domingo, 7 de julho de 2024

Lençóis rotos


É o título com que, pela elegância humana e profundidade analítica da crónica de EVA DELGADO MARTINS, me lembrei de lhe dedicar o soneto simbolista de Camilo Pessanha que, entre sentimentos reais de ternuras e saudosismos passadistas podemos interpretar como expressivo dessa condição humana absurda, pesem embora os espaços de ternura e alegrias da sua vivência vária. Mas o “idadismo”, de que trata a excelente crónica de EVA DELGADO MARTINS, que é psicóloga e terapeuta, ao pretender demonstrar o preconceito sobre esse escorregar para o fim, da vida humana, lembrando mais uma vez as formas com que a humanidade se defende do peso dos velhos que afinal terão que transpor, mais ou menos sozinhos, a sua precariedade existencial, para mais transportando no íntimo a dor pelos seres que criou, que sabe votados a idêntico estado de solidão final, trouxe-me à ideia esse soneto de Camilo Pessanha, não só pela violência de sentimentos que nele traduz, causados pela morte da mãe, mas também pelo simbolismo aí contido do pesadelo da tragédia humana – pesem embora todas as demais tragédias que arrasam o mundo, e bem mais cedo ainda.

Mas o soneto de Camilo Pessanha é extraordinário de poder real e simbólico, como extremamente rigoroso e verdadeiro o texto de EVA MARTINS, e é com prazer que o transponho da Internet:

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?


Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...


Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

Idadismo - a discriminação e o preconceito sobre a idade

Portugal é o quarto país mais envelhecido do mundo, mas continua a haver um grande estigma em relação às pessoas mais velhas.

EVA DELGADO-MARTINS Psicóloga. Terapeuta Familiar

OBSERVADOR, 05 jul. 2024, 00:12

O idadismo é a discriminação e o preconceito sobre a idade. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2022), o idadismo é a terceira causa de preconceito (a seguir ao racismo e ao sexismo). O idadismo inclui estereótipos, preconceitos e discriminação direccionados às pessoas com base na sua idade, e pode ser institucional, interpessoal, interfamiliar, mas também contra si próprio. O idadismo é uma enorme barreira ao envelhecimento saudável. É necessário entender que o envelhecimento não é um destino inevitável, mas sim uma jornada que pode ser moldada por escolhas conscientes e atitudes positivas.

A nível global, uma em cada duas pessoas tem atitudes discriminatórias em relação aos mais velhos e, na Europa, uma em cada três diz ter sido vítima de discriminação com base na idade. Hoje, no mundo, metade das pessoas discriminam o outro pela idade. Segundo os últimos Censos de Portugal (2021) agravou-se o fenómeno de envelhecimento da população, com o aumento expressivo da população idosa e a diminuição da população jovem: em 2021 existem 182 idosos por cada 100 jovens.

O relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2022) revela que a pandemia “amplificou” as atitudes discriminatórias baseadas na idade, com os mais velhos a serem encarados como “uniformemente frágeis e vulneráveis”.

É fundamental combater idadismo, combater a discriminação dos familiares mais velhos, é essencial para contribuir para um reforço de uma sociedade inclusiva para todas as idades. O contacto intergeracional (entre gerações), incluindo a relação entre avós e netos, e a relação pais e filhos adultos, tem um papel fundamental no combate à discriminação e ao preconceito em relação aos familiares mais velhos.

Na relação entre avós e netos, a discriminação face à idade pode ser combatida com o aumento do contacto positivo entre ambas as gerações. Este tipo de relação envolve dimensões pessoais e intimistas que são muito importantes na mudança das atitudes idadistas.

Um caminho para a desconstrução do estereotipo idadista pode passar pela aproximação das gerações, através do fortalecimento das relações entre ambas. Os netos trazem conforto aos avós, numa relação próxima de afectos e emoção. Os netos são sempre uma renovação para os avós. Os avós estarem com os netos é uma oportunidade de lembrar e contar as histórias para perdurarem. Os avós precisam de lembrar e deixar esse legado para os netos para fazerem perdurar essa memória. Os avós contam histórias de acontecimentos vividos, memórias instigantes.

A intergeracionalidade pode basear-se num contacto entre diferentes gerações organizado com o intuito de realizar aprendizagens e concretizar objetivos comuns. Os netos que têm contacto assíduo com os avós durante a infância desenvolvem opiniões mais positivas e duradouras sobre o processo de envelhecimento, reduzindo a ansiedade e o preconceito em relação a esta etapa do desenvolvimento humano. Desta forma, os avós são vistos como figuras de relevância entre a família. A relação entre avós e netos pode ser estimulada pelos pais.

Neste sentido, uma das características mais importantes no relacionamento intergeracional é o caráter recíproco e complementar que esta convivência oferece para ambas as gerações. Há entre os avós e os netos um amor incondicional que se constrói no dia-a-dia. Os netos têm uma relação com avós mediada pelo afecto imediato, de ternura.

Todos podemos combater o preconceito da idade e abrir espaço para uma visão positiva. O futuro da família também é feito da transmissão de histórias de vida passada de avós para netos. Os avós servem de referência, de modelos para as vidas dos netos, que muitas vezes, tentam imitar.

O aumento de anos de vida pode corresponder a uma longevidade com qualidade, na qual o tempo dos avós com os netos é um ingrediente essencial para a vida dos avós.

O idadismo constitui um dos obstáculos à participação social de pessoas em idade mais avançada, porque por via deste estereotipo, muitas acreditam que já não têm idade para ir a determinados sítios ou para participar em determinadas actividades.

Portugal é o quarto país mais envelhecido do mundo, mas, apesar de sermos um dos países mais envelhecidos do mundo, continua a haver um grande estigma em relação às pessoas mais velhas.

Ainda há muito a fazer para a desconstrução de ideias e narrativas baseadas na idade.

Enquanto não se olhar para o outro, independentemente da sua idade, como sendo uma pessoa de pleno direito, existe a possibilidade de, no limite, se chegar à marginalização, ao isolamento, à discriminação, até da própria pessoa, que se afasta da sociedade porque entende que já não tem nada para dar.

A consciencialização, a educação, as políticas e a valorização da diversidade etária são os elementos-chave para combater o idadismo e aproveitar o potencial positivo do envelhecimento na nossa sociedade

A visão do idoso como um ser mais frágil e incapacitado, mesmo quando a evidência não o confirma, é comum tanto na sociedade como dentro da própria família. Tal comportamento é uma forma de idadismo e pode gerar sentimentos de discriminação, baixar a autoestima e impedir que as pessoas de mais idade façam a vida com independência e normalidade.

Acredito que é essencial e obrigatório que a sociedade desenvolva políticas e programas que atendam às necessidades de todos os cidadãos e promovam a longevidade e uma visão positiva e inclusiva das pessoas, independentemente da sua idade.

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