Acaba-se a história. Com a casa – e o
caso - ucranianos, arrumados a preceito…
Quanto a nós, restar-nos-á sempre uma crónica histórica de preceito, por JAIME
NOGUEIRA PINTO.
Tudo é possível na América?
Entre os Democratas, espera-se que
Biden recupere ou espera-se sobretudo que oiça as muitas vozes e nozes da
razão. Entre os Republicanos, a “revolução” e a restauração parecem estar já em
marcha.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 20
jul. 2024, 00:1820
O processo é tão velho como o mundo:
para se criar um clima de ódio em relação a um inimigo a eliminar é necessário
retirar-lhe a humanidade, despojá-lo de afectos, pintá-lo como infra-humano ou
supra-humano, como animal inferior ou demónio todo-poderoso, como alguém que
não é “nós”. Isto pode fazer-se em relação a um indivíduo ou a um colectivo –
os judeus, os cristãos, os muçulmanos, os asiáticos, os negros, os brancos; ou
a outras categorias, nacionais, tribais ou mesmo político-sociais, como os
comunistas, os fascistas, os revolucionários, os reaccionários, os burgueses.
Historicamente,
foi esse o espírito das guerras religiosas. Também por isso os séculos XVI e
XVII até ao fim da Guerra dos Trinta Anos foram tempos de grande selvajaria
entre cristãos: da matança de S.
Bartolomeu aos “feitos” dos suecos de Gustavo Adolfo na Baviera católica, a
crónica está aí e pode ler-se.
A Revolução Francesa, começada sob a invocação dos iluminados discípulos
de Rousseau e Voltaire contra a obscurantista monarquia teocrática,
transformou-se bem depressa, com Robespierre e o Terror, numa hecatombe para todos
os que não fossem suficientemente iluminados, revolucionários, “virtuosos”. E o Incorruptível
foi claro em relação ao lema que presidiria a toda a ideologia revolucionária
do Progresso, a causa da nova “guerra santa”, associando a Virtude ao
Terror, num pacto de ferro:
“La Vertu, sans laquelle la Terreur est
funeste; La Terreur, sans laquelle la Vertu est impuissante.”
Este
enunciado Virtude-Terror-Virtude (“A virtude, sem a qual o terror é fatal; e o
terror, sem o qual a virtude é impotente”) vai ser, com variantes, a
justificação de dois séculos de tiranias, violências, hecatombes e genocídios
em nome da virtuosa conquista do melhor dos mundos.
Mas o maniqueísmo secular, uma
mistura visceral de Moral e de Política que passou pela diabolização do inimigo
e pelo perigoso aforismo de os (bons) fins justificarem os (maus) meios , tocou
sobretudo a Esquerda mas não tocou só a Esquerda.
Em 1920 Lothrop Stoddard publicou The Rising Tide of Color Against White World
Supremacy, com o tenebroso assalto à civilização das desumanizadas “raças de
cor” na capa. Curiosamente, Scott
Fitzgerald, no Great
Gatsby, refere o livro e o autor, com nomes próximos dos originais, como leitura de cabeceira do vilão Tom
Buchanan: “Have you read The Rise of
the Colored Empires by this man Goddard?” (Por muito tempo pensei que
Fitzgerald se referia ao segundo volume de A Decadência do Ocidente de
Spengler, que já tinha sido traduzido com sucesso na América, mas estava
enganado).
O
hitlerismo aprimorou depois o conceito de desumanização do inimigo contra os
judeus, designados como Untermensch, sub-humanos; e em todos os genocídios e nalgumas
guerras a depreciação e descaracterização do alvo a abater sempre precedeu,
promoveu e facilitou a sua eliminação. A técnica e a táctica é excluí-lo da
comunidade dos humanos ou declará-lo inimigo da Humanidade. Foi também
assim que os bolcheviques exterminaram na Rússia os “contra-revolucionários”,
prendendo e eliminando os aristocratas e os burgueses, também por classes, por
categorias; ou que o conde von Trotta, governador do Sudoeste Africano, mandou
eliminar os Hereros revoltados. Para não falar de Leopoldo, o rei-empresário do
“Estado livre do Congo”.
