Esses tais de governantes. Será gente?
Gente não é, certamente… e os bichos são mais humanos… e a neve não bate assim…
são apenas governantes…com poder para violar… princípios de humanidade…
atributos da razão que se diz da humana condição. Com bué senão.
Taghi Rahmani: “O regime iraniano está podre, mas vão massacrar Narges na prisão"
"Tortura
Branca" é o livro de Narges Mohammadi sobre a brutalidade do
encarceramento de várias mulheres no Irão, ela que também está presa. Falámos
com o marido sobre o futuro de Narges e do país.
ANTÓNIO MOURA DOS SANTOS: Texto
OBSERVADOR,30 jun. 2024, 16:184
Tanto Taghi Rahmani como os seus
filhos gémeos, Ali e Kiana Rahmani, não vêem Narges Mohammadi — mulher e mãe,
respectivamente — há perto de uma década. Podia
dar-se o caso de serem desavenças familiares a propiciar esse afastamento, mas
é precisamente o oposto. Laureada Nobel da Paz em 2023 pelo seu
envolvimento no movimento cívico de oposição ao regime islâmico teocrático do
Irão, Mohammadi é reclusa numa das mais infames prisões iranianas há vários
anos. Aliás, foi a sua família — a viver no exílio em Paris — a receber o
prémio em seu nome em Oslo.
Rahmani esteve em Lisboa
precisamente para manter o nome de Narges Mohammadi bem vivo na nossa mente,
encontrando-se a promover Tortura Branca, livro da activista que relata a brutal experiência de encarceramento
de várias mulheres — e que lhe valeu mais tempo ainda de prisão, como
retaliação do regime. O seu título deve-se a uma forma de
tortura de índole psicológica que consiste em colocar as pessoas detidas sob
confinamento solitário, permanentemente sujeitas à luz e sem quaisquer
estímulos presentes dentro da sua diminuta cela.
“A
dor está na imensidão, capaz de quebrar um ser humano”, contou ao Observador em
farsi, numa entrevista feita com recurso ao trabalho de interpretação de
Askhan, cidadão iraniano a viver em Portugal há várias décadas. Rahmani, ele
próprio um activista contra o regime, sofreu uma experiência semelhante durante
os vários períodos de cárcere que viveu até ao momento em que abandonou o país.
No
rescaldo dos protestos do movimento “Mulheres, Vida e Liberdade” — propiciados pela pela morte de Mahsa Amini às mãos
da polícia da moral iraniana — Rahmani admite que o frémito da oposição foi
reprimido pelo regime. No entanto, não só a sua experiência diz-lhe que “os
movimentos não são sempre constantes, há alturas em que estão mais fortes e
outras em que perdem força”, como afirma que os desenvolvimentos dos últimos
anos deixaram marcas e que já há divisões no seio da elite política iraniana.
Para
Rahmani, o actual líder supremo do Irão, Ali Khamenei,
é um símbolo do “apodrecimento do regime”,
que de dia para dia se vai tornando cada vez mais caduco. Tendo esta conversa
decorrido antes das eleições
presidenciais motivadas pela morte súbita de Ebrahim Raisi — e que vão
agora para uma segunda volta depois de um recorde de 40% de abstenção — Rahmani
afirmou desde logo que “a participação nas eleições não significa que o povo
tenha escolhido determinado candidato. Há pessoas que dizem ‘OK, vamos participar e vamos votar, não
acreditamos no regime e se as coisas piorarem, voltamos a manifestar-nos’.
A isso eu respondo que o melhor então é não participar, mas as pessoas têm medo
de perder o seu emprego”.
Perante a realidade actual no Irão, o activista
pede duas coisas. A primeira é que a comunidade internacional pare de olhar
apenas para os seus interesses e concentre esforços em auxiliar a oposição no
Irão, já que “num dia aplicam sanções, noutro negociam com o regime. Isso
confunde o povo”. A segunda é que mantenham viva a voz de Narges
Mohammadi. Mesmo atrás das grades, ela “vai
elevar a sua voz o mais alto possível pelos os direitos das mulheres da região,
pela liberdade, pelos direitos humanos, pela democracia, pela paz e
desenvolvimento. Vou manter-me também nesse caminho e, para isso, precisamos da
vossa ajuda”.
