Um herói dos nossos tempos e dos nossos
espaços de inteligência e charme, para um futuro sempre em reconstrução de
incógnita….
Eleições em França: "Estamos a
concretizar o sonho de Vladimir Putin". Entrevista a Michel Eltchaninoff
Michel Eltchaninoff escreveu
sobre a "cabeça de Le Pen" e a "cabeça de Putin". Agora
olha para a psique "narcisista" do Presidente, que acusa de
"acelerar" a UN e uma maior influência da Rússia.
CÁTIA BRUNO (Em Paris, França) texto
OBSERVADOR, 07
jul. 2024, 13:5810
Índice
É um homem
que conhece bem a Rússia. Michel Eltchaninoff, um dos filósofos mais conhecidos
em França, escreveu em 2015 o livro Na
Cabeça de Putin (ed. Zigurate), na
esteira da invasão da Crimeia. Mas a sua obsessão com o país não é nova:
afinal, a sua tese doutoramento de 2000 tinha precisamente o tema “A expressão do corpo na obra de
Dostoiévski”.
Mas este
académico francês não ignora o que se passa no país onde nasceu e cresceu toda
a vida. Dois anos depois de se dedicar a Putin, publicou Dans la tête de
Marine Le Pen (“Na cabeça de Marine Le Pen”, sem edição em português). Os laços
conhecidos e antigos entre a antiga Frente Nacional e a Rússia foram parte da razão por que
decidiu debruçar-se sobre o tema, mas não só: a transformação que Marine Le Pen
operou no partido foi mais do que apenas mudar o nome para União Nacional (UN) — foi transformar toda uma ideologia, mantendo
algumas das suas inspirações, de forma a apelar às classes trabalhadoras.
Numa entrevista com o Observador num clássico café de
Paris, o filósofo não enjeita tentar fazer o exercício de entrar na cabeça de
Emmanuel Macron. E o resultado não é bom sobre
o caráter do Presidente:“É uma atitude pseudo-romântica,
narcisista, arrogante, que ainda é uma das características deste meu país. ‘Bem, tomar o controlo, fazer um acto de coragem, de panaché. Mas, por fim, as pessoas
viraram-se contra ele, porque Macron não compreendeu que a História se escreve
colectivamente, decreta. O “herói”, explica, não é o Presidente, que se vê como
uma“espécie de Cyrano de Bergerac”.
Eltchaninoff olha também, naturalmente, para a
influência que a Rússia mantém em França, incluindo não apenas entre a
extrema-direita: “Jean-Luc Mélenchon foi
extremamente indulgente com Vladimir Putin, com a sua impossibilidade de pensar
que podem existir dois impérios [EUA e Rússia] ao mesmo tempo”.
E não tem dúvidas em garantir que, aconteça
o que acontecer nas eleições deste domingo, o resultado será benéfico para o
Kremlin. Por um lado, explica,
porque com um governo da UN, haverá “consequências muito concretas para a
guerra na Ucrânia”. Por outro,
porque se o resultado levar à ingovernabilidade e, quem sabe, à violência, a Rússia virá vingada a sua narrativa de que
“as democracias liberais estão à beira do caos e numa guerra perpétua”.
▲ Michel
Eltchaninoff encontrou-se com o Observador no centro de Paris
O papel de “acelerador” de Macron nas transformações que se operam
neste momento em França, diz, terá consequências muito para lá das fronteiras
do país. Para além da perda de influência dos franceses junto de Bruxelas, teme
pelos ucranianos: “Grande
parte da sociedade francesa odeia ainda mais Macron após a dissolução.
Portanto, o que ele diz sobre a Ucrânia e a Europa também corre o risco de vir
a ser [odiado]”, afirma.
Perante tudo isto, apenas uma
conclusão: aconteça o que acontecer, com ou sem maioria, se a violência emergir, Macron não será o vencedor
deste romance. Serão Marine Le Pen e Vladimir Putin.
