O título de um romance de JÚLIA NÉRY, de acção circunscrita aos novos
tempos, que escorregaram de uma época naturalmente mais convencional, e cujo
narrado é espelho de vidas, de uma panorâmica que igualmente atravessámos, quer
por percepção vivencial, quer por jeitos de reflexão sobre tantas das mudanças que
nos trouxe a transformação do regime, de libertação, sobretudo, de normas precedentes
que, – pelo menos aparentemente - se inscreviam numa imposição de práticas educativas
de maior racionalidade, e cujo desprezo posterior, com a transformação
política, em nós provocou espantos e animosidades - os quais, contudo, não
encontramos na obra serena de JÚLIA NÉRY, despida de intenções críticas, num
pensamento de seriedade e justeza, puramente direccionado para a efabulação
sobre vidas impregnadas de sentimentos naturais, ainda que eventualmente
libertos da convencionalidade do acto educativo, quer familiar quer escolar, e
em que a assumpção da sua gravidez por uma figurante da obra, de dezasseis
anos, denuncia, contudo, essa nova – conquanto vivida não sem dor e receio - liberdade
de preconceito nos novos tempos, que se pretende magnificar.
Uma obra que expõe sobre vidas e sobre sentimentos, na liberdade e
elegância estruturais e na veracidade de uma efabulação dirigida por um
pensamento carinhoso, apoiado na nova realidade e brilhante no seu discurso
firme, sem desvios lexicais ou semânticos pedantes, mas de extremo rigor
racional.
Uma história contada a três vozes narrativas – a da professora, a da
mãe de Valéria – Marinela - a de Valéria – e onde se entrelaçam outras figuras
que se assumem nas suas ambições ou sentimentos, afinal idênticos aos de todos
os tempos, embora sem os preconceitos anteriores, no receio de retaliação.
Transcrevo um pequeno excerto do “DIÁRIO
de Valéria”, comprovativo dessa elegância discursiva, que só me parece
falhar no facto de tal elegância expressiva não se diferenciar entre as três narradoras,
mau grado as diferenças etárias e de posicionamento cultural, mas é um pormenor
que se ultrapassa bem, se nos debruçarmos apenas sobre a trama de uma história
bem contada, sem imposição de qualquer corrente realista diferenciadora. A haver
intenção valorizante, esta centra-se, naturalmente, no papel conciliador da professora,
narradora principal, apoiada ora nas falas ora nos diários das personagens Marinela e Valéria, respectivamente mãe e filha, na história contada.
“Página DEZASSEIS”
«Veio. Muito trapalhona com o
saia-casaco por cima do pijama, os aros grossos a escorregar no nariz pequeno.
Nunca tinha visto a professora assim mastronça, sem as lentes, despenteada, a
cara inchada de sono.
«O brande e o charro que eu tinha
fumado com vagares, deprimiam-me. Talvez por isso lhe tivesse telefonado. Senti
vontade de me abraçar com ela e chorar, mas nem todos os charros do mundo
conseguem amolecer-me o orgulho. Ela arranhava o meu silêncio com tossidelas a
estimular a confissão. Esperaria que eu tivesse um escândalo para contar, mas
de mim para ela, dela para mim, como sempre, palavras em respeito com os silêncios
necessários; com ela os medos do mundo fogem de mim, por isso talvez a
serenidade que me transmite. Levou-me para casa. Arranjou-me cama, leite, o
calor urgente que irradiava da sua alegria de me proteger.
«Se me tivesse feito perguntas,
eu não voltaria mais. Mas não. Sempre ela compreendera que eu não queria nem
regras de conduta, nem lições de moral; apenas o sabê-la âncora disponível para
eu me agarrar ao mundo quando se me preparam os naufrágios.
Procurei o ombro dela para
amparar os gritos com que exorcizava a morte da avó Raimunda. Abracei-me ao seu
silêncio para chorar nele, sem constrangimentos, o meu fim da meninice que se
ia, amortalhada na minha contadora de histórias de fadas e vitórias do bem
sobre o mal. Precisava de saber que havia outro colo gordo, quente, onde
poderia sempre aninhar os meus desgostos.»
“Aos dezasseis anos Valéria aprendera,
no seu primeiro contacto com a morte, que o valor da vida fica hiperbolizado
pela perda incontrolável dos que se amam, cuja ausência deixa um vazio à nossa
volta para onde um sofrimento excessivo nos empurra e de que só as lágrimas nos
libertam. Assim sentia Valéria a morte da avó de quem falou, falou até que,
pela ponte suspensa das palavras a trouxe até nós, adormecendo depois
tranquilizada por aquela presença.”
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