▲A capa da
edição portuguesa de "Tortura Branca", de Narges Mohammadi (Casa das
Letras)
Quais são as últimas notícias sobre
Narges Mohammadi? A última notícia que tenho é que na semana passada foi feito
um julgamento sem a presença de Narges e acrescentaram mais um ano à pena
que tem ainda para cumprir. Isso foi fundamentado pelo regime por dois grandes motivos: o primeiro foi o
facto de ter divulgado informação sobre os abusos a que Dina Ghalibaf, outra
mulher encarcerada, foi sujeita — trataram-se de apalpões nas zonas íntimas,
situações deste tipo. E o segundo prende-se com o facto de Narges ter promovido
um boicote às eleições parlamentares. Então, o regime disse “estás a agir
contra a segurança nacional” e aplicaram-lhe mais um ano de prisão.
Quanto a essa denúncia dos abusos, mesmo
com todas as restrições impostas pela prisão de Evin, Narges tem
vindo a relatar as condições em que mulheres — como ela — são encarceradas. Foi assim
que surgiu Tortura Branca. Como é que
ela conseguiu divulgar estas informações a partir da prisão? Esse livro não foi escrito de uma vez só e num único
período. Foi o resumo de muitas conversas com outras prisioneiras, sendo que
ela foi apontando essas entrevistas. Cada uma delas fez Narges sentir as
consequências, porque isto perante o regime iraniano é um crime, é considerada
divulgação de fake news. O regime iraniano está podre, mas devido à promoção
dessas coisas, vão massacrá-la dentro da prisão.
Supondo que há algum grau de controlo,
como é que Narges consegue circunscrever esse controlo e passar essas
informações para fora?
Evin é como se fosse um
castelo gigante. Quando uma
pessoa passa informação para fora, está disposta a pagar o preço, com sentenças
de encarceramento. Tal como Narges, foi detido várias vezes por causa do
seu activismo, tendo também sido sujeito a confinamento solitário.
Com base na sua experiência,
que tipo de estado mental é que as autoridades iranianas tentam criar nos presos
políticos?
O regime islâmico encara os seus
opositores de várias formas. Para começar, está disponível a pagar e comprar o
silêncio. Fizeram-me tal proposta várias vezes, oferecendo bom
dinheiro e bom emprego. Se não aceitarmos, ficamos sem possibilidade de exercer
qualquer função. Muitos jornalistas, por exemplo, ficaram desempregados. E se
uma pessoa, nestas condições, quer voltar a exercer atividade, é detida. Se resistir
dentro da prisão, mantêm-na lá o tempo que for necessário até desistir. Mas quando há activistas que vão fazer
manifestações armados, esses são logo executados. E se houver
manifestações de alguma dimensão, matam algumas pessoas na rua e executam
outras tantas dentro das prisões para passar a mensagem para o resto do povo.
Isto tem uma razão, porque se baixarem
a guarda, se diminuírem a supressão, o povo ganha. Eles não querem isso, por
isso a supressão está sempre ao máximo para manter o povo em baixo.
Tendo em conta os métodos usados, como
a própria tortura branca, parece haver uma tentativa de condicionamento mental
nos próprios activistas.
Quando o prisioneiro chega à prisão,
podem deitá-lo e baterem-lhe com cabos eléctricos. Aí, o detido pode dizer
“quero confessar”, isto torna-se compreensível para si próprio. Mas a tortura
branca é pior do que isso, são os confinamentos solitários onde a dor está
na imensidão, capaz de quebrar um ser humano. Nesses dois métodos, aqueles que são espancados ou chicoteados,
quando saem da prisão, têm marcas físicas de tortura e confessam. Há um
entendimento do estilo “confessaste porque levaste com chicotadas”. Mas na tortura branca, dentro das
solitárias, se confessares dizem-se “oh, mas tu não tens nada, porque é que
estás a confessar?”
Porque não há nenhum sinal visível de
violência. Isso faz com que a própria pessoa chegue ao ponto de
querer confessar contra os amigos e contra ele próprio para pôr término àquela
situação.
Uma
ideia que retive ao ler o livro é que a tortura branca também tem o intuito de
fazer da pessoa torturada alguém não confiável, porque já foi quebrado.
Ou seja, tem o intuito de isolá-la também perante o resto da comunidade. Precisamente. Quando
lhe dizem que não tem nada e lhe perguntam porque é que confessou, a
personalidade e a crença da pessoa vão abaixo. Depois de estar na solitária
durante meses, a pessoa acaba por acreditar nas suas confissões. “Eu disse
essas coisas… mas porquê?” Esta é uma forma de desacreditar a pessoa junto da
sociedade para que a sua palavra deixe de ter sentido ou valor.