“Ele pensava que estaria a acalmar, parar — mas
o que causa é aceleração. E esse é um enorme paradoxo: é que, de facto, Macron provoca
acelerações”
Escreveu um artigo dias
depois destas eleições serem convocadas onde dizia que a decisão de Macron era
incompreensível. Agora, com mais tempo: acha que foi uma estratégia política,
de que se a União Nacional chegasse ao poder poderia desgastar-se e travar uma
eleição de Marine Le Pen em 2027? Ou o Presidente estava apenas confiante de
que conseguiria ele travar agora o crescimento da extrema-direita?
Acho que, na
verdade, ele tinha na cabeça os dois cenários. Primeiro cenário: vou
convocar eleições imediatamente para desacelerar o progresso da UN, dizendo que
é melhor que as eleições sejam imediatamente. Mas o que é interessante é que,
de acordo com o que vemos hoje, sem dúvida que, em vez de retardar o progresso
da antiga Frente Nacional, irá acelerá-lo. E isso é um enorme paradoxo. Ele
pensou que iria “congelar” a imagem actual. De facto, há uma espécie de
“engano da razão” [conceito filosófico de Hegel, que defende que a História
avança através de uma forma de razão enganadora, não a que é esperada] que, na
verdade, vai acelerar. A progressão da UN é quase certa. E o que é
interessante é que ele fez um pouco a mesma coisa com a Rússia, desde 2019.
Pensando que, ao dialogar com Vladimir Putin, o
conseguiria travar?
Exacto. Macron pensou que seria capaz de acalmar Putin
propondo uma parceria de defesa, por exemplo. E, de facto, não foi só ele [a
propô-lo], mas isso provocou uma aceleração da acção de Putin com a invasão em
massa da Ucrânia. Ele pensa que está a acalmar, frear, parar — mas o que causa é
aceleração. E esse é um enorme paradoxo que é interessante: é que, de facto, Macron provoca acelerações.
"Macron pensou que venceria de qualquer maneira. 'Se vencer as eleições, venci. Se perder,
perco com brio e, mais importante, demonstramos o que é a UN.' Mas, na minha opinião, não teve em conta
o perigo para o Estado de Direito que representa uma chegada ao poder da UN. E
portanto, novamente, o cálculo é puramente egoísta." A França Insubmissa “complacente” com a Rússia, por
oposição aos EUA. “Não vejo como será possível que a Frente Popular tenha uma
política externa comum”
O que acha
que se passa na cabeça dele? Escreveu “Na cabeça de Marine Le Pen” e “Na cabeça
de Vladimir Putin”… O que acontece dentro da cabeça de Macron?
«Acho que, no fundo, ele pensa que é
a personagem de um romance. Considera-se uma personagem de um romance do século
XIX, extravagante, surpreendente e cheio de elegância, de panache. E, na
verdade, isso é algo muito francês da parte dele: a panache de Cyrano de
Bergerac… Por isso, acredito que existe uma dramaturgia pessoal, onde
considera que é ele quem escreve o romance nacional e é ele o herói do romance.
Mas esqueceu-se de que não é ele quem escreve o romance nacional: são
os franceses, são todos os franceses. Ele
viu-se como alguém que ia realizar uma façanha dramática, que iria provocar a
UN e levar a um regresso “à razão”. Mas, na verdade, não entendeu que, muitas
vezes, quando tentava desacelerar, acelerava; e que não era o único escritor do
romance. É uma atitude pseudo-romântica,
narcisista, arrogante, que ainda é uma das características deste meu país. “Bem, tomar o controlo, fazer um acto de coragem,
de panache”. Mas, por fim, as pessoas viraram-se contra ele, porque Macron não
compreendeu que a História se escreve colectivamente. Agora, olhemos para a
hipótese da experiência. Muitos pensam que é melhor perder, para
experimentar e mostrar imediatamente a futilidade, a fraqueza da UN nos
próximos três anos. É possível. Portanto, ele achou que venceria de qualquer
maneira. “Se vencer as eleições, venci. Se perder, perco com brio e, mais
importante, demonstramos o que é a UN.” Mas, na minha opinião, não teve em
conta o perigo para o Estado de Direito que representa uma chegada ao poder da
UN. E portanto, novamente, o cálculo é puramente egoísta.
