Dos
dias que foram e dos dias que correm. Contados com o primor e o relevo didáctico
de sempre. Por JAIME NOGUEIRA PINTO.
Os
dias que correm
Cento e dez anos de Sarajevo, o
debate Biden-Trump, uma conferência em Madrid, a primeira volta das eleições em
França, a vitória dos Trabalhistas, tudo na semana passada.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 06 jul. 2024, 00:18
28 de Junho
Passaram 110 anos do assassinato em Sarajevo do arquiduque Francisco
Fernando da Áustria, indigitado
herdeiro do trono, e da mulher, Sofia Chotek, uma duquesa morganática,
marginalizada pela Corte de Viena.
Sarajevo levou à Grande Guerra, a muitos milhões de mortos e a tudo
o que daí derivou. Foi o fim do “mundo de ontem”, evocado por Stephan Zweig, e
o princípio do mundo em que ainda vivemos.
Os assassinos dos Arquiduques eram uns jovens fanáticos, talvez manipulados
pela Cena Ruka, a Mão Negra, uma sociedade secreta terrorista criada em 1901
por militares sérvios. Não
seria a primeira vez que a Mão Negra,
fundada pelo capitão Dragutin Dinitrijevic, se dedicava ao magnicídio: na
noite de 10 para 11 de Junho de 1903, Dragutin e outros oficiais sérvios tinham
assassinado no Palácio Real de Belgrado o rei Alexandre I Obrenovic, a rainha
Draga e o primeiro-ministro e o ministro do Exército. Os
Obremovic eram uma dinastia próxima dos Habsburgo de Viena. Foram
substituídos pelos seus rivais, os Karadordevic, próximos dos russos. Algo
parecido com o que aconteceu na Ucrânia em 2013-2014, com os amigos dos russos
substituídos por amigos dos americanos.
29 de Junho
O nosso dia, na Europa,
começou às 2 da madrugada com o debate Biden-Trump. Nos jornais e
noticiários americanos de sexta-feira, os comentários não deixariam de ser
surpreendentes.
Joe Scarborough, o pivot de Morning Joe,
um programa matinal da MSNBC (Microsoft NBC), que começara por declarar “I love Joe Biden” e
por se desfazer em elogios ao Presidente e ao seu mandato, terminava num apelo
aos democráticos: era a última oportunidade de decidirem se aquele homem, “que
conhecemos e amámos por muito tempo”, estava de facto “preparado para a tarefa
de concorrer para Presidente dos Estados Unidos”. Depois, Thomas L. Friedman, analista
internacional e colunista do New York Times, confessava
por escrito que tinha chorado a ver o debate. A estas, seguiram-se “as lágrimas” de uma série de cronistas e
comentadores.
Mas talvez o mais impressionante foi o
inusitado texto conjunto do Conselho Editorial do New York Times. Já nem aquele colectivo progressista,
fina-flor da “liberal mind”, que nos últimos oito anos tinha vindo a massacrar
os leitores, entre os quais me conto, com as malvadezas e perigos de Trump e as
bondades e glórias de Biden, conseguia dourar convenientemente a pílula: a um
tímido e caridoso “the President appeared on Thursday night like the shadow of
a great public servant”, seguia-se o apelo à razão: talvez o Presidente já não
estivesse na melhor forma para se recandidatar ou para responder às
“provocações e mentiras” do Malvado de Mar-a-Lago, cuja “tirania e planos
terríficos” tinham de ser vigorosamente combatidos (“That
is no longer a sufficient rationale for why Mr Biden should be the Democratic
nominee this year”).
30 de Junho
Ao fim da tarde de Domingo cheguei a
Espanha, ao Real Monasterio de San Lorenzo de El Escorial, para uma
conferência. A monumentalidade espanhola, melhor, filipina, do filho de Carlos V, que mandou fazer em pouco
mais de vinte anos aquele convento-palácio faraónico impressiona sempre.
Tudo aquilo impressiona – a basílica, o palácio real, a biblioteca, as
colecções de arte, o mosteiro. E
foi tudo construído entre 1563
e 1584, quando já não havia escravos e ainda não havia
máquinas. Os monges e sacerdotes começaram por ser jerónimos e agora são agostinhos.
Na Conferência comparavam-se
impérios e imperialismos europeus. Os espanhóis falavam da “Lenda Negra” que lhes tinham colado os protestantes holandeses e ingleses. Na
discussão que se seguiu, lembrei que talvez a nossa singularidade – portuguesa
e aqui também espanhola – de “impérios pré-industriais” (para usar a expressar
de Hobsbawm) estivesse na exportação do Estado. Fizemo-lo
para a Índia no século XVI e os espanhóis também o fizeram, com as plazas
mayores nas principais cidades da Hispano-América, onde juntavam os símbolos do
poder – o Governo militar, o Governo civil, o Tribunal e a
Catedral. A
exportação do Estado e do poder político e também a missionação, a “exportação”
dos valores cristãos. Os holandeses e os ingleses actuavam por companhias
majestáticas, com a exploração de recursos, o uso da força ao
serviço de interesses económicos, praticando o chamado “imperialismo”
propriamente dito, no conceito de Hobson e Lenine. A França foi um misto.