Porque é que é um método tão eficaz? Dou-lhe
um exemplo: todas as pessoas no mundo vivem actualmente com o seu telemóvel,
com notícias, redes sociais. A maior parte da população do mundo está agarrada
a este aparelho. Hoje em dia, nenhum de nós consegue passar 10 ou 15 minutos
sem olhar para o telemóvel, para ver as notícias, para ver isto e aquilo. Portanto,
há uma necessidade de absorver informação. Agora imagine que o levam para
uma cela solitária com três metros de comprimento e menos de 1,70 de largura e não tem acesso a jornais nem a notícias
nem a absolutamente nada. A única pessoa que consegue ver é o seu carrasco, a
pessoa que supostamente vai executá-lo daqui a algum tempo. É bastante mais
eficaz do que estar a chicotear ou torturar — e é precisamente por causa disso
que Narges escreveu e revelou estas coisas, para parar com estes actos
desumanos. Este livro não é apenas uma história, é a realidade a acontecer
enquanto o lemos. Está a acontecer precisamente neste momento.
Quero
contar-lhe uma experiência, já que eu próprio estive nessa situação. Já tinham
passado quatro meses e meio desde que estava numa cela solitária. Passaram-me
detergente para a roupa em pó num pequeno pedaço de papel de jornal. Fiquei tão
entusiasmado por ver um papel com alguma escrita em cima que perdi a noção e
até comecei a comer esse detergente. Depois atirei o resto para o chão só para
conseguir ler o pouco que lá estava escrito. Eram uma série de palavras sem
qualquer sentido, mas acabei por decorá-las todas. Quando virei o papel ao contrário, estava lá escrito
um poema que ainda tenho na minha mente.
[Ashkan usa inteligência artificial
para traduzir o poema de farsi para português: “Se desejas beijar o meu desejo, beija a minha face agora mesmo”]
Li isso no verso do papel, num anúncio de
alguém que tinha falecido, num obituário. E o guarda lembrou-se que nunca
deveria ter dado um pedaço de papel de jornal e abriu logo a porta. Só tive
tempo de escondê-lo debaixo de um tapete, enquanto ele gritava “dá-me, dá-me”.
Eu respondi-lhe “atirei isso para sanita”.
Ele obrigou-me a abri-la para ver, eu disse-lhe “abre tu” e ele acabou por sair. Durante dias tirei esse pedaço de
jornal e li esses anúncios dos velórios das pessoas, era a leitura que tinha.
▲ Um retrato
de Narges Mohammadi exposto em Oslo a propósito da atribuição do prémio Nobel;
o activista e marido de Narges Mohammadi", Taghi Rahmani
GETTY IMAGES
É uma necessidade extrema de estímulo mental? Não há nada na cela. A única coisa que existe é uma
lâmpada ligada durante 24 horas. E à noite, quando se pede para desligar esta
lâmpada, eles dizem “não, estamos com receio que te suicides, então a lâmpada
fica acesa”. Para aguentar dentro da solitária, é preciso caminhar tanto quanto
possível para sentir cansaço, e à noite poder dormir. Sempre contra a ideia de
deixar apenas passar o tempo, de deixar até chegar ao almoço ou ao jantar, de
não nos focarmos no tempo. Porque tiram todos os relógios.
Fica-se sem noção da realidade? Não há
noção de tempo. E se o tempo conseguir dominar, é um jogo perdido. A guerra lá
dentro é com as paredes: dois passos para um lado, dois passos para o outro. Não
conseguir sequer abrir completamente os braços. E há sempre alguém a
chegar à porta da cela para dizer “aqui é o fim do mundo, já acabou tudo”.
Agora imagine isso, quando vem um jovem activista para uma cela dessas, que
passa a vida agarrado a um telemóvel — como seria? Assim, as pessoas
conseguiram compreender o que Narges viu que estão a fazer aos prisioneiros
quando foi para a prisão, percebeu-se logo que isso é uma ferramenta de
tortura para os prisioneiros políticos. Este livro, na verdade, tem uma
segunda parte, que é um documentário iraniano de 50 minutos em que as pessoas
falam da sua experiência na solitária. O Canal 5 da televisão francesa já o
divulgou e tenho grande esperança que a comunicação portuguesa também o exiba.