▲A
decisão de Emmanuel Macron de convocar eleições antecipadas foi criticada por
muitos franceses
GETTY IMAGES
Há aqui uma comparação com a Rússia: Vladimir Putin
foi eleito várias vezes e deu uma série de passos para transformar um país.
Tendo em conta que não é, obviamente, uma democracia e um regime liberal, mas
sim um regime autoritário que controla os media… Mas este é um jogo extremamente perigoso. E acho que
acontece porque os franceses não suportam que o Presidente assuma o papel de herói
de um romance com coisas que são muito sérias para os franceses.
As ligações da UN ao Kremlin, a perda de apoio
aos ucranianos e uma Europa dividida. “Estamos no processo de concretizar o
sonho de Vladimir Putin.”
O que explica
a rejeição que o partido de Macron teve na primeira volta. Não sabemos o que
vai acontecer agora, mas se a UN chegar ao governo, crê que terá maneira de
influenciar a política em direcção à Rússia? Mesmo com o Presidente mantendo
poderes nessa área… Haverá um confronto sobre o tema?
Isso
é certo, porque a diferença das várias coabitações que vimos anteriormente face
a esta é que, agora, o Presidente não pode concorrer novamente [em 2027 terá
atingido o limite de mandatos]. Portanto, está enfraquecido, porque não
consegue representar-se. E, além disso, está desacreditado pelos seus
próprios aliados. Os macronistas estão furiosos com ele, por isso está
numa posição fraca. Se houver coabitação, Macron ficará numa posição fraca
e, além disso, a UN está pronta para exercer um equilíbrio de poder muito
difícil. Quando Marine Le Pen diz que ser chefe das Forças Armadas é uma
posição honorária… Isso significa que vai discutir com ele. Por fim, Jordan
Bardella pode ser primeiro-ministro. E, se não for, ainda corremos o risco de a
UN ser o maior grupo na Assembleia e disputará com Macron a autonomia na
política internacional. Portanto, em qualquer caso, isto significa
consequências muito concretas para a guerra na Ucrânia. Muito concretas. Se
deixarmos de enviar munições e armas de longo alcance para a Ucrânia, a Ucrânia
terá dificuldade em impedir o avanço da Rússia. Isto significa consequências
muito substanciais para a construção europeia da comunidade europeia, uma vez que o caminho de
França ficará muito enfraquecido.
▲Marine Le
Pen num encontro com Vladimir Putin no Kremlin, em 2017 AFP VIA GETTY IMAGES
Portanto, na prática, estamos
no processo de concretizar o sonho de Vladimir Putin. Ou seja: menos ajuda à
Ucrânia e a uma Europa que estará muito dividida, porque será difícil França
fazer-se ouvir, caso o poder seja da UN ou se o país não for governável [sem
uma maioria absoluta]. Na prática, em qualquer um dos casos, é um
enfraquecimento da França e é uma vitória estratégica para Vladimir Putin. Portanto,
é extremamente grave e creio que todos os franceses ainda não perceberam que
Macron não teve isso em conta na sua decisão. Acredito que vamos assistir a uma
evidente perda de influência de França. E há um aumento da influência russa
sobre França, que se tornará muito mais forte. Por exemplo, há um candidato a
deputado da Assembleia Nacional no círculo de Cher, chamado Pierre Gentillet.
Já ouviu falar dele? É
considerado um dos homens-fortes de Le Pen hoje em dia.
Sim,
e acima de tudo é muito pró-russo. Foi ele quem criou o círculo de
reflexão Pushkine [plataforma de aproximação russo-francesa], que liga tudo
isto. Imagine Pierre Gentillet na
Assembleia Nacional, Pierre Gentillet na Comissão dos Negócios Estrangeiros… Isto
abre a porta à influência russa em França. Portanto, é algo muito, muito sério.