Vem
tudo isto a propósito – e a despropósito – do atentado de que Donald Trump foi
alvo no Sábado, 13 de
Julho, em Butler, na Pensilvânia. O autor dos disparos, que
mataram uma pessoa e feriram duas gravemente, foi um americano de 20 anos,
morto a seguir por atiradores do Serviço Secreto norte-americano, adstritos à
segurança do candidato, na sua qualidade de ex-presidente. Thomas Matthew Crooks morava com a
família em Bethel Park, Pensilvânia, não muito longe do local do crime. Estava
registado como Republicano, mas tinha feito uma pequena doação à ActBlue, uma
associação esquerdista, no dia da inauguração de Biden, em 21 de Janeiro de
2021. O rapaz usou a espingarda do pai. Bob Ayers, um ex-CIA, especialista em
segurança, criticou o Secret Service pelo facto de ter permitido que um homem
armado se posicionasse num telhado a 150 metros do estrado de onde falava
Trump. Erik Prince, o patrão da antiga Blackwater, também fez uma análise
interessante das falhas do serviço.
De qualquer forma, a história americana
está cheia de magnicídios bem-sucedidos – Lincoln,
James A. Garfield, William McKinley e John F. Kennedy – e também
de magnicídios mal-sucedidos – de Andrew
Jackson a Harry Truman e a Ronald Reagan.
Razões e desrazões
O que teria levado um jovem
aparentemente tranquilo a semelhante gesto? Um pivot da nossa televisão sugeria
que, tendo o jovem sido vítima de bullying,
perante a perspectiva de “ver um bully chegar à presidência”, agira em
conformidade. E porque as
teorias da conspiração, o bullying, a incitação à violência, a truculência e os
requintes de malvadez são, evidentemente, um exclusivo da Direita, outros
levantavam a teoria da “encenação”, uma
encenação que contribuiria para a posterior “humanização de Trump”, se é que
tal poderia conceber-se. Houve até quem dissesse que Trump se tinha magoado
ao cair… e, claro, que o gesto de Crooks era uma consequência directa do acesso
livre às armas e do discurso violento do ex-presidente, o verdadeiro
responsável pelo disparo que o atingiu.
Ao contrário, Nigel Farage, líder do Reform Party inglês,
responsabilizava a narrativa maniqueísta do lado contrário, defendendo que a
diabolização da personalidade e das ideias de Trump por parte dos “liberals”
podia estar na base da “justificação moral” do assassino; ou pelo menos da
defesa do “bem e da virtude” que o teria encorajado a tentar o magnicídio. E citava a
propósito a frase de Biden: “Trump
must be put in a bullseye”.
(Bullseye é o nome que se dá aos alvos das barracas de tiros das feiras
populares e aos marcadores dos treinos das forças de elite militares ou
policiais). Na mesma linha, o líder do Partido da Liberdade
holandês, Geert Wilders, observava que “o discurso de ódio da generalidade
dos mediae de muitos políticos de esquerda, que chamam aos políticos da direita
racistas e nazis” não podia “deixar de ter consequências”.
“Discurso de ódio da esquerda”?! Mas como, se era sobre Trump – verdadeira
“ameaça à democracia, à justiça, ao império da lei e à verdadeira alma do país”
(como chegara a dizer Biden em 2022) – que recaía a culpa moral de todo o
solitário armado que disparava sobre aglomerados nos Estados Unidos, de toda a
violência e de todo espírito de guerra civil em terras da América? A
incrédula interrogação pairava sobre as espantadas e espantosas reacções
jornalísticas e comentatoriais que se sucederam ao atentado, ou ao difuso
“ataque” ou aos vagos “disparos”, como alguns começaram por lhe chamar. Acaso podia a Esquerda ser associada a bullying,
a discurso de ódio, a violência, a um atentado?
A
pouco e pouco, embora persistissem o obrigatório discurso contra Trump e os
seus deploráveis e as mais delirantes teorias da conspiração entre os que
sistematicamente acusavam os “alienados” do outro lado de delírio conspirativo,
veio o reconhecimento mais realista de que houvera, de facto, um atentado
contra Trump… atentado esse que podia beneficiar ou até “humanizar” o
excêntrico candidato.
