quarta-feira, 10 de julho de 2024

Um exterior discreto

 

E afável, a condizer com o retrato bem positivo de uma Mulher lutadora e honesta. Uma biografia para ser relida, pelas recordações que traz, num país que vai reconhecendo como pode.

Joana Marques Vidal. A Procuradora anti-justiceira, que investigou Sócrates e Salgado e criou o "irritante" com Angola

Nasceu numa família de juristas e desde cedo quis ir para Direito. Especializou-se na área de família e menores, mas ficou conhecida pelo luta contra a corrupção como procuradora-geral da República.

LUÍS ROSA: Texto

OBSERVADOR, 09 jul. 2024, 23:046

Índice

A família do Direito e da Educação Física

A entrada em Direito num tempo com seguranças na Faculdade

A carreira dedicada à área de família e menores

A chegada à Procuradoria-Geral da República

A nova estratégia para o DCIAP

A criação do facto político do mandato único

Definida por muitos como uma mulher corajosa, Joana Marques Vidal não recusava que tal característica era relevante e aceitava que essa atitude tinha peso em quem queria ser magistrado. “Mas a coragem, por si só, não basta”, explicou na entrevista que marcou a sua despedida da Procuradoria-Geral da República. A primeira mulher a liderar o Ministério Público abriu um novo capítulo da história da Procuradoria-Geral da República sobretudo pelos resultados que apresentou ao longo do seu mandato único de seis anos.

Para tais resultados não bastou apenas a tal coragem, como a própria Joana Marques Vidal explicou nessa entrevista ao Expresso (uma das duas que deu ao longo do mandato — a outra foi ao Observador). Foi preciso também“conhecimento, rigor e definir as prioridades naquilo em que investimos”, disse. E isso incluía o acompanhamento próximo e escrupuloso que dedicava aos processos que sabia que iriam marcar a imagem do Ministério Público perante a opinião pública, ainda que respeitando sempre a autonomia dos magistrados.

Joana Marques Vidal morreu esta terça-feira, dia 9, aos 68 anos. E não foi apenas a procuradora-geral da República que recusou sempre o título de justiceira que lhe tentaram colar e que abriu processos contra os poderosos, de Sócrates a Ricardo Salgado.

A família do Direito e da Educação Física

Nascida em Coimbra no último dia do ano de 1955, Joana Marques Vidal era a filha mais velha do conselheiro José Marques Vidal e da sua primeira mulher, Maria Joana Morais Ribeiro Raposo. Apesar do sangue aristocrata pelo lado da mãe (neta do Barão de Châtillon e sobrinha-neta do 1.º Conde de Sarzedas”), a família Marques Vídal não mostrava os sinais que se costumam apontar à nobreza.

Como conta o seu irmão, João Marques Vidal, também ele procurador-geral adjunto (que tentou investigar José Sócrates mas na altura não terá ido mais longe devido ao então procurador-geral Fernando Pinto Monteiro), a família fomentava muito o debate e a curiosidade intelectual. Joana e os seus irmãos são filhos e netos de juízes e sempre viveram rodeados de histórias de Direito.

A começar pelo pai, o conselheiro José Marques Vidal, que desempenhou, entre outros cargos, o de vice-procurador-geral da República e de director-geral da Polícia Judiciária, entre 1985 e 1991. Por oposição ao seu pai, um homem extrovertido e que continua a ‘encher uma sala’, Joana Marques Vidal sempre foi mais discreta. Herdou o sentido de humor paterno e a vivacidade com que enfrentava os dias e encarava a profissão de magistrada, mas sempre num tom mais recatado.

Conta João Marques Vidal, com o sentido de humor que também o caracteriza, que apesar de haver uma facção acentuada de licenciados em Direito na família — não havia propriamente um “ambiente jurídico lá em casa”. Tanto assim é que o sector dos licenciados em Educação Física, liderado pela mãe Maria Joana, era quem sabia mais de Direito.

A entrada em Direito num tempo com seguranças na Faculdade

E Joana Marques Vidal foi das que quis seguir uma carreira em Direito. Depois dos estudos primários e secundários entre Coimbra e Lisboa, entrou na Faculdade de Direito de Lisboa em 1973, numa altura em que os jovens universitários já estavam muito politizados após as crises académicas de 1962 (em Lisboa) e de 1969 (em Coimbra).