Os franceses aceitariam isso? Parece
haver uma espécie de consenso nacional de apoio à Ucrânia contra a Rússia…
Penso
que quando Emmanuel Macron disse que não descartava o envio de tropas francesas
para a Ucrânia… Na minha opinião, isso é algo perfeitamente aceitável de se
dizer e pessoalmente até acho que seria bom. Por outro lado, a recepção da
ideia foi negativa. Isto quer dizer que as pessoas, os franceses, não
conseguem compreender, creio eu, a gravidade da guerra na Ucrânia. Portanto,
não conseguem de forma alguma imaginar-se um dia a ter de morrer em defesa da
Europa contra Putin. Macron queria acordá-los — não funcionou. Porque as pessoas dizem “Acolhemos muito
os ucranianos no início da guerra e depois os preços da electricidade e do gás
subiram, em parte, devido à guerra na Ucrânia”. Portanto, acredito que a sociedade
francesa está menos disposta a ajudar a Ucrânia. É claro que temos de ter em conta as
sondagens e tal, mas quando Jordan Bardella diz “Não vamos enviar soldados franceses para a Ucrânia e não vamos
provocar a Rússia enviando armas de longo alcance”, há uma grande parte dos franceses que concordam com
isso. Só que não
compreendem necessariamente as consequências disso, de como seria
um avanço da Rússia, tanto na Ucrânia, como em termos de influência na Europa
Ocidental.
"A questão israelo-palestiniana
é aqui muito sensível, porque temos
a maior comunidade judaica na Europa e a maior comunidade muçulmana na Europa.
Portanto, apesar de ser uma guerra menos próxima geograficamente, é uma guerra
muito próxima do nosso imaginário. [Mas] podemos absolutamente estar presentes
na discussão sobre a guerra entre Israel e Gaza, apresentando uma posição mais
unida e a mais justa possível, enquanto nos mantemos igualmente preocupados com
a guerra na Ucrânia."
Acredito que, infelizmente, quando
Jordan diz que a linha vermelha é não enviar soldados, há uma grande parte dos
franceses que ou acham isso muito bom, ou, em última análise, dizem que é
sensato. Portanto, isto é muito inteligente por parte da UN. Creio,
infelizmente, que a guerra na Ucrânia não é percepcionada por grande parte dos
franceses como uma questão existencial para a Europa. E isso significa que,
quando Macron o diz, muitas pessoas não o compreendem. Grande parte da sociedade
francesa odeia ainda mais Macron após a dissolução. Portanto, o que ele diz
sobre a Ucrânia e a Europa também corre o risco de vir a ser [odiado].
Porque
ser ele a dizê-lo influencia as posições? A rejeição dele é tal que faz as
pessoas mudarem de ideias?
Sim. Por isso, infelizmente, acredito
que uma parte da sociedade francesa está disposta a aceitar uma redução na
ajuda à Ucrânia.
A
sociedade francesa discute de forma mais acesa o que acontece em Gaza e a
questão israelo-palestiniana, do que a guerra na Ucrânia, que é geograficamente
muito mais próxima. Parece-lhe que estamos aqui perante outro paradoxo?
Isto é complicado. É verdade que a guerra na Europa
está mais próxima de nós do que a guerra no Médio Oriente. Mas a questão
israelo-palestiniana é aqui muito
sensível, porque temos a maior comunidade judaica na Europa e a maior
comunidade muçulmana na Europa. Portanto,
apesar de ser uma guerra menos próxima geograficamente, é uma guerra muito
próxima do nosso imaginário. Existe um imaginário muito forte ligado à guerra
em Gaza. E penso que podemos absolutamente estar presentes na discussão
sobre a guerra entre Israel e Gaza, apresentando uma posição mais unida e a
mais justa possível, enquanto nos mantemos igualmente preocupados com a
guerra na Ucrânia. Penso que ambas [as
guerras] são dois perigos para os políticos, mas a guerra em Gaza é um factor
de divisão política maior do que a guerra na Ucrânia. Está muito presente na cabeça dos jovens, por exemplo. E substituiu um
pouco a atenção que se prestava à Ucrânia. Acho que, infelizmente, os franceses vivem uma espécie
de fadiga, de cansaço, no que diz respeito à guerra na Ucrânia. E por isso temo
que, seja qual for o governo, seja qual for a maioria, a ajuda à Ucrânia
diminua. Macron ainda
mantinha as rédeas seguras pelo menos nessa questão, mas agora…
Olhando
para as ligações da UN à Rússia. Nos últimos dois anos temos assistido a uma
tentativa de distanciamento. É real?
