sábado, 20 de julho de 2024

Um padre “Agravado “destes tempos de agravos

 

Daí que comece eu o meu comentário, por transcrever a Introdução vicentina à  Romagem dos Agravados”, para desviar um pouco, num sentido mais ameno, os justos agravos do jovem P. João Bastos, que nos traz um retrato bem mais pessimista acerca do ofício de padre, nestes tempos de muita palhaçada social.

Não esqueço o tom atrabiliário dos escritos de invectiva contra o liberalismo, do Padre José Agostinho de Macedo, prova de que temos muita gente com graça e garra entre os nossos escritores, de que o escrito crítico do P. João revela outras facetas incómodas a respeito do ofício de sacerdote hoje. Já “Eurico o Presbítero”, nos revela um escritor – Alexandre Herculano – romanticamente crítico do celibato sacerdotal. Mas nunca esquecerei – pese embora a figura de um padre colericamente beato de “A Morgadinha dos Canaviais” da crítica anticlerical de Júlio Dinis, a figura honesta e paternal do Senhor Reitor das Pupilas do mesmo Júlio Dinis, da nossa adolescência encantada, como o poderá ser da nossa velhice agradecida.

Tais referências serviriam, se ele as lesse, como uma forma de amenizar o estado de espírito de um padre jovem ainda, em justo sofrimento de revolta, nestes tempos não descoloridos, mas acalorados por males bem tamanhões, afinal para toda a gente. Quando não, brincalhões, em harmonia com a materialidade – e o destrambelho - em que assentamos, neste século 21, e onde o ofício de sacerdote cumpridor se apresenta - pelo menos nas terras da província pertencentes ao foro de cada um deles e distantes umas das outras - de dificuldade vária, além de que sujeita a murmuração corrosiva e ociosa dos paroquianos de visão quantas vezes estreita e grosseira, mas sempre unívoca na questão dos defeitos. Para além das coisas graves de que trata o texto do P João Bastos, relativamente à sociedade em geral e à Comunicação Social em especial, nas suas questões parolamente perversas, segundo a libertinagem da nossa pobreza espiritual generalizada.

Uma excelente peça literária, de crítica bem contundente a uma sociedade que, ao invés de avaliar o sacrifício e a dedicação humanitária do verdadeiro “padre por vocação” se permite cada vez mais achincalhar tal ofício, em que os abusos pedófilos ou outros de alguns deles, proporcionaram a generalização de atoardas e grosserias, que não poupam os tais sacerdotes sentidamente palhaços, porque continuam a cumprir, segundo os parâmetros da sua dedicação humanitária, apesar do anticlericalismo, quantas vezes pedante e ignaro que os rodeia.

O texto de Gil Vicente:

»FREI PAÇO:    Quem me vir entrar assi    com estes jeitos que faço,    cuidará que endoudeci,    até que saiba de mi    que sou o padre Frei Paço.   

-   Deo gratias não me pertence    nem para sempre nem nada,    senão espada dourada,    porque muito bem parece    ao Paço trazer espada. 

 -  Eu sou fino da pessoa    e por se não duvidar    fiz uma cousa mui boa,    leixei crescer a coroa:    sem nunca a mandar rapar.  

-   E portanto vos não digo   Deo gratias se atentais nisto,    nem louvado Jesu Cristo,    inda que trago comigo    hábito que é muito disso.  - 

-  E sam tam paço em mi    que me posso bem gabar    que envejar mexericar    são meus salmos de Davi    que costumo de rezar.

 -  Falo mui doce cortês     grã soma de comprimentos     obras nam nas esperês    senam que vos contentês     com palavrinhas de ventos.   

--   Sou favor e desfavor     mestre mor dos namorados     engano dos confiados     sou templo do deos d’amor     inferno de magoados.   

-    Porém nam como soía     é já a lei namorada     e porque tudo s’enfria     amo assi de sesmaria     e sospiro d’empreitada.    

-    O auto que ora vereis     se chama irmãos amados     Romagem dos Agravados inda que alguns achareis     que se agravam d’abastados            

 

Os padres são palhaços. E ainda bem.

O anticlericalismo cego – tantas vezes tido como intelectualmente sofisticado e superior – é tão nocivo, tóxico e fundamentalista como a beatice mais medieval.