Os grupos marxistas-leninistas imperavam na Faculdade de Direito de Lisboa e a sua luta contra o regime tornava-se cada vez mais intensa. A faculdade foi tomada pelos que ficaram conhecidos como ‘gorilas’, seguranças privados contratados pela Universidade de Lisboa. João Marques Vidal, com 16 anos, viu-se assim na obrigação de acompanhar a irmã Joana à Faculdade nos primeiros tempos.

Joana Marques Vidal em 2021 durante a sua entrevista ao Observador no último dia como magistrada do Ministério Público FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Joana Marques Vidal não entrou em movimentos políticos, mas como a maioria da sua geração, que viveu a juventude durante o Estado Novo, a memória da ditadura e do autoritarismo — e as desigualdades sociais de então — marcaram-na.

Assumia-se como uma mulher de esquerda sem quaisquer rodeios, falou disso várias vezes em público (como aqui), mas viu uma parte do Partido Socialista e da esquerda criticarem-na. Críticas muito motivadas por ter sido nomeada pelo então Presidente Aníbal Cavaco Silva (que nutria por ela admiração), por indicação da ministra Paula Teixeira da Cruz e, principalmente, pelo processo que levou à detenção de José Sócrates — mas tais críticas incomodavam-na, contam os mais próximos.

A carreira dedicada à área de família e menores

Apesar do seu mandato marcante enquanto procuradora-geral da República, a investigação criminal não era a área de eleição de Joana Marques Vidal. Trabalhou vários anos na área penal, nomeadamente no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, mas ficou conhecida (até chegar à Procuradoria-Geral da República) como especialista na área de família, que foi a sua predilecta.

Após concluir os estudos em 1978 na Faculdade de Direito de Lisboa, estagiou nas comarcas de Coimbra, Lousã e Arganil. Já como procuradora adjunta e procuradora da República continuou a acumulação de experiência em várias jurisdições, nas comarcas de Vila Viçosa e Seixal, até que chegou a Cascais. Foi aí que, enquanto magistrada do Ministério Público, se tornou a primeira presidente da Comissão de Protecção de Menores.

Chegou ao Tribunal Criminal da Boa-Hora em 1994 e, depois, assumiu a coordenação do Ministério Público nos tribunais de Família e Menores, de Execução de Penas e da Pequena Instância Criminal. Logo a seguir ficou apenas como coordenadora no Tribunal de Família e Menores até 2002.

Dois anos mais tarde chegou a nomeação para a Auditora Jurídica do ministro da República para a Região Autónoma dos Açores e representante do Ministério Público na Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas. Esteve nos Açores entre 2004 e 2007 e sempre falou desse tempo como sendo de uma grande felicidade.

Teve uma relação de amor à primeira vista com os Açores. Identificou-se com aquele sentido de humor muito próprio dos açorianos e com o vagar com que se relacionavam com o tempo. Deixou nas ilhas açorianas uma imagem de simpatia, elegância e de grande preocupação com a Justiça Social. Conheceu todas as nove ilhas do arquipélago e era aos Açores que regressava sempre para descansar.

Regressada dos Açores, assumiu funções como presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, entre 2007 e 2012, e foi a primeira mulher a liderar esta associação. A importância que dava à justiça social, à igualdade de direitos entre homens e mulheres e o combate a qualquer tipo de discriminação foi o principal motivo que a levou a liderar uma associação marcada pelo seu trabalho de luta contra a violência doméstica e não só.

A chegada à Procuradoria-Geral da República

Quando o conselheiro Fernando Pinto Monteiro terminou o seu mandato de procurador-geral da República em outubro de 2012, o Ministério Público estava sob polémica. Era acusado de, ter uma enorme proximidade com o primeiro-ministro José Sócrates e com Alberto Costa, ministro da Justiça, e de tentar dominar a máquina do Ministério Público.

Entrou em guerra aberta com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (liderado pelo procurador João Palma, hoje presidente da Assembleia-Geral do Sporting), queixou-se de ter autênticos poderes de rainha de Inglaterra e impediu a investigação a José Sócrates pelo alegado crime de violação das regras do Estado de Direito proposta precisamente pelo procurador João Marques Vidal, irmão de Joana Marques Vidal, então diretor do DIAP do Baixo Vouga.

