armada, quando assim o entendessem e que não abdicariam nunca do uso da arma
nuclear. Mais claros não poderiam ter sido.
Que
não sobrem dúvidas: estão ali, naquelas imagens de ditadores quase
sagrados, os maiores riscos de guerra, os maiores inimigos da paz mundial, as
maiores ameaças contra a democracia e a liberdade. Estão ali as principais e
mais letais armas contra as repúblicas de cidadãos, de homens e mulheres livres
e iguais, de ideias que se exprimem, de acções e de gestos que se escolhem, de
sonhos individuais que se realizam e de promessas que se cumprem. Estão ali os
principais inimigos dos direitos humanos, da dignidade individual e da
liberdade de pensamento e expressão.
Em pouco
mais de uma década, o mundo mudou.
Para nunca mais voltar a ser o que era no fim do século XX. Agora,
novamente, a democracia está em recuo. As
ditaduras políticas, militares ou religiosas na ofensiva. Os equilíbrios que se
conheciam desapareceram, novos estão em preparação. Regressa-se ao tempo dos
blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada
novo episódio surge nova ameaça. As duas grandes ditaduras tiveram já alguns êxitos,
nomeadamente abriram divisões dentro da Europa e das Américas, onde encontraram
mesmo admiradores.
Regressa-se
ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é
perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça.
Souberam aproveitar as
fragilidades e os erros do mundo capitalista e democrático. Muitos se convenceram, do lado de cá, que aprofundar
o comércio e a colaboração com aqueles dois países era suficiente para os
amarrar ao mundo da cooperação internacional e do equilíbrio de paz
internacional. Assim agiram. Até
ficarem nas mãos da Rússia para os recursos naturais, especialmente gás e
petróleo, mas também cereais. E nas mãos da China, para toda a espécie de
trabalho industrial e para a aquisição da dívida pública de quase todos os
países ocidentais. É difícil
ver, com precisão, as alternativas. Todas têm defeitos e riscos. Mas
as vias seguidas foram talvez as
que mais expuseram debilidades do Ocidente.
No novo desenho do mundo, em
curso, é errado pensar que os blocos já estão definidos. Grande parte das
Américas, a África e a Ásia, assim como o mundo islâmico, estão sob influência,
sedução, atracção e conquista das duas grandes ditaduras. Também nestes continentes,
a democracia ocidental e o capitalismo estão em recuo, defrontados e cercados
pelos regimes totalitários, claríssimos nas noções de poder, de Estado, de
força militar e de imperialismo.
Não tenhamos dúvidas. O que
está em causa é a democracia. E a liberdade.
O autor é colunista do PÚBLICO
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