Bem,
o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo apoiou claramente a UN num post no X, viu isso? Onde dizia que é
necessário quebrar com o diktat de Washington e Bruxelas… A proximidade política, seja da UN seja da
antiga Frente Nacional, com a Rússia é muito antiga. É uma relação muito
enraizada. Foram várias etapas: primeiro Jean-Marie
Le Pen, que estava ao lado dos nacionalistas
russos. Depois Marion Maréchal Le Pen,
muito amiga da filha de [Alexander] Dugin [um dos ideólogos nacionalistas mais
radicais russos, cuja filha foi morta num atentado em 2022]. E Marine Le
Pen chegou a ir ao Kremlin pouco antes
das presidenciais de 2017. Portanto, os vínculos são muito
próximos. E, é claro,
a UN é muito cuidadosa com o que diz. Mas, na verdade, nunca fala sobre o
destino da Crimeia e silencia as relações que alguns dos seus membros ainda
mantêm. Pensemos em
Pierre Gentillet e no Estado russo…. Na verdade, isto é tudo uma treta, é
fachada. O que é certo é que a UN vai ser o maior partido da Assembleia. E,
obviamente, os russos irão beneficiar com isso, de uma forma ou de outra.
Como Marine Le Pen transformou a
Frente Nacional de um partido de protesto num partido mainstream:“A dialéctica
mágica que lhe permitiu juntar o polo socialista com o polo nacionalista”
Já
há muito tempo, talvez até desde 2017, que Marine Le Pen se tem focado em
apenas dois temas: poder de compra e imigração. Crê que ela viu além dos outros políticos, ao entender como essas
temas mobilizam os franceses?
Para
fazer o meu livro “Na cabeça da
Marine Le Pen”, li todos
os seus discursos, muitos livros, etc. E, de facto, quando ela assumiu a
liderança da Frente Nacional em 2011, construiu realmente uma nova ideologia
para o partido, que renomeou União Nacional em 2018. Mas construiu uma
ideologia nova que é muito, muito inteligente, porque é muito simples de
entender. Não é xenófoba e racista na sua formulação, mas nasce de uma
interpretação disso.
"Com Jean-Marie Le Pen só
existiam sentimentos negativos — ódio, rejeição do outro, racismo, etc. Marine
Le Pen, com esta nesta nova ideologia, incutiu muitos sentimentos positivos:
bom senso, sabedoria, uma sensação calorosa para com as classes populares."
É
uma ideologia muito simples: segundo Marine Le Pen, existem duas visões de
mundo que se defrontam. Existe o campo dos patriotas e dos nacionalistas, que
inclui as pessoas que sofrem, que têm problemas com o poder de compra, que
sentem insegurança, que têm dificuldades com a imigração, etc. E essas pessoas
estão em choque com outra visão do mundo, daqueles a quem Le Pen chama “os
globalistas”. “Os globalistas” são as elites financeiras. Os burocratas europeus, os grandes empresários
franceses, que estão desenraizados e para quem França é apenas uma zona para
explorar. Portanto, estão a gozar com o povo, porque para terem trabalhadores
mais baratos trazem imigrantes para França e estes imigrantes, em última
análise, estão a fazer progressos. Isso criará um país mais
multinacional e mais étnico, até mesmo um país muçulmano. Ou seja,
há uma luta entre os patriotas e os nacionalistas de um lado e os globalistas
do outro, os globalistas da elite. Bom, no fim do século XIX, essa era a base do
anti-semitismo aqui, que considerava os judeus cosmopolitas. Hoje já não
dizemos isso, obviamente, dizemos antes, “a Finança”, “os banqueiros”, “os
burocratas”…
E é apagada a
palavra “judeus”?
