E afável, a condizer com o retrato bem positivo de uma Mulher lutadora
e honesta. Uma biografia para ser relida, pelas recordações que traz, num país que vai reconhecendo como pode.
Joana
Marques Vidal. A Procuradora anti-justiceira, que investigou Sócrates
e Salgado e criou o "irritante" com Angola
Nasceu numa família de juristas e
desde cedo quis ir para Direito. Especializou-se na área de família e menores,
mas ficou conhecida pelo luta contra a corrupção como procuradora-geral da
República.
LUÍS ROSA: Texto
OBSERVADOR, 09 jul. 2024, 23:046
Índice
A família do Direito e da Educação Física
A entrada em Direito num tempo com seguranças na
Faculdade
A carreira dedicada à área de família e menores
A chegada à Procuradoria-Geral da República
A nova estratégia para o DCIAP
A criação do facto político do mandato único
Definida por muitos como uma
mulher corajosa, Joana Marques
Vidal não recusava que tal característica era relevante e aceitava
que essa atitude tinha peso em quem queria ser magistrado. “Mas a coragem, por si só, não basta”, explicou na
entrevista que marcou a sua despedida da Procuradoria-Geral da República. A
primeira mulher a liderar o Ministério Público abriu um novo capítulo da
história da Procuradoria-Geral da República sobretudo pelos resultados que
apresentou ao longo do seu mandato único de seis anos.
Para tais resultados não bastou apenas a tal coragem, como a própria Joana Marques Vidal
explicou nessa entrevista ao Expresso (uma das duas que deu ao longo do mandato
— a outra foi ao Observador). Foi preciso também“conhecimento,
rigor e definir as prioridades naquilo em que investimos”, disse. E isso
incluía o acompanhamento próximo e escrupuloso que dedicava aos processos que
sabia que iriam marcar a imagem do Ministério Público perante a opinião
pública, ainda que respeitando sempre a autonomia dos magistrados.
Joana Marques Vidal morreu esta
terça-feira, dia 9, aos 68 anos. E não foi apenas a procuradora-geral da
República que recusou sempre o título de justiceira que lhe tentaram colar e
que abriu processos contra os poderosos, de Sócrates a Ricardo Salgado.
A família do Direito e da Educação
Física
Nascida em Coimbra no último
dia do ano de 1955, Joana Marques Vidal era a filha mais velha do conselheiro
José Marques Vidal e da sua primeira mulher, Maria Joana Morais Ribeiro Raposo.
Apesar do sangue aristocrata pelo lado da mãe (neta do Barão de Châtillon e
sobrinha-neta do 1.º Conde de Sarzedas”), a família Marques Vídal não mostrava
os sinais que se costumam apontar à nobreza.
Como conta o seu irmão, João Marques Vidal, também ele
procurador-geral adjunto (que tentou investigar José Sócrates mas na altura não
terá ido mais longe devido ao então procurador-geral Fernando Pinto Monteiro),
a família fomentava muito o debate e a curiosidade intelectual. Joana e os seus
irmãos são filhos e netos de juízes e sempre viveram rodeados de histórias de
Direito.
A começar pelo pai, o
conselheiro José
Marques Vidal, que desempenhou, entre outros cargos, o de
vice-procurador-geral da República e de director-geral da Polícia Judiciária,
entre 1985 e 1991. Por oposição ao seu pai, um homem extrovertido e que
continua a ‘encher uma sala’, Joana Marques Vidal sempre foi mais discreta.
Herdou o sentido de humor paterno e a vivacidade com que enfrentava os dias e
encarava a profissão de magistrada, mas sempre num tom mais recatado.
Conta João Marques Vidal, com
o sentido de humor que também o caracteriza, que apesar de haver uma facção
acentuada de licenciados em Direito na família — não havia propriamente um
“ambiente jurídico lá em casa”. Tanto
assim é que o sector dos licenciados em Educação Física, liderado pela mãe
Maria Joana, era quem sabia mais de Direito.
A entrada em Direito num tempo com seguranças na Faculdade
E Joana Marques Vidal foi das que quis seguir uma carreira em
Direito. Depois dos estudos primários e
secundários entre Coimbra e Lisboa, entrou na Faculdade de Direito de Lisboa em
1973, numa altura em que os jovens universitários já estavam muito politizados
após as crises académicas de 1962 (em Lisboa) e de 1969 (em Coimbra).
