Daí que comece eu o meu comentário, por transcrever a Introdução
vicentina à “Romagem
dos Agravados”, para desviar um pouco, num sentido mais ameno, os
justos agravos do jovem P. João
Bastos, que nos traz um retrato bem mais pessimista acerca do ofício
de padre, nestes tempos de muita palhaçada social.
Não esqueço o tom atrabiliário dos escritos de invectiva contra o
liberalismo, do Padre José Agostinho de Macedo,
prova de que temos muita gente com graça e garra entre os nossos escritores, de
que o escrito crítico do P. João
revela outras facetas incómodas a respeito do ofício de sacerdote hoje. Já “Eurico o Presbítero”, nos revela um
escritor – Alexandre Herculano – romanticamente
crítico do celibato sacerdotal. Mas nunca esquecerei – pese embora a figura de
um padre colericamente beato de “A Morgadinha
dos Canaviais” da crítica anticlerical de Júlio Dinis, a figura honesta
e paternal do Senhor Reitor das Pupilas do
mesmo Júlio Dinis, da nossa
adolescência encantada, como o poderá ser da nossa velhice agradecida.
Tais referências serviriam, se ele as lesse, como uma forma de amenizar
o estado de espírito de um padre jovem ainda, em justo sofrimento de revolta,
nestes tempos não descoloridos, mas acalorados por males bem tamanhões, afinal
para toda a gente. Quando não, brincalhões, em harmonia com a materialidade – e
o destrambelho - em que assentamos, neste século 21, e onde o ofício de
sacerdote cumpridor se apresenta - pelo menos nas terras da província pertencentes
ao foro de cada um deles e distantes umas das outras - de dificuldade vária, além
de que sujeita a murmuração corrosiva e ociosa dos paroquianos de visão quantas
vezes estreita e grosseira, mas sempre unívoca na questão dos defeitos. Para
além das coisas graves de que trata o texto do P João
Bastos, relativamente à sociedade em geral e à Comunicação Social em
especial, nas suas questões parolamente perversas, segundo a libertinagem da
nossa pobreza espiritual generalizada.
Uma excelente peça literária, de crítica bem contundente a uma
sociedade que, ao invés de avaliar o sacrifício e a dedicação humanitária do
verdadeiro “padre por vocação” se permite cada vez mais achincalhar tal ofício,
em que os abusos pedófilos ou outros de alguns deles, proporcionaram a generalização
de atoardas e grosserias, que não poupam os tais sacerdotes sentidamente
palhaços, porque continuam a cumprir, segundo os parâmetros da sua dedicação
humanitária, apesar do anticlericalismo, quantas vezes pedante e ignaro que os
rodeia.
O texto de Gil Vicente:
»FREI PAÇO: Quem me vir entrar assi com estes jeitos que faço, cuidará que endoudeci, até que saiba de mi que
sou o padre Frei Paço.
- Deo gratias não me pertence nem
para sempre nem nada, senão espada
dourada, porque muito bem parece ao Paço trazer espada.
- Eu sou fino da pessoa e por
se não duvidar fiz uma cousa mui boa, leixei crescer a coroa: sem
nunca a mandar rapar.
- E portanto vos não digo Deo gratias se atentais nisto, nem louvado Jesu Cristo, inda
que trago comigo hábito que é muito disso. -
-
E sam tam paço em mi que me
posso bem gabar que envejar
mexericar são meus salmos de Davi que costumo de rezar.
- Falo
mui doce cortês grã soma de
comprimentos obras nam nas esperês senam que vos contentês com
palavrinhas de ventos.
-- Sou favor e desfavor mestre mor dos namorados engano dos confiados sou templo do deos d’amor inferno de magoados.
- Porém
nam como soía é já a lei namorada e porque tudo s’enfria amo
assi de sesmaria e sospiro d’empreitada.
- O auto que ora vereis se chama irmãos amados Romagem dos Agravados inda que alguns achareis que
se agravam d’abastados
Os padres são palhaços. E ainda bem.
O anticlericalismo cego – tantas
vezes tido como intelectualmente sofisticado e superior – é tão nocivo, tóxico
e fundamentalista como a beatice mais medieval.