Não
é preciso dizê-la. Mas continuam a existir antissemitas dentro da UN que fazem
a ligação dos “nómadas de cima” com “os nómadas de baixo”. Ou seja, os de cima são os cosmopolitas e os de
baixo são os imigrantes, de origem subsariana ou magrebina, que mudarão o nosso
estilo de vida. Portanto, a partir desta ideologia, ela consegue ligar
tudo: “Eu protejo o povo.” Com Jean-Marie Le Pen só existiam sentimentos
negativos — ódio, rejeição do outro, racismo, etc. Marine Le Pen, com esta
nesta nova ideologia, incutiu muitos sentimentos positivos: bom senso,
sabedoria, uma sensação calorosa para com as classes populares.
Participei em muitos comícios de Marine Le Pen, não sei se alguma vez foi a
algum…
Não, só os vi
online.
Já
há muito tempo que vou a alguns e, na verdade, desde os anos de 2015, 2016,
que ela encarna esta ideia de calor junto do povo: a ajuda mútua, a
solidariedade contra o cálculo egoísta dos homens da Finança. E assim conseguiu
fazer com que o voto francês a favor da UN não fosse apenas um voto de
rejeição, um voto de ódio, negativo, mas que se tornasse também num voto
positivo.
Deixando de
ser um voto de protesto e passando a ser um voto mainstream?
Voilà.
E isso tem razões ideológicas. Ela diz: “Estou com as pessoas que estão a
sofrer. Estou com o povo unido.” E, assim, parte da sociedade francesa —
sobretudo as pequenas cidades, as zonas rurais, mas em quase toda a parte onde
há pessoas em sofrimento —, identificou-se com este discurso e considera que
as suas emoções, quer as positivas quer as negativas, são encarnadas pela UN.
Ela fez algo fortíssimo: hoje isto não é apenas um voto de protesto. E,
para responder à sua pergunta, penso que, de facto, a ideia de ser “nem de
direita nem de esquerda”, de se focar tanto na imigração como no poder de
compra, é a dialética mágica que lhe permitiu precisamente juntar o pólo
socialista com o polo nacionalista.
Acha que os
partidos de esquerda contribuíram para essa situação de alguma forma?
Bem, já nas décadas de 1980 e 1990 os
trabalhadores votavam mais na UN do que no Partido Comunista. Esta ideia
sobre a esquerda é um lugar-comum, mas verdadeiro. Não sou um cientista
político, mas é claro que a esquerda perdeu a classe trabalhadora, porque
deixou de falar para ela. Focou-se mais na protecção das minorias, por exemplo.
E é verdade que, desde os anos 90, ou seja, há pelo menos 30 anos, a UN tem
conseguido aproximar-se dessas classes, para as quais a esquerda não consegue
encontrar uma linguagem. O que é extraordinário é que Emmanuel
Macron — voltando a ele — está a acelerar este movimento e a
criar surpresas. Porque a UN é um partido que está estabelecido na França há
muito, muito, muito tempo.
E que tem
crescido sustentadamente ao longo do tempo…
Exacto.
E, de facto, existe uma espécie de legitimidade temporal. O En Marche! é um
partido novo e que na prática não existe. Os socialistas encolheram, os
comunistas encolheram, etc. A direita também perdeu para a UN. Este é um
partido que trabalha há décadas junto do seu eleitorado. E há um certo
enraizamento. E, portanto, ultrapassou a esquerda tradicional.
A França Insubmissa
“complacente” com a Rússia, por oposição aos EUA. “Não vejo como será possível
que a Frente Popular tenha uma política externa comum”
E quanto à
França Insubmissa? O macronismo está a tentar distanciar-se dela e o próprio
Mélenchon tem tido uma posição face à questão ucraniana muito diferente da do
resto da esquerda e do centro. Também contribui para as ambições de Putin?