Eu, na qualidade de pessoa que já passou
um total de um ano e meio de solitária, em períodos de seis meses, quatro
meses, três meses, dois meses, consigo compreender o que está aqui escrito — e
isto para as mulheres ainda é muito mais complexo.
Porque existe uma dimensão de violência machista, ligada ao
fundamentalismo islâmico? Por isso e
porque é ainda pior quando se trata de uma mãe, por exemplo. Qualquer
barulho que uma mãe ouça de crianças nas proximidades, pensa que é o seu
próprio filho. Os agentes responsáveis por sacar a confissão reprimem ainda
mais as mulheres, utilizam palavras num contexto sexual e punitivo. Há um
exemplo neste livro de uma senhora à qual um guarda apertava o braço e
obrigava-a a relatar as suas relações íntimas com o seu cônjuge. Isto é muito
doloroso, ainda mais no contexto da cultura iraniana, onde não temos o hábito
de namorar muito publicamente, de dar grandes beijos em público.
Ou
seja, demonstrações públicas de afecto e divulgação de pormenores íntimos da
vida. Não há esse hábito. A família é uma coisa muito reservada.
De todas as declarações públicas que vemos de Narges, parece que,
apesar da violência psicológica, mantém uma certa estabilidade, Cada declaração
parece ter uma linguagem precisa e sóbria, sem ceder a argumentos emocionais.
Portanto, consegue manter a mesma postura. O que tem a dizer sobre isto? Narges, desde
criança, foi testemunha das execuções dos seus primos. Quando chegou à
universidade, veio de Zanjan para Qazvin, uma cidade que fica a cerca de 150
quilómetros a norte de Teerão. Nessa altura, eu também estava na universidade e
fazia workshops na cave de uma livraria sobre história e cultura iraniana. Não
eram aulas oficiais, eram encontros, e durante os mesmos, eu partilhava as
minhas experiências de prisão desde 1982 até 1992. Ela tinha estudado
jornalismo e, no meio da comunicação social, tinha as suas próprias técnicas de
trabalho. Essas duas coisas ajudaram muito a escrever este livro. Aproveitou a
sua própria experiência e ainda a de outras pessoas, acabou por ver certas
coisas com os seus próprios olhos. Ela quis que as outras senhoras partilhassem
as suas histórias consigo para ela poder expô-las.
"Os países ocidentais vão negociando
com Khamenei e estão a borrifar-se para a democracia no Irão e os direitos
humanos. Preocupam-se mais com os seus próprios benefícios. Quando pedimos
ajuda da comunidade internacional ou dos países ocidentais, não queremos que
intervenham diretamente no nosso país, queremos que nos ofereçam as condições
para termos democracia e liberdade."
As iniciativas de Narges para acabar com
a pena de morte ou com o confinamento na solitária são vistas pelas autoridades
iranianas não como campanhas pelos direitos humanos, mas como formas
subversivas de atacar a segurança nacional… Eles dizem que as suas iniciativas são contra o regime
e vão contra os pilares fundamentais do islão: ir a Meca, rezar, ramadão, etc…
Khamenei ainda há pouco fez um discurso onde acabou por dizer que a nossa
justiça não necessita de se nivelar com os direitos humanos internacionais.
Isso quer dizer o quê? Que estamos de caras com as organizações de direitos
humanos.
Da primeira vez que Narges foi presa,
tal deveu-se ao movimento que ela iniciou, precisamente para boicotar as
execuções no Irão — e só por isso apanhou 10 anos de prisão. Eles dizem
que, na lei islâmica, a execução existe. Alguns dos religiosos dizem que se a
execução não tem quaisquer benefícios, não deve ser efectuada, tal como
[Hussein-Ali] Montazeri, um político religioso. Ele era suposto suceder a
Khomeini e ocupar o lugar que agora é de Khamenei enquanto supremo líder, era
um religioso mais democrático [explicar sucintamente o que aconteceu], mas foi
afastado. Pelo contrário, Khamenei diz que na lei islâmica existe o acto de
execução e que se alguém não ordenar esse acto, na verdade está a atentar
contra o Islão.