Os grupos marxistas-leninistas imperavam
na Faculdade de Direito de Lisboa e a sua luta contra o regime tornava-se cada
vez mais intensa. A faculdade foi tomada pelos que ficaram conhecidos como
‘gorilas’, seguranças privados contratados pela Universidade de Lisboa. João
Marques Vidal, com 16 anos, viu-se assim na obrigação de acompanhar a irmã
Joana à Faculdade nos primeiros tempos.
▲Joana
Marques Vidal em 2021 durante a sua entrevista ao Observador no último dia como
magistrada do Ministério Público FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Joana Marques Vidal não entrou
em movimentos políticos, mas como a maioria da sua geração, que viveu a
juventude durante o Estado Novo, a memória da ditadura e do autoritarismo — e
as desigualdades sociais de então — marcaram-na.
Assumia-se como uma mulher de esquerda sem quaisquer rodeios, falou
disso várias vezes em público (como aqui), mas viu uma parte do Partido
Socialista e da esquerda criticarem-na. Críticas muito motivadas por ter sido
nomeada pelo então Presidente Aníbal Cavaco Silva (que nutria por ela
admiração), por indicação da ministra Paula Teixeira da Cruz e, principalmente,
pelo processo que levou à detenção de José Sócrates — mas tais críticas
incomodavam-na, contam os mais próximos.
A carreira dedicada à área de família e menores
Apesar do seu mandato marcante enquanto
procuradora-geral da República, a investigação criminal não era a
área de eleição de Joana Marques Vidal. Trabalhou
vários anos na área penal, nomeadamente no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, mas
ficou conhecida (até chegar à Procuradoria-Geral da República) como
especialista na área de família,
que foi a sua predilecta.
Após concluir os estudos em 1978 na Faculdade de Direito de Lisboa,
estagiou nas comarcas de Coimbra, Lousã e Arganil. Já como procuradora adjunta
e procuradora da República continuou a acumulação de experiência em várias
jurisdições, nas comarcas de Vila Viçosa e Seixal, até que chegou a Cascais.
Foi aí que, enquanto magistrada do Ministério Público, se tornou a primeira
presidente da Comissão de Protecção de Menores.
Chegou ao Tribunal Criminal da
Boa-Hora em 1994 e, depois, assumiu a coordenação do Ministério Público nos
tribunais de Família e Menores, de Execução de Penas e da Pequena Instância
Criminal. Logo a seguir ficou apenas como coordenadora no Tribunal de Família e
Menores até 2002.
Dois anos mais tarde chegou a nomeação para a Auditora Jurídica do
ministro da República para a Região Autónoma dos Açores e representante do
Ministério Público na Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas. Esteve
nos Açores entre 2004 e 2007 e sempre falou desse tempo como sendo de uma
grande felicidade.
Teve
uma relação de amor à primeira vista com os Açores. Identificou-se com aquele
sentido de humor muito próprio dos açorianos e com o vagar com que se
relacionavam com o tempo. Deixou nas ilhas açorianas uma imagem de simpatia,
elegância e de grande preocupação com a Justiça Social. Conheceu todas as nove
ilhas do arquipélago e era aos Açores que regressava sempre para descansar.
Regressada dos Açores, assumiu
funções como presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, entre 2007
e 2012, e foi a primeira mulher a liderar esta associação. A importância que
dava à justiça social, à igualdade de direitos entre homens e mulheres e o
combate a qualquer tipo de discriminação foi o principal motivo que a levou a
liderar uma associação marcada pelo seu trabalho de luta contra a violência
doméstica e não só.
A
chegada à Procuradoria-Geral da República
Quando o conselheiro Fernando Pinto Monteiro terminou o seu mandato de
procurador-geral da República em outubro de 2012, o Ministério Público estava
sob polémica. Era acusado de, ter uma enorme proximidade com o primeiro-ministro
José Sócrates e com Alberto Costa, ministro da Justiça, e de tentar dominar a
máquina do Ministério Público.
Entrou em guerra aberta com o Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público (liderado pelo procurador João Palma, hoje presidente da
Assembleia-Geral do Sporting), queixou-se de ter autênticos poderes de rainha
de Inglaterra e impediu a investigação a José Sócrates pelo alegado crime de
violação das regras do Estado de Direito proposta precisamente pelo procurador
João Marques Vidal, irmão de Joana Marques Vidal, então diretor do DIAP do
Baixo Vouga.