Uma “revolução” republicana?
Entretanto, nesse carnavalesco “outro planeta” que é, muitas vezes,
para nós, europeus, a América em campanha – tanto a republicana, como a
democrata –, enquanto na Convenção Republicana assistíamos a uma
consagração da unidade, no campo democrático continuava a reinar a divisão quanto ao próprio candidato.
Houve depois quem dissesse que, no seu
discurso de hora e meia em Milwaukee, “o novo Trump”, o Trump renascido das balas rasantes, não durara dez
minutos… mas o facto é que assistíamos também ao aparentemente mais duradouro
renascimento de um novo partido republicano; um
partido entre cujos notáveis se contavam agora muitas mulheres, muitos negros,
muitos sindicalistas, e claro, muito white trash.
Foi talvez para oficializar esse
renascimento e a continuidade geracional do trumpismo que o ex-presidente foi
buscar J. D. Vance para seu vice na corrida de Novembro.
Vance, um branco do Kentucky apalachiano, de família disfuncional, white
trashe cronista do white trash no livro Hillbilly Elegy – A Memoir of a Family
and Culture in Crisis, foi, como grande parte dos meus amigos republicanos
conservadores, um crítico virulento do ex-presidente – do empresário do
Realstate e do liberal-chic de Nova Iorque, do bon-vivant, do amigo dos
Clinton, de alguém que irrompia no Partido a atacar Marco Rubio e Ted Cruz, figuras
republicanas de sempre. Porém, quando Trump ficou face a face com a Hillary dos
“deplorables” e quando, na Presidência, cumpriu o programa de defesa da vida,
escolheu juízes conservadores para o Supremo Tribunal, não começou nenhuma
guerra e a economia progrediu, muitos
desses never-Trump começaram a mudar de opinião.
Ao contrário de Donald Trump, Vance é um exemplo acabado do “from rags
to riches”, do sonho americano realizado, de alguém que lutou e venceu as suas
desfavoráveis condições de partida.
Foi Marine, triunfou em Yale e fez uma boa carreira profissional, sem nunca
renegar a sua “tribo”. Como a esmagadora maioria dos antigos adversários de
Trump, Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019, foi reconhecendo no
excêntrico milionário um defensor das causas conservadoras e está agora com
ele. O candidato a
vice de Trump é um nacionalista conservador que traz para o “novo
Partido Republicano” os princípios de uma
revolução cultural e ideológica: o respeito pela soberania nacional, a
necessidade de reindustrialização, os princípios do catolicismo social.
Estamos muito longe do liberalismo e
do libertarismo individualista dos economistas de Chicago ou de Viena e mais
perto do solidarismo de alguns anglo-saxões convertidos ao renegado papismo.
Entre os Democratas, espera-se que Biden recupere ou espera-se
sobretudo que oiça as muitas vozes e nozes da razão. Entre os Republicanos, a revolução e a restauração parecem estar já
em marcha no partido e na América. E com consequências para o resto do mundo,
caso Trump vença em Novembro.
Por enquanto tudo leva a crer que
sim, mas nunca se sabe. Na América tudo é possível.
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA ELEIÇÕES EUA ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS
(de 20):
Pobre Portugal: Mas caramba,
já não estamos em 1789, nem em 1938. Ver, em 2024, a esquerda a usar os mesmos
arcaicos e bárbaros “argumentos” para derrotar os seus adversários políticos,
faz-me corar de vergonha alheia. Joaquim Almeida > Maria
Nunes: Ditosa a
discípula que tal mestre teve.
Maria Nunes: Brilhante
artigo. Obrigada. JNP faz-me lembrar um excepcional professor de História, Dr.
Ardisson P., que em cada aula sobre um determinado tema, conseguia falar das
mais variadas épocas da História.
Fernando CE: Uma lição.
Gostei. Maria
Emília Santos Santos: Não creio que
os americanos estejam tão desesperados que votem no dementíssimo Biden! Agora ainda vai correr muita tinta, até Novembro e
esperemos que não corra mais sangue, mas não creio! Isabel Amorim: Como sempre muito bom! João Ramos: Muito boa informação sobre o sistema “nervoso”
americano e portanto como diz JNP, a ver vamos…
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