Nos
tempos em que fui interrogado, a pessoa que estava a conduzir o interrogatório
disse-me que, no Irão, a taxa de execuções é muito elevada. Por exemplo, quem
cometer um homicídio no Irão recebe a pena de morte, estilo olho por olho,
dente por dente. E como o nível de execuções é muito elevado, as autoridades
vão ter com a família das vítimas para, de certa forma, comprar o seu silêncio,
para que não se mate mais ninguém e se baixe os níveis de execuções. E eu
perguntava “mas porque é que não alteram a legislação?”. E eles respondiam “não
podemos, se o fizermos já não somos muçulmanos”.
Narges tem sido repetidamente sujeita a julgamentos arbitrários e
detida em condições ilegais, mesmo tendo em conta a lei da República Islâmica. Todo este trabalho para tentar silenciá-la não será
também um sinal de fraqueza do regime? Claro. Os regimes ditatoriais têm
muito medo de denúncias porque as denúncias espalham-se e minam os pilares do
seu poder. Preferem silenciar imediatamente os opositores antes de deixá-las
espalhar-se pela sociedade.
De uma perspectiva portuguesa, as notícias diminuíram após os
grandes protestos do movimento “Mulheres, Vida e Liberdade” causados pela morte
de Mahsa Amini. Qual é a situação actual no Irão?
O
governo conseguiu reprimir os protestos, mas começou a haver uma divisão dentro
do próprio regime. Ontem [21 de junho], um dos políticos do regime, o senhor
Mostafa Pourmohammadi, um ayatollah e um dos candidatos às presidenciais deste
mês, comentou que muitos dos nossos amigos e parceiros desejam que o tema do
véu seja tal e qual como era antes do caso de Mahsa Amini. Isso é
uma admissão de que a sociedade mudou desde então. Neste momento, o regime diz
“ok, se não queres pôr o véu por completo, não interessa, mas tens de colocar
pelo menos um lenço, tem de ocupar pelo menos uma parte da cabeça”. No
início, o véu era um dos
pilares islâmicos iranianos, e neste momento já não tem nada a ver com
islamismo e sim com controlo social. Neste momento, se houver um lenço colocado de forma
mais casual, a polícia da moral chega e diz “ok, puxa um bocadinho para cima”,
já não diz para pôr todo o véu. As jovens
mulheres hoje já não querem ir por esse caminho e dizem “não, eu não quero
aceitar isso”. A constituição iraniana está fundamentada
em pilares de desigualdade, apesar de eles dizerem que não, que temos os mesmos
direitos e as mesmas oportunidades para as mulheres.
A própria questão do véu, de colocá-lo nesta versão “faz de conta”,
é um simulacro de controlo? Como já não conseguem impor as regras que
queriam, estabelecem um padrão mínimo para fingir que ainda têm uma linha
vermelha? Hoje apanham as pessoas nas ruas através da polícia da
moral. As ruas e as avenidas são os sítios onde o povo vem protestar, dizer se
concorda ou não. A polícia da moral impede o ajuntamento das pessoas
na rua, como por cá nos tempos de Salazar. O tempo do recolher obrigatório
militar já terminou, já não trazem os tanques para as ruas, mas trazem as
forças de informação e de repressão. É o que estão a fazer precisamente com
essa polícia da moral, que tem oprimido muito o povo. Mas, a meu ver, a
resistência irá continuar. Em alguns pontos, o regime já recuou.
É
preciso assinalar que os movimentos não são sempre constantes, há alturas em
que estão mais fortes e outras em que perdem força. E
o regime iraniano reprime porque têm petróleo, há muita gente que em termos
financeiros está dependente do Irão, e isto torna as coisas ainda mais
difíceis, mas a resistência continua. Todos os regimes que nascem através de
uma revolução não são fáceis de pôr de lado, porque começaram como um movimento
do povo. A meu ver, os regimes que nascem de uma revolução têm três
etapas. A primeira é a parte da
revolução em si, quando esta acontece. Depois vem a época da burocracia, criar
os ministérios e as leis. E, por fim, se os revolucionários não se
transformarem em democratas, é a época do apodrecimento. O próprio povo
já não acredita nas acções e que está afastado daquilo que ajudou a criar. A bandeira
de Khomeini era matar e assustar. Já a
bandeira de Rafsanjani, um antigo presidente iraniano, foi a burocracia, a
criação do Estado em si. E agora Khamenei é o símbolo da repressão, de espalhar
medo e apodrecimento do regime. A meu ver, um regime nessas condições não tem
futuro.