Acabaria por ser, já como
procuradora-geral, Joana Marques Vidal a acompanhar, enquanto líder do
Ministério Público, o desenrolar das investigações que culminaram com a
detenção de José Sócrates no dia 21 de novembro de 2014.
Mas, antes
disso, Joana Marques Vidal teve de enfrentar o cepticismo com que o seu nome
foi recebido em 2012. O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tinha delegado na
sua ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, as negociações com o
Presidente Cavaco Silva para a nomeação de um novo procurador-geral.
Cavaco, que não ficou contente
com o trabalho de Pinto Monteiro (sempre muito defendido por Sócrates), quis
ter a certeza de que estaria a nomear a pessoa certa. Paula Teixeira da
Cruz tinha vários nomes na sua lista, mas a
sua preferência era claramente Joana Marques Vidal. Após fazer o seu
trabalho de pesquisa, Cavaco Silva concordou em nomeá-la como a nova
titular do Palácio Palmela.
Entre o cepticismo de ser uma
especialista em família e menores no cargo e a herança da guerra aberta entre a
Procuradoria-Geral da República e o Sindicato dos Magistrados do Ministério
Público, Joana Marques Vidal soube apaziguar rapidamente os ânimos.
A nova estratégia para o DCIAP
O passo seguinte foi definir uma nova
visão estratégia para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal
(DCIAP), que passou pela
saída da procuradora Cândida Almeida (que chegou a ter a ambição de ser
procuradora-geral da República) e a nomeação de um outro estreante na área
penal: o procurador-geral adjunto Amadeu Guerra.
Foi esta dupla, Joana Marques Vidal/Amadeu Guerra, que permitiu potenciar o trabalho dos procuradores do DCIAP — um órgão da Procuradoria-Geral da República criado pelo procurador-geral Cunha Rodrigues em 1999 como uma suposta cúpula do melhor que havia na investigação criminal, mase que poucos resultados tinha apresentado até então.
A liderança e a presença de Joana Marques Vidal — visitou inúmeras
vezes o DCIAP e reunia-se directamente com Amadeu Guerra praticamente todas as
semanas para acompanhar o trabalho dos procuradores — foi algo essencial para
que os resultados começassem a aparecer.
O mesmo aconteceu com toda a
estrutura do Ministério Público. Marques
Vidal não se fechou no seu gabinete e viajou por todo o país (continente
e ilhas) para conhecer as condições de trabalho dos serviços do Ministério
Público nas diferentes jurisdições e liderava os órgãos em que era presidente
por inerência, como o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho
Consultivo da PGR.
Foi entre 2012 e 2018 que José Sócrates foi investigado,
detido e acusado da prática de mais de 30 crimes no exercício do cargo de
primeiro-ministro. E foi também durante o mandato único de Joana Marques Vidal
que Ricardo Salgado começou a
ser investigado numa mega-investigação que viria a culminar na sua acusação em
sete processos, na sua condenação a uma pena de 8 anos de prisão efetiva por se
ter apropriado de 10 milhões de euros do Grupo Espírito Santo e na apreensão de
bens e fundos avaliados em várias centenas de milhões de euros, que servirão
para pagar no futuro indemnizações aos lesados do BES.
Foi também durante o mandato de
Marques Vidal que o juiz Rui
Rangel foi detido e outros magistrados começaram a ser investigados na Operação Lex; que o mundo do futebol foi sacudido por uma série
de investigações sem olhar à cor do clube de futebol; e que as investigações ao Banco Privado Português
foram desenvolvidas pelo DIAP de Lisboa — já estão detidos dois ex-administradores
que cumprem pena de prisão efectiva e um terceiro será detido até ao final do
ano.
Nem tudo foi positivo, contudo.
Entre
outras derrotas, o caso dos Vistos Gold, que levou à demissão do então ministro Miguel Macedo, danificou a imagem
do Ministério Público. Macedo foi acusado de vários crimes, em conjunto com
outros arguidos, mas viria a ser absolvido de todos esses crimes pelo tribunal
de julgamento, sob muitas críticas ao Ministério Público.
Foi também durante o mandato da
procuradora-geral Joana Marques Vidal que surgiu o famoso caso do “irritante”.