1 de Julho
Eleições em França: 10.628.507 fascistas, ultra-direitistas e extremistas
em França, quem diria…? Mas o facto é que um em cada três eleitores
franceses votou nos candidatos do Rassemblement
National. E isto
apesar dos inúmeros avisos sobre os malefícios do RN, da dupla Le Pen/Bardella,
acompanhados pelas manifestações de rua de uma esquerda que nunca é “extrema”,
mas que, perante o violento e radical perigo metafórico da ultra-direita, se vê
forçada a recorrer a alguma violência real – de resto perfeitamente
compreensível, ou melhor, perfeitamente compreendida e absolvida pelos
noticiaristas.
Agora, Emannuel Macron, o iluminado
que lançou a bomba – como lhe lembram, com a raiva disfarçada dos snobs, alguns
dos seus correligionários – vai, sem vergonha nenhuma, apelar à “frente
antifascista”. Se Mélenchon
cozinhou com os socialistas e os comunistas a “Nova Frente Popular”, Macron
apela aos sobreviventes do Centrão para que, passando por cima de tudo o que
Mélenchon, os seus Insubmissos e a Nova Frente Popular significam, votem neles
para barrar o caminho aos “fascistas do RN”.
E se já George Orwell, em
1944, escrevia no Tribune em “What is Fascism” que “fascista” deixara de ter
significado substantivo para passar a ser um insulto indiscriminado, em 2024, na pátria do racionalismo, de
Décartes e dos Iluminados, o medo da “Extrema-Direita” e a obsessão
de fazer frente ao “perigo fascista” levaria a uma troca de galhardetes que,
como escrevia Vincent de Viliers no editorial do Le Fígaro, tocava as raízes do
absurdo.
Assim, o Presidente Macron passaria a aconselhar o voto no mesmo François
Ruffin que dele dissera “on a un taré à la tête de l’État” e na mesma Nova
Frente Popular que, antes de 30 de Junho, era
para o chefe de Estado e os seus apoiantes “uma extrema-esquerda culpada de
anti-semitismo, de comunitarismo e de anti-parlamentarismo”. Villiers
chamou-lhe a “Coligação de
Tartufo”.
Mesmo sabendo que os mecanismos da
Constituição gaullista de 1958 levam, na segunda volta, a votar para eliminar,
até que ponto é que os eleitores da Esquerda e da Esquerda Radical vão votar
nos macronistas, até há uma semana “defensores da burguesia liberal
exploradora, das leis capitalistas sobre propriedade, trabalho, reformas”? E
até que ponto vão os macronistas, os moderados, votar nos candidatos da
Esquerda Radical, muitos deles anti-semitas e iliberais, para parar um hipotético “perigo fascista”?
Segundo
o Le Monde, bem ou mal, as
desistências mútuas do Centrão para a Esquerda e da Esquerda para o Centrão são
224; assim, em cerca dos 500 lugares em disputa, ficam de pé 400 duelos – União
Nacional versus Nova Frente Popular ou
União
Nacional versus Ensemble – e cerca de uma centena de concorrências
triangulares.
Mas nem
todos os centristas se identificam com a chamada “Coligação de Tartufo” de
Macron e do seu primeiro-ministro Gabriel Attal. O ministro
da Economia, Bruno Le Maire, afirmou numa entrevista ao Figaro que uma coligação
não devia servir para barrar, mas para abrir caminho, apelando que à recusa,
pelo voto, quer do Rassemblement National, quer do projecto Insubmisso, um
projecto “comunitarista” e “insidiosamente anti-semita”. No mesmo
sentido, o antigo primeiro-ministro de
Macron, Édouard Philippe, veio afirmar a sua rejeição equidistante tanto de Le
Pen como de Mélanchon.
As declarações de rejeição da União Nacional e da França Insubmissa dos
dois macronistas marcam uma ruptura com o Presidente e a inexistência de
disciplina de voto dentro do Centrão.
E porque ninguém é dono dos votos,
falta saber o que é que os eleitores macronistas e esquerdistas vão fazer: vão
renegar as convicções e escolher o mal menor? Vão ficar em casa?
Vamos
saber no Domingo como sopram os ventos da História.
4 de Julho
No Reino Unido concretizou-se a mais que esperada vitória dos
Trabalhistas de Keir Starmer. Como sempre nas vagas poderosas, os vencidos fizeram mais
pela derrota do que os vencedores pela vitória; mas Neil Farage, com o seu
Reform Party, terá contribuido para a derrota dos Conservadores, tirando
milhões de votos aos Tories. Porém – singularidades do sistema eleitoral
britânico – Farage foi dos poucos eleitos.
O vencedor, Starmer, um realista que afastou o esquerdista Corbyn da
liderança do Partido Trabalhista, disse antes das eleições que estava à vontade
com uma eventual vitória de Trump:
“Não somos nós que escolhemos os líderes mundiais, isso cabe às democracias. E
num mundo de gente crescida temos de fazer com que a relação funcione. Tem de
funcionar.”
Sábias palavras. Raras, nos dias que correm…
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA FRANÇA EUROPA MUNDO JOE BIDEN ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA ESPANHA REINO UNIDO I GUERRA MUNDIAL
COMENTÁRIOS
Cisca Impllit: Em
demasia longo, um tempo em ponto de rebuçado perto de apertar e amargar. Cheios
de manhãs vazias e noites mais ainda.
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