▲Ali e Kiana
Rahmani, filhos de Taghi Rahmani (ao centro) e de Narges Mohammadi,
fotografados durante a cerimónia de entrega do prémio Nobel da Paz 2023
ANADOLU VIA GETTY IMAGES
Numa entrevista à BBC, disse que a
República Islâmica do Irão, como a conhecemos, “tinha os dias contados”. Isto
foi dito no ano passado. Pergunto-lhe: o que vai acontecer? Temos agora
eleições iranianas. Há seis candidatos [entretanto dois desistiram] e só um
deles é reformista, mas é um reformista muito conservador que diz ter como
linha vermelha inultrapassável a palavra de Khamenei. A meu ver, uma pessoa
nestas condições nunca poderia vir a ser um reformista. Acredito que a maioria
do povo não irá participar nas eleições, apesar de considerar que vá haver mais
participação do que nas eleições legislativas. No entanto, a participação nas
eleições não significa que o povo tenha escolhido determinado candidato. Há
pessoas que dizem “OK, vamos participar e vamos votar, não acreditamos no
regime e se as coisas piorarem, voltamos a manifestar-nos”. A isso eu
respondo que o melhor então é não participar, mas as pessoas têm medo de perder
o seu emprego.
E quanto ao projecto político iraniano? Actualmente, Khamenei está muito focado nas forças que
lutam por ele ou com o apoio dele, como o grupo Hezbollah no Líbano, como a
Rússia auxiliada pelo envio dos drones iranianos, como o Kata’ib Hizballah no
Iraque, como os Houthis no Iémen, como o próprio regime de Bashar al-Assad na
Síria e com militares xiitas onde conseguiu criar unidades no Afeganistão e no
Paquistão. Na verdade, o Irão é um pequeno estado imperialista, e
deste modo controla o governo iraquiano, dá ordens a Assad, pressiona o governo
do Líbano através do Hezbollah. envia as tais forças militares afegãs e
paquistanesas em prol desses movimentos e tem influência numa boa parte do
Curdistão na zona iraquiana — tanto que os EUA e outros países ocidentais
negoceiam com Khamenei quanto às posições dessas forças militares. Por exemplo, Biden, quando chegou ao poder,
deu permissão a Khamenei para que ele pudesse vender uma quota maior de petróleo
à China para, de certa forma, tentar baixar o preço altamente inflacionado do
petróleo. Em troca disso, Khamenei prometeu que o Hezbollah não iria expandir
as suas forças. Por outras palavras, o que acontece é que os países ocidentais
vão negociando com Khamenei e estão a borrifar-se para a democracia no Irão e
pelos direitos humanos iranianos.
Tem criticado a forma como o Ocidente intervém no Médio Oriente porque
diz que, na maior parte das vezes, deixam vácuos de poder que o Governo
iraniano aproveita. Por outro lado, também afirmou que as sanções económicas
impostas ao Irão afectam muito mais a população do que o governo. Ou seja, duas
formas de actuação que não resultam. O que deve a comunidade internacional
fazer?
Eu
digo o que vejo, os países ocidentais preocupam-se mais com os seus próprios
benefícios. A democracia não pertence aos governos, pertence ao povo — e quando
pedimos ajuda da comunidade internacional ou dos países ocidentais, não
queremos que intervenham directamente no nosso país, queremos que nos ofereçam
as condições para termos democracia e liberdade. Mas não vejo a comunidade
internacional a caminhar nesse sentido.
Ajuda em que sentido? Não queremos guerra. A guerra só vai piorar as coisas.
Queremos que a comunidade internacional nos apoie na luta pelos direitos
humanos, no acesso à banda larga de internet para fazer chegar a nossa voz ao
mundo, na promoção e apoio à cultura iraniana. Os iranianos não entendem quais são as
políticas dos povos ocidentais — num dia aplicam sanções, noutro negociam com o
regime. Isso confunde o povo. Os acontecimentos de cada país, é o povo desse
país que os define. A nossa vontade é que o povo possa definir com a sua
própria voz o seu caminho e os seus direitos.
"O prémio Nobel pôde levar a voz de
Narges para mais longe. Ela vai elevar a sua voz o mais alto possível pelos
direitos das mulheres da região, pela liberdade, pelos direitos humanos, pela
democracia, pela paz e desenvolvimento. Vou manter-me também nesse caminho e,
para isso, precisamos da vossa ajuda."