P. JOÃO BASTO, Sacerdote, membro da equipa formadora do Seminário
Diocesano de Viana do Castelo
OBSERVADOR, 19
jul. 2024, 00:1526
Em Portugal, e um bocado por todo o
hemisfério norte, o verão traz um evento pouco mediatizado, mas extremamente
significativo para um público especializado: as ordenações de padres. Nem todas ocorrem entre Julho e Agosto,
mas a sua maioria, por um conjunto de razões que, para este texto, pouco
importam, acontecem durante estes meses do ano. Ainda assim, não deixa de ser significativo o paralelismo
entre a renovação epocal oferecida pelo verão, e a renovação que, para cada
Diocese, significa uma nova ordenação.
Por isso, importa pensar o que
significa hoje ser padre. Era possível, neste contexto, desenvolver uma
reflexão mais ordenada sobre o assunto, mas prefiro deter-me em aspectos mais prosaicos. Ser padre significa, hoje, saber que,
muito possivelmente, o primeiro que se fará depois de “terminar o seminário”, é
endividar-se para
comprar um carro que
aguente os milhares de quilómetros percorridos, por ladeiras e regos de água,
para se chegar à última capela da aldeia onde já só vivem 10 pessoas. (Tudo
isto porque o típico “bolinhas”, meio
carro de seminarista, meio sucata herdada dos pais, não dá para percorrer as 9
paróquias de montanha, em segurança).
Ser padre é, por exemplo, saber que o currículo, os talentos ou as
inclinações pessoais não são um talismã que livre quem quer que seja de “lavar
as mãos na terra”, porque a prioridade não é a sua satisfação pessoal.
Ser
padre é, também, estar disposto a entrar numa das muitas profissões sem
sindicato, sem medicina no trabalho, e onde, segundo os estudos mais recentes
noutras latitudes, a saúde mental é cada vez mais sinónimo de suicídio, burnout
e depressão.
Ser
padre é aceitar que, muito possivelmente, se viverá condenado à solidão e que
qualquer gesto de amizade ou afecto poderá ser mal interpretado, porque o padre
que sai à noite com os amigos é pouco sério, e o que está sempre metido em casa
é antipático.
Ser
padre é a única profissão do mundo a quem se tornou aceitável um apresentador
de televisão perguntar, como aconteceu há muito pouco tempo, e em directo, se o
entrevistado em causa “se masturba”, sem que isso signifique uma grave intrusão
da vida íntima, o que não deixa de mostrar como o clero acaba por ser
alvo de uma espionagem permanente da intimidade e que, não raras vezes, termina
em chantagem emocional e afectiva, como mostrou, mesmo que com insuficiências,
Marco Marzano no livro A Casta dos
Castos.
Ser
padre é, também, ver o seu nome associado, em caixas de comentários – incluindo
provavelmente na deste artigo –, sem qualquer pejo, aos seguintes ápodos: pedófilo,
chulo, vigarista, ladrão, criminoso e mentiroso. Ser padre é, de igual forma,
ter aprendido, ou ter adormecido a aprender, 3 línguas antigas, 2 alfabetos
novos, ter conhecido, além das disciplinas de teologia, a história da filosofia
e a história universal, para lá de toda a formação musical, metida no meio das
horas livres após a faculdade, o que torna o seminário e o curso de Teologia
algo mais do que uma formação técnica para aprender a “comer hóstias” com
classe.
Alguns destes aspectos são comuns a
outras “profissões”? Sim. Há manifestações de imperfeição no Clero, que
ultrapassam, até, a mais basilar legalidade? Sem dúvida. Na verdade, há, aliás,
quem, e bem, distinga entre o padre e o padreco. Mas este momento sindical
também é necessário, para repor alguma equidade no tratamento deste assunto.
Por isso, afirmei que os padres são
uns palhaços. Compete-nos agora decidir de que maneira o somos. Se o somos no pior sentido da palavra, e
vivemos o ministério como uma condenação. Ou se o vivemos, na medida em que o
palhaço é aquele que é capaz de rir de si próprio e encontrar força na sua
própria fragilidade. Palhaços
tais como os bobos da corte, na idade média, que renunciando a lugares de poder
se tornavam mais livres. Palhaços,
porque optam por uma itinerância e por uma pobreza incompreensível. Palhaços, porque continuam a achar que, mesmo quando
se centraliza mais o Estado, não deixa de valer a pena ir àquele pequeno lugar
onde já não há médico nem professor. Palhaços, porque mesmo que algumas
instituições públicas façam a vida negra às instituições de solidariedade
social geridas pelas paróquias, não se pode desistir de dar a vida para que
haja uma mínima rede de cuidados, onde o Estado não chega. Palhaços,
porque passam a vida a falar de uma antilógica, que é a lógica do Evangelho.