Na verdade, isto é um reflexo da influência ideológica
russa na França. Ela apela
obviamente à UN e aos eleitores gaulistas de direita, com a ideia de um “homem
providencial” e etc. Mas também apela aos anti-imperialistas da França
Insubmissa ou aos comunistas. A ligação com Moscovo é tradicional. É verdade
que Jean-Luc Mélenchon foi extremamente indulgente com Vladimir Putin, com a
sua impossibilidade de pensar que podem existir dois impérios ao mesmo tempo. É
aquilo que em filosofia chamamos de “campismo anti-colonial”, a ideia de que existe apenas um império:
o norte-americano. Portanto,
todos aqueles que lutam contra o império americano são aliados. Como Chávez, por exemplo. E é verdade que Mélenchon
foi extremamente complacente com o putinismo. Foi muito duro com Navalny, disse
que ele um era antissemita, etc. Para Mélenchon é isto, é sempre um campo
contra outro. E ele escolhe o campo anti-americano e “anti-imperialista”. Portanto,
é verdade que existe uma complacência face à Rússia.
▲A posição de
Jéan-Luc Mélenchon para com a Rússia tem sido, para o filósofo,
"indulgente" AFP VIA GETTY IMAGES
Por outro lado, não acredito
que o seu partido França Insubmissa tenha ligações tão profundas com o Kremlin
e com pessoas próximas do Kremlin como a UN. Havia, digamos, pessoas “castanho-avermelhadas”
[defensoras de uma ideologia comuno-fascista], uma espécie de cidadãos
bolcheviques dentro da França Insubmissa já há alguns anos — nomeadamente um
dos conselheiros de Mélenchon, [Georges] Kuzmanovic, de origem sérvia, mas
que já se foi há muito tempo. E
vejo que na esquerda, na Frente Popular, existem actualmente posições muito
diferentes sobre a Ucrânia — desde Raphaël Glucksmann, que é ainda mais
pró-Ucrânia do que Macron, até aos comunistas e à FI. Portanto, esta é uma questão ideológica
muito importante e que dificultará a formação de uma Frente Popular no futuro.
Não vejo como possível que tenham uma política externa comum. Mas, de qualquer
forma, acredito que os laços entre a UN e a Rússia são muito mais fortes, muito
mais profundos e mais próximos do que os de qualquer pessoa na FI.
Muita gente diz estar com medo de
domingo, independentemente do que acontecer. Temem um clima de violência, há
até quem fale em guerra civil. Acha que há o risco de França se desagregar de
alguma forma depois desta eleição?
Há
exactamente um ano, houve motins nos subúrbios que foram muito fortes. Há uma
polarização nos jovens, por exemplo, que é muito forte. Há um lado que é muito
fortemente pró–Jordan Bardella, e um lado muito fortemente pró-FI. Há muito nervosismo social. O país está
dividido, há uma forte polarização. Portanto, há obviamente um risco de
violência. Esta violência beneficiará principalmente a extrema-direita, uma vez
que a extrema-direita, sem dizer nada durante anos, tem beneficiado de crises
como a dos Coletes Amarelos ou os motins suburbanos.
Existe,
de facto, o risco de acções violentas. Espero que sejam muito localizadas e
rapidamente contidas. Mas o problema é que este caos é profundamente acarinhado
pela Rússia, que há anos repete que as democracias liberais estão à beira do
caos e numa guerra perpétua. Portanto, há um risco. Mas não nos podemos
esquecer de que, em qualquer cenário, em França ninguém beneficiará com isto a
não ser a UN. Se este domingo não tiverem maioria absoluta, se Bardella não se
tornar primeiro-ministro, a agitação que pode ocorrer em França beneficiará uma
vez mais a UN. No final, é ela quem ganha.
COMENTÁRIOS (de 10):
Mário Costa: Entre a extrema-direita e Putin quase não há diferenças Cisca
Impllit: Uma belíssima entrevista.
Filósofo escorreito e sábio este Eltchaininoff. Sem equívocos Luis Silva: Não confio neste individuo nem para me dizer as horas. Liberales
Semper Erexitque: Mais um Rambo... Agora vêm em formato intelectual. Nunca pegaram numa arma,
mas acham esplêndida a ideia de atacar a Rússia. E aqui surge a dissonância e a
causa das coisas: os franceses não querem atacar a Rússia. E quem está lá, com
colinho para eles caírem? Ora ora, a vaquinha fascista bretã!
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