P. JOÃO BASTO, Sacerdote, membro da equipa formadora do Seminário Diocesano de Viana do Castelo

OBSERVADOR, 19 jul. 2024, 00:1526

Em Portugal, e um bocado por todo o hemisfério norte, o verão traz um evento pouco mediatizado, mas extremamente significativo para um público especializado: as ordenações de padres. Nem todas ocorrem entre Julho e Agosto, mas a sua maioria, por um conjunto de razões que, para este texto, pouco importam, acontecem durante estes meses do ano. Ainda assim, não deixa de ser significativo o paralelismo entre a renovação epocal oferecida pelo verão, e a renovação que, para cada Diocese, significa uma nova ordenação.

Por isso, importa pensar o que significa hoje ser padre. Era possível, neste contexto, desenvolver uma reflexão mais ordenada sobre o assunto, mas prefiro deter-me em aspectos mais prosaicos. Ser padre significa, hoje, saber que, muito possivelmente, o primeiro que se fará depois de “terminar o seminário”, é endividar-se para comprar um carro que aguente os milhares de quilómetros percorridos, por ladeiras e regos de água, para se chegar à última capela da aldeia onde já só vivem 10 pessoas. (Tudo isto porque o típico “bolinhas”, meio carro de seminarista, meio sucata herdada dos pais, não dá para percorrer as 9 paróquias de montanha, em segurança).

Ser padre é, por exemplo, saber que o currículo, os talentos ou as inclinações pessoais não são um talismã que livre quem quer que seja de “lavar as mãos na terra”, porque a prioridade não é a sua satisfação pessoal.

Ser padre é, também, estar disposto a entrar numa das muitas profissões sem sindicato, sem medicina no trabalho, e onde, segundo os estudos mais recentes noutras latitudes, a saúde mental é cada vez mais sinónimo de suicídio, burnout e depressão.

Ser padre é aceitar que, muito possivelmente, se viverá condenado à solidão e que qualquer gesto de amizade ou afecto poderá ser mal interpretado, porque o padre que sai à noite com os amigos é pouco sério, e o que está sempre metido em casa é antipático.

Ser padre é a única profissão do mundo a quem se tornou aceitável um apresentador de televisão perguntar, como aconteceu há muito pouco tempo, e em directo, se o entrevistado em causa “se masturba”, sem que isso signifique uma grave intrusão da vida íntima, o que não deixa de mostrar como o clero acaba por ser alvo de uma espionagem permanente da intimidade e que, não raras vezes, termina em chantagem emocional e afectiva, como mostrou, mesmo que com insuficiências, Marco Marzano no livro A Casta dos Castos.

Ser padre é, também, ver o seu nome associado, em caixas de comentários – incluindo provavelmente na deste artigo –, sem qualquer pejo, aos seguintes ápodos: pedófilo, chulo, vigarista, ladrão, criminoso e mentiroso. Ser padre é, de igual forma, ter aprendido, ou ter adormecido a aprender, 3 línguas antigas, 2 alfabetos novos, ter conhecido, além das disciplinas de teologia, a história da filosofia e a história universal, para lá de toda a formação musical, metida no meio das horas livres após a faculdade, o que torna o seminário e o curso de Teologia algo mais do que uma formação técnica para aprender a “comer hóstias” com classe.

Alguns destes aspectos são comuns a outras “profissões”? Sim. Há manifestações de imperfeição no Clero, que ultrapassam, até, a mais basilar legalidade? Sem dúvida. Na verdade, há, aliás, quem, e bem, distinga entre o padre e o padreco. Mas este momento sindical também é necessário, para repor alguma equidade no tratamento deste assunto.

