quinta-feira, 4 de julho de 2024

«Valéria, Valéria»


O título de um romance de JÚLIA NÉRY, de acção circunscrita aos novos tempos, que escorregaram de uma época naturalmente mais convencional, e cujo narrado é espelho de vidas, de uma panorâmica que igualmente atravessámos, quer por percepção vivencial, quer por jeitos de reflexão sobre tantas das mudanças que nos trouxe a transformação do regime, de libertação, sobretudo, de normas precedentes que, – pelo menos aparentemente - se inscreviam numa imposição de práticas educativas de maior racionalidade, e cujo desprezo posterior, com a transformação política, em nós provocou espantos e animosidades - os quais, contudo, não encontramos na obra serena de JÚLIA NÉRY, despida de intenções críticas, num pensamento de seriedade e justeza, puramente direccionado para a efabulação sobre vidas impregnadas de sentimentos naturais, ainda que eventualmente libertos da convencionalidade do acto educativo, quer familiar quer escolar, e em que a assumpção da sua gravidez por uma figurante da obra, de dezasseis anos, denuncia, contudo, essa nova – conquanto vivida não sem dor e receio - liberdade de preconceito nos novos tempos, que se pretende magnificar.

Uma obra que expõe sobre vidas e sobre sentimentos, na liberdade e elegância estruturais e na veracidade de uma efabulação dirigida por um pensamento carinhoso, apoiado na nova realidade e brilhante no seu discurso firme, sem desvios lexicais ou semânticos pedantes, mas de extremo rigor racional.

Uma história contada a três vozes narrativas – a da professora, a da mãe de Valéria – Marinela - a de Valéria – e onde se entrelaçam outras figuras que se assumem nas suas ambições ou sentimentos, afinal idênticos aos de todos os tempos, embora sem os preconceitos anteriores, no receio de retaliação.

Transcrevo um pequeno excerto do “DIÁRIO de Valéria”, comprovativo dessa elegância discursiva, que só me parece falhar no facto de tal elegância expressiva não se diferenciar entre as três narradoras, mau grado as diferenças etárias e de posicionamento cultural, mas é um pormenor que se ultrapassa bem, se nos debruçarmos apenas sobre a trama de uma história bem contada, sem imposição de qualquer corrente realista diferenciadora. A haver intenção valorizante, esta centra-se, naturalmente, no papel conciliador da professora, narradora principal, apoiada ora nas falas ora nos diários das personagens Marinela e Valéria, respectivamente mãe e filha, na história contada.

“Página DEZASSEIS”

«Veio. Muito trapalhona com o saia-casaco por cima do pijama, os aros grossos a escorregar no nariz pequeno. Nunca tinha visto a professora assim mastronça, sem as lentes, despenteada, a cara inchada de sono.

«O brande e o charro que eu tinha fumado com vagares, deprimiam-me. Talvez por isso lhe tivesse telefonado. Senti vontade de me abraçar com ela e chorar, mas nem todos os charros do mundo conseguem amolecer-me o orgulho. Ela arranhava o meu silêncio com tossidelas a estimular a confissão. Esperaria que eu tivesse um escândalo para contar, mas de mim para ela, dela para mim, como sempre, palavras em respeito com os silêncios necessários; com ela os medos do mundo fogem de mim, por isso talvez a serenidade que me transmite. Levou-me para casa. Arranjou-me cama, leite, o calor urgente que irradiava da sua alegria de me proteger.

«Se me tivesse feito perguntas, eu não voltaria mais. Mas não. Sempre ela compreendera que eu não queria nem regras de conduta, nem lições de moral; apenas o sabê-la âncora disponível para eu me agarrar ao mundo quando se me preparam os naufrágios.

Procurei o ombro dela para amparar os gritos com que exorcizava a morte da avó Raimunda. Abracei-me ao seu silêncio para chorar nele, sem constrangimentos, o meu fim da meninice que se ia, amortalhada na minha contadora de histórias de fadas e vitórias do bem sobre o mal. Precisava de saber que havia outro colo gordo, quente, onde poderia sempre aninhar os meus desgostos.»

“Aos dezasseis anos Valéria aprendera, no seu primeiro contacto com a morte, que o valor da vida fica hiperbolizado pela perda incontrolável dos que se amam, cuja ausência deixa um vazio à nossa volta para onde um sofrimento excessivo nos empurra e de que só as lágrimas nos libertam. Assim sentia Valéria a morte da avó de quem falou, falou até que, pela ponte suspensa das palavras a trouxe até nós, adormecendo depois tranquilizada por aquela presença.”

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