Acabaria por ser, já como procuradora-geral, Joana Marques Vidal a acompanhar, enquanto líder do Ministério Público, o desenrolar das investigações que culminaram com a detenção de José Sócrates no dia 21 de novembro de 2014.

Mas, antes disso, Joana Marques Vidal teve de enfrentar o cepticismo com que o seu nome foi recebido em 2012. O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tinha delegado na sua ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, as negociações com o Presidente Cavaco Silva para a nomeação de um novo procurador-geral.

Cavaco, que não ficou contente com o trabalho de Pinto Monteiro (sempre muito defendido por Sócrates), quis ter a certeza de que estaria a nomear a pessoa certa. Paula Teixeira da Cruz tinha vários nomes na sua lista, mas a sua preferência era claramente Joana Marques Vidal. Após fazer o seu trabalho de pesquisa, Cavaco Silva concordou em nomeá-la como a nova titular do Palácio Palmela.

Entre o cepticismo de ser uma especialista em família e menores no cargo e a herança da guerra aberta entre a Procuradoria-Geral da República e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Joana Marques Vidal soube apaziguar rapidamente os ânimos.

A nova estratégia para o DCIAP

O passo seguinte foi definir uma nova visão estratégia para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), que passou pela saída da procuradora Cândida Almeida (que chegou a ter a ambição de ser procuradora-geral da República) e a nomeação de um outro estreante na área penal: o procurador-geral adjunto Amadeu Guerra.

Foi esta dupla, Joana Marques Vidal/Amadeu Guerra, que permitiu potenciar o trabalho dos procuradores do DCIAP — um órgão da Procuradoria-Geral da República criado pelo procurador-geral Cunha Rodrigues em 1999 como uma suposta cúpula do melhor que havia na investigação criminal, mase que poucos resultados tinha apresentado até então.

A liderança e a presença de Joana Marques Vidal — visitou inúmeras vezes o DCIAP e reunia-se directamente com Amadeu Guerra praticamente todas as semanas para acompanhar o trabalho dos procuradores — foi algo essencial para que os resultados começassem a aparecer.

O mesmo aconteceu com toda a estrutura do Ministério Público. Marques Vidal não se fechou no seu gabinete e viajou por todo o país (continente e ilhas) para conhecer as condições de trabalho dos serviços do Ministério Público nas diferentes jurisdições e liderava os órgãos em que era presidente por inerência, como o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Consultivo da PGR.

Foi entre 2012 e 2018 que José Sócrates foi investigado, detido e acusado da prática de mais de 30 crimes no exercício do cargo de primeiro-ministro. E foi também durante o mandato único de Joana Marques Vidal que Ricardo Salgado começou a ser investigado numa mega-investigação que viria a culminar na sua acusação em sete processos, na sua condenação a uma pena de 8 anos de prisão efetiva por se ter apropriado de 10 milhões de euros do Grupo Espírito Santo e na apreensão de bens e fundos avaliados em várias centenas de milhões de euros, que servirão para pagar no futuro indemnizações aos lesados do BES.

Foi também durante o mandato de Marques Vidal que o juiz Rui Rangel foi detido e outros magistrados começaram a ser investigados na Operação Lex; que o mundo do futebol foi sacudido por uma série de investigações sem olhar à cor do clube de futebol; e que as investigações ao Banco Privado Português foram desenvolvidas pelo DIAP de Lisboa — já estão detidos dois ex-administradores que cumprem pena de prisão efectiva e um terceiro será detido até ao final do ano.

Nem tudo foi positivo, contudo. Entre outras derrotas, o caso dos Vistos Gold, que levou à demissão do então ministro Miguel Macedo, danificou a imagem do Ministério Público. Macedo foi acusado de vários crimes, em conjunto com outros arguidos, mas viria a ser absolvido de todos esses crimes pelo tribunal de julgamento, sob muitas críticas ao Ministério Público.

Foi também durante o mandato da procuradora-geral Joana Marques Vidal que surgiu o famoso caso do “irritante”.