Por isso, afirmei que os padres são uns palhaços. Compete-nos agora decidir de que maneira o somos. Se o somos no pior sentido da palavra, e vivemos o ministério como uma condenação. Ou se o vivemos, na medida em que o palhaço é aquele que é capaz de rir de si próprio e encontrar força na sua própria fragilidade. Palhaços tais como os bobos da corte, na idade média, que renunciando a lugares de poder se tornavam mais livres. Palhaços, porque optam por uma itinerância e por uma pobreza incompreensível. Palhaços, porque continuam a achar que, mesmo quando se centraliza mais o Estado, não deixa de valer a pena ir àquele pequeno lugar onde já não há médico nem professor. Palhaços, porque mesmo que algumas instituições públicas façam a vida negra às instituições de solidariedade social geridas pelas paróquias, não se pode desistir de dar a vida para que haja uma mínima rede de cuidados, onde o Estado não chega. Palhaços, porque passam a vida a falar de uma antilógica, que é a lógica do Evangelho. Palhaços, porque são olhados com altivez, como se tivessem saído de um livro do Eça ou do Camilo. Palhaços, porque não falta quem veja no facto de o serem, algo menos nobre.

O Clero tem problemas? Tem. E um padre será o primeiro a dissertar sobre eles demoradamente, sem nada lhe ter sido perguntado neste sentido, mesmo que não conheça os trabalhos de Donald Cozzens ou tenha lido George Bernanos.

A Igreja tem disfuncionalidades? Seria uma brutal cegueira defender que não. Mas nenhuma delas se resolve partindo do princípio que “padres, bispos e freiras” são um bando de malfeitores. É verdade que o Clero não está acima da lei, mas também não está abaixo. (Tomando aqui lei num sentido mais vasto do que a literalidade).

Se há quem idolatrize as capacidades do Clero, há quem também as despreze, pelo mesmo motivo que os primeiros as veneram: o facto do alvo da análise ser padre. Porque o anticlericalismo cego – tantas vezes tido como intelectualmente sofisticado e superior – é tão nocivo, tóxico e fundamentalista, como a beatice mais medieval. E no meio disso, o que se nega é a possibilidade de se conhecer a complexidade de circunstâncias em que o Clero se vê envolvido.

IGREJA CATÓLICA     RELIGIÃO     SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 26)

Alexandre Barreira: Pois. Caro P. João. Tenha calma. Porque no meio desta "palhaçada". Ainda há "palhaços" honestos......!!!                  Maria Nunes: P. João Basto, gostei do seu artigo. Deve ser muito difícil ser-se padre actualmente. Admiro a sua coragem, entusiasmo e honestidade.                 Meio Vazio: Beatice e anticlericalismo são duas disposições que, desde o séc XIX, perfeita, e perversamente, se combinam na cultura portuguesa - o que diz mais da ignorância religiosa do Zé Povinho e do jacobinismo das suas "elites" e instituições educativas ("vade retro tudo o que possa cheirar a água benta"!) do que da debilidade do catolicismo.              Pobre Portugal > João Almeida Gomes: No seu primeiro comentário, o João falou de Deus, e eu respondi-lhe. Agora mudou de assunto e fala instituição ICAR. Não o pode fazer, por que não são a mesma coisa. A Igreja católica Apostólica Romana tem muitos defeitos, mas não tantos como os que os seus inimigos gostariam que tivesse. Pedofilia: Um estudo revelado pelo Papa Francisco revelou que a pedofilia na igreja é de 3%! E que 46% ocorrem na família. Mas reconheceu que “esse é um número suficiente para ser investigado e para travar abusos futuros.” Não acha, João Almeida, que ao enfatizar esses 3% se está a esquecer os 97%? Mais: das 5,5 milhões de crianças abusadas em França, 96% foram abusadas em ambientes que não têm nada a ver com a Igreja, mas ninguém falou sobre o drama e as responsabilidades por esses 96% dos abusos, só sobre os 4%.  A Inquisição foi um terror, do qual a Igreja já pediu as desculpas devidas. E sabe o João que quem aplicava as penas da Inquisição era a autoridade civil, ou seja, o Estado? Não quero ser implicativa, mas acho que o João está enganado em praticamente tudo no que a Deus e à Igreja diz respeito.                    Maria Emília Santos Santos: Bem, agora não entendi porque retiraram o meu comentário! Dizer que os padres católicos dão a vida deles para que a vida dos outros não seja uma palhaçada? É isso que é censurável? Santo Deus, onde chegámos ! Que Deus venha depressa e nos defenda desta censura feroz!              António: Admiro a força de carácter de todos os homens que decidem ser padres nesta época de espectáculo continuum! Parabéns a todos vós!

 

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