Palhaços, porque são olhados com altivez, como se tivessem saído de um livro do
Eça ou do Camilo. Palhaços, porque não falta quem veja no facto de o serem,
algo menos nobre.
O
Clero tem problemas? Tem. E um padre será o primeiro a dissertar sobre eles
demoradamente, sem nada lhe ter sido perguntado neste sentido, mesmo que não
conheça os trabalhos de Donald Cozzens ou tenha lido George Bernanos.
A
Igreja tem disfuncionalidades? Seria uma brutal cegueira defender que não. Mas
nenhuma delas se resolve partindo do princípio que “padres, bispos e
freiras” são um bando de malfeitores. É verdade que o Clero não está acima da
lei, mas também não está abaixo. (Tomando aqui lei num sentido mais vasto do
que a literalidade).
Se há quem idolatrize as capacidades
do Clero, há quem também as despreze, pelo mesmo motivo que os primeiros as
veneram: o facto do alvo da análise ser padre. Porque o anticlericalismo cego –
tantas vezes tido como intelectualmente sofisticado e superior – é tão nocivo,
tóxico e fundamentalista, como a beatice mais medieval. E no meio disso, o que
se nega é a possibilidade de se conhecer a complexidade de circunstâncias em
que o Clero se vê envolvido.
IGREJA CATÓLICA RELIGIÃO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 26)
Alexandre Barreira: Pois. Caro P. João. Tenha
calma. Porque no meio desta "palhaçada". Ainda há
"palhaços" honestos......!!! Maria
Nunes: P. João
Basto, gostei do seu artigo. Deve ser muito difícil ser-se padre actualmente. Admiro
a sua coragem, entusiasmo e honestidade. Meio
Vazio: Beatice e
anticlericalismo são duas disposições que, desde o séc XIX, perfeita, e
perversamente, se combinam na cultura portuguesa - o que diz mais da ignorância
religiosa do Zé Povinho e do jacobinismo das suas "elites" e
instituições educativas ("vade retro tudo o que possa cheirar a água
benta"!) do que da debilidade do catolicismo. Pobre Portugal > João
Almeida Gomes: 1º No seu
primeiro comentário, o João falou de Deus, e eu respondi-lhe. Agora mudou de
assunto e fala instituição ICAR. Não o pode fazer, por que não são a mesma
coisa. A Igreja católica Apostólica Romana tem muitos defeitos, mas não tantos
como os que os seus inimigos gostariam que tivesse. 2º Pedofilia: Um estudo
revelado pelo Papa Francisco revelou que a pedofilia na igreja é de 3%! E que
46% ocorrem na família. Mas reconheceu que “esse é um número suficiente para
ser investigado e para travar abusos futuros.” Não acha, João Almeida, que
ao enfatizar esses 3% se está a esquecer os 97%? Mais: das 5,5 milhões de
crianças abusadas em França, 96% foram abusadas em ambientes que não têm nada a
ver com a Igreja, mas ninguém falou sobre o drama e as responsabilidades por
esses 96% dos abusos, só sobre os 4%. 3º A Inquisição foi um terror, do qual a Igreja já pediu as desculpas devidas.
E sabe o João que quem aplicava as penas da Inquisição era a autoridade civil,
ou seja, o Estado? Não quero ser implicativa, mas acho que o João está enganado
em praticamente tudo no que a Deus e à Igreja diz respeito. Maria Emília Santos Santos: Bem, agora não entendi porque
retiraram o meu comentário! Dizer que os padres católicos dão a vida deles para
que a vida dos outros não seja uma palhaçada? É isso que é censurável? Santo
Deus, onde chegámos ! Que Deus venha depressa e nos defenda desta censura
feroz! António: Admiro a força de carácter de
todos os homens que decidem ser padres nesta época de espectáculo continuum!
Parabéns a todos vós!
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