Foi como “irritante” que o então primeiro-ministro António Costa catalogou, com o acérrimo apoio do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a investigação que o DCIAP abriu a Manuel Vicente, ex-presidente da Sonangol, por ter alegadamente corrompido um procurador português, Orlando Figueira — que tinha arquivado vários inquéritos que visavam o gestor angolano.

As duas procuradoras titulares dos autos entendiam que tinham prova indiciária para acusar Manuel Vicente que, entretanto, já tinha deixado de ser vice-presidente da República de Angola, depois de ter perdido a corrida a sucessor de José Eduardo dos Santos para João Lourenço.

Joana Marques Vidal estaria inclinada a enviar os autos relacionados com Manuel Vicente para Angola, mas após ser informada que os angolanos tinham garantido por escrito que aplicariam uma amnistia aos crimes que eventualmente Manuel Vicente tivesse praticado em Portugal, não hesitou em apoiar as procuradoras: o processo ficaria em Portugal em nome da boa administração da Justiça. Manuel Vicente foi mesmo acusado de corrupção pelo Ministério Público e arriscava-se a ser julgado à revelia.

Após muita pressão política (e pública) do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa, uma polémica decisão do Tribunal da Relação de Lisboa fez com que os autos contra Manuel Vicente fossem separados dos autos da Operação Fizz e enviados para Luanda — onde ainda hoje jazem na gaveta da Justiça angolana.

A criação do facto político do mandato único

Estávamos já em 2018 quando a ministra Francisca Van Dunem deu uma entrevista à TSF/Diário de Notícias para criar um facto político (à moda de Marcelo Rebelo de Sousa versão jornalista do Expresso nos anos 70 e 80): “A Constituição prevê um mandato longo e um mandato único” para o procurador-geral da República, diria.

Van Dunem assumiu a sua declaração como uma “análise jurídica”. Mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa repescaram esta visão política do “mandato único”. O trunfo destes aliados políticos do período 2015/2022 era que a própria Joana Marques Vidal já tinha defendido tal tese jurídica no passado. A procuradora-geral percebeu que Marcelo e Costa já tinham escolhido o seu destino: não continuaria no cargo.

Apenas falaria de forma desenvolvida uma única vez sobre este tema. Na sua entrevista ao Expresso/SIC, em que assinalou a sua saída da PGR, disse que “seria uma arrogância dizer que estava disponível [para continuar] sem ter sido convidada” — mas acrescentou que “basta estudar” para saber que a Constituição permite a renovação do mandato. Curiosamente, o tema do mandato único não foi recordado por ninguém agora em 2024 quando Lucília Gago fez questão de dizer que saía pelo seu próprio pé porque estava em idade de se jubilar.

Marcelo Rebelo de Sousa não voltou a recordar o tema do mandato único. Condecorou Joana Marques Vidal com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo no momento da sua saída da PGR — uma condecoração habitual concedida aos ex-procuradores-gerais.

Nos últimos anos da sua vida, e já jubilada como procuradora-geral adjunta após uma última passagem pelo Tribunal Constitucional, Joana Marques Vidal dedicou-se a outra grande paixão: a cooperação com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. “Faço isso porque gosto e porque me realiza. A cooperação com os países da CPLP devia ser mais desenvolvida pelos responsáveis políticos portugueses. O apoio aos sistemas judiciais e aos tribunais dos países da CPLP é um apoio pelo qual Portugal é responsável porque aqueles países assumiram uma estrutura de Estado que é semelhante à nossa e replicam na sua ordem jurídica os valores do Estado de Direito e da democracia preconizados”, explicou ao Observador na entrevista concedida no último dia como procuradora-geral adjunta.

Dizia nessa entrevista que não iria “ter saudades” da Justiça porque “tenho falado sempre de Justiça”. Mas sempre com “reserva após ter saído da Procuradoria-Geral da República”. Manteve-se sempre atenta aos desenvolvimentos do sector, dando grande importância à eficácia na luta contra a corrupção.

Dizia que queria escrever vários livros. Mas já não conseguiu concretizar todos os seus projectos. Morreu na manhã desta terça-feira, dia 9 de julho de 2024, com 68 anos, após várias semanas em coma induzido devido a uma septicemia após uma operação para combater um cancro.

Este perfil foi escrito parcialmente com base num excerto do livro “45 Anos de Combate à Corrupção” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021) da autoria de Luís Rosa

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