Foi como “irritante” que o então
primeiro-ministro António Costa catalogou, com o acérrimo apoio do Presidente
Marcelo Rebelo de Sousa, a investigação que o DCIAP abriu a Manuel Vicente,
ex-presidente da Sonangol, por ter alegadamente corrompido um procurador
português, Orlando Figueira — que tinha arquivado vários inquéritos que visavam
o gestor angolano.
As
duas procuradoras titulares dos autos entendiam que tinham prova indiciária
para acusar Manuel Vicente que, entretanto, já tinha deixado de ser
vice-presidente da República de Angola, depois de ter perdido a corrida a sucessor
de José Eduardo dos Santos para João Lourenço.
Joana Marques Vidal estaria inclinada a enviar os autos relacionados com Manuel Vicente para Angola, mas após ser informada que os angolanos tinham garantido por escrito que aplicariam uma amnistia aos crimes que eventualmente Manuel Vicente tivesse praticado em Portugal, não hesitou em apoiar as procuradoras: o processo ficaria em Portugal em nome da boa administração da Justiça. Manuel Vicente foi mesmo acusado de corrupção pelo Ministério Público e arriscava-se a ser julgado à revelia.
Após muita pressão política
(e pública) do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro
António Costa, uma polémica decisão do Tribunal da Relação de Lisboa fez com
que os autos contra Manuel Vicente fossem separados dos autos da Operação Fizz
e enviados para Luanda — onde ainda hoje jazem na gaveta da Justiça angolana.
A criação do facto político do mandato único
Estávamos
já em 2018 quando a ministra
Francisca Van Dunem deu uma
entrevista à TSF/Diário de Notícias para criar um facto político (à moda de
Marcelo Rebelo de Sousa versão jornalista do Expresso nos anos 70 e 80): “A
Constituição prevê um mandato longo e um mandato único” para o procurador-geral
da República, diria.
Van Dunem assumiu a sua declaração como uma “análise jurídica”. Mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa repescaram esta visão política do “mandato único”. O trunfo destes aliados políticos do período 2015/2022 era que a própria Joana Marques Vidal já tinha defendido tal tese jurídica no passado. A procuradora-geral percebeu que Marcelo e Costa já tinham escolhido o seu destino: não continuaria no cargo.
Apenas falaria de forma desenvolvida
uma única vez sobre este tema. Na
sua entrevista ao Expresso/SIC, em
que assinalou a sua saída da PGR, disse que “seria uma arrogância dizer que
estava disponível [para continuar] sem ter sido convidada” — mas acrescentou
que “basta estudar” para saber que a Constituição permite a renovação do
mandato. Curiosamente, o tema do mandato único não foi recordado por ninguém
agora em 2024 quando Lucília Gago fez questão de dizer que saía pelo seu
próprio pé porque estava em idade de se jubilar.
Marcelo Rebelo de Sousa não
voltou a recordar o tema do mandato único. Condecorou Joana Marques Vidal com a
Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo no momento da sua saída
da PGR — uma condecoração habitual concedida aos ex-procuradores-gerais.
Nos últimos anos da sua vida, e já jubilada como procuradora-geral
adjunta após uma última passagem pelo Tribunal Constitucional, Joana
Marques Vidal dedicou-se a outra grande paixão: a cooperação com os
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. “Faço isso porque gosto e porque me realiza. A cooperação com os
países da CPLP devia ser mais desenvolvida pelos responsáveis políticos
portugueses. O apoio aos sistemas judiciais e aos tribunais dos países da CPLP
é um apoio pelo qual Portugal é responsável porque aqueles países assumiram uma
estrutura de Estado que é semelhante à nossa e replicam na sua ordem jurídica
os valores do Estado de Direito e da democracia preconizados”, explicou
ao Observador na entrevista concedida no último dia como procuradora-geral
adjunta.
Dizia nessa entrevista que não iria “ter saudades” da
Justiça porque “tenho falado sempre de Justiça”. Mas sempre com “reserva após ter
saído da Procuradoria-Geral da República”. Manteve-se sempre atenta aos desenvolvimentos do sector, dando
grande importância à eficácia na luta contra a corrupção.
Dizia que queria escrever vários livros.
Mas já não conseguiu concretizar todos os seus projectos. Morreu na manhã desta
terça-feira, dia 9 de julho de 2024, com 68 anos, após várias semanas em coma
induzido devido a uma septicemia após uma operação para combater um cancro.
Este perfil foi escrito
parcialmente com base num excerto do livro “45 Anos de Combate à Corrupção”
(Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021) da autoria de Luís Rosa
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