Mosaddegh. Na verdade,
no que toca à implementação de direitos humanos no Irão, os países ocidentais
nunca deram grandes apoios. Mesmo neste preciso momento, os países ocidentais,
por exemplo, não apoiam as palavras e decisões de António Guterres nas Nações
Unidas quanto à guerra em Gaza. Sou um grande admirador de Guterres, ele tem
grandes valores humanos.
E
quero também dizer isto: neste momento, a extrema-direita está em expansão na
Europa. Qual é o seu slogan? Não querer imigrantes na Europa. Mas porque é que os imigrantes vêm para cá?
Vêm em busca de emprego, vêm fugir da guerra e das secas. No entanto, o que é
que os países ocidentais fazem? Vendem armamento. Num único ano, a Arábia Saudita
comprou 54 mil milhões de dólares só em armamento. Porque é que o Ocidente não
reduz as vendas de armas? Quanto às alterações climáticas, quem é que destruiu
o meio ambiente? Os países desenvolvidos e avançados. Porque é que a comunidade
internacional — e os países europeus em particular — não faz pequenos
investimentos em países como o Afeganistão, o Paquistão, o Irão, países do
norte de África e de toda a região do Médio Oriente, para evitar que essas
pessoas imigrem para aqui?
Por fim, veja-se a guerra da Ucrânia. Putin é um violador dos direitos humanos, mas as
províncias que a Rússia ocupou era suposto a Ucrânia ter-lhes concedido
autonomia em 2014 e não o fez. Se o tivesse feito, tinha acabado com as
pretensões do Putin para a tal guerra. Políticas como esta acabam sempre em
nosso prejuízo. A guerra na Ucrânia vai contra os nossos interesses [da
oposição no Irão], tal como a guerra em Gaza.
Tem havido uma oposição crescente de vários quadrantes políticos à
forma como Israel está a conduzir a guerra contra o Hamas em Gaza. Acredita que
esta guerra está a ter algum efeito na reabilitação da posição de Teerão no
mundo? A estratégia do Irão não é a Palestina, é o Hezbollah.
Os palestinianos, pelo facto de serem sunitas, não têm grande proximidade com
os iranianos. Os maiores apoiantes do Hamas são o Qatar e a Turquia. Veja-se
como, há alguns anos, Netanyahu propôs ao rei do Qatar que apoiasse o
Hamas, para que este liderasse e governasse a Palestina. Netanyahu
não procura a paz. Quando
destrói Gaza desta forma, afecta todo o mundo árabe, e Khamenei tira louros
disso. Ele também mata da mesma forma o seu próprio povo, mas vem defender
Gaza, tal como grande parte do mundo está a fazer. Dessa forma, Khamenei está a
comprar uma cara lavada junto à comunidade internacional, o que também nos prejudica.
É como se colocasse como figura de proa do mundo muçulmano contra o
que se está a passar em Gaza? Todos os
países em redor de Israel são países árabes que também reprimem os seus
próprios povos. A maioria tem regimes ditatoriais, mas aparentam ser democratas
junto a Israel, apesar de nunca terem tido grande interesse na Palestina. Nunca foram movidos pela ideia de resolver e
ajudar: isso aconteceu com Bashar al-Assad, com o Iraque, com a Arábia Saudita,
com o Qatar, com o último presidente parlamentar da Líbia, Muammar Gaddafi, são
pessoas que se aparentam democratas junto a Israel.
O Prémio Nobel da Paz pode não conferir muito poder político, mas
pode levar a uma mudança de mentalidades e a um foco internacional nas causas
defendidas pelos premiados. Acredita que foi esse o caso com a vitória de
Narges em 2023? O prémio
Nobel pôde levar a voz de Narges para mais longe. Hoje em dia, consegue-se
ouvir a palavra de Narges, e se ela não tivesse esse prémio Nobel, a
maioria não saberia da sua existência. Ela vai elevar a sua voz o mais alto
possível pelos direitos das mulheres da região, pela liberdade, pelos direitos
humanos, pela democracia, pela paz e desenvolvimento. Vou manter-me também
nesse caminho e, para isso, precisamos da vossa ajuda.
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COMENTÁRIOS (de 14)
pertinaz > Luis
Silva: Disparates de
um ditadorzinho de pacotilha…
pertinaz: As ditaduras têm de ser exterminadas…
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