quarta-feira, 31 de julho de 2024

“Papéis pintados com tinta”?


Só mesmo por brincadeira de um extraordinário pintor nosso.

Livros para todas as estações (e um desabafo deprimente)

Marcello Mathias, a “Desoras” , num xadrez consigo próprio, através da escrita: servidor público, cosmopolita, lúcido, intransigente, observador, sarcástico. Paisagista de almas. A ler absolutamente.

MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 31 jul. 2024, 00:2022

1Aterram sempre por esta altura Ninguém estranha, é verão. Há poucas “boas acções” tão previsíveis quanto a lista de livros “para ler nas férias” que nos é gratuitamente fornecida, todos os anos. Embirro um bocadinho talvez porque no meu caso não tenho mais predisposição para ler em Julho ou em Agosto (tenho-a sempre), nem mais tempo, por ser verão (com casas com mais gente que camas, ler é um número de circo).

Lembrei-me disto porque ando há um bom par de meses para recordar aqui algumas obras mas – ossos do ofício – só calhou agora. E é agora que deixo alguns livros sem estação: são livros de todas as estações. Escritos em português, o que me apraz fazer notar.

2Quando aí pela vigésima ou trigésima página de um livro vou buscar o lápis, o gesto antecipa-me a possibilidade de uma “certeza” de que serei a ansiosa receptadora: a certeza do infindo prazer que será cavalgar, a passo, a trote, a galope ou mesmo á desfilada, sobre as palavras. A certeza dessa surpresa. E sob o ribombar desse trovão de emoções, há-de ficar a planar a última certeza: um livro é finito mas a sua memória ficará para sempre no tracejado do lápis avançando pelas páginas.

3Deve ter sido quase logo de início que comecei a anotar o livro de Martim Sousa Tavares. “Falar Piano e Tocar Francês – Arte, cultura e humanismo na era dos memes” (Zigurate). A badana indica-nos que “a beleza está em todo lado“, que “é importante falar dela e não a perder de vista”, etc. Sim. Claro. Mas o que retive antes do mais (além da – indefinível? – natureza de que o autor é feito) foi a invulgaríssima maneira com que partilhou connosco o seu entendimento de “beleza”. E onde ela pode estar, e de que pode ser feita, e de como fazer para quando nos salta ao caminho, não a perder de vista, nem lhe perder o sentido. Martim regressou a lugares, ensinou-nos música e contou-nos músicos, visitou museus, casou com Veneza, homenageou mestres, elaborou sobre maestros, escritores, pintores, ou uma receita de cozinha; estabeleceu improváveis paralelismos ou cruzamentos entre épocas, artes, criadores. Jamais esquecerei a sua maravilhosa “observação/explicação” do que pode levar um maestro a querer absolutamente reger de uma forma lentíssima, um determinado andamento de uma peça musical… Tão, tão, lentamente e num “arrastamento” tal, que um distraído julgará tratar-se de um critério musicalmente errado ou de uma obsessão, quando afinal está diante de uma forma de transcendência, no modo como o mestre “lê” e dá a ouvir “aquele” andamento… (Eu diria que é uma prova da existência de Deus mas eu não toco piano, só falo francês.)

Não há neste livro, uma continuidade de temas, nem uma cronologia, nem uma biografia, nem o mero relato de experiências e ocorrências. Há o Martim. E bocados da sua vida, sem ligação aparente mas unidos pelo modo como ele foi ter com eles, e eles consigo. E nesse sentido, o que retive foi o que de tão “especial” ,Martim Sousa Tavares fez de tudo isso e com tudo isso.

Sabíamos que era um músico abençoado, um criador, um divulgador de inesgotável imaginação e iniciativa. Talvez não soubéssemos que afinal possa simplesmente ser sobredotado.

4Falei em bocados de vida e o que é um “Diário” senão um imenso puzzle de peças de uma vida? Tenho uma antiquíssima admiração por quem joga consigo mesmo esse xadrez e Marcello Mathias é um dos mais exímios praticantes dessa delicadíssima modalidade literária: ao escolher a peça na qual vai mexer: saber qual avançará, eleger a que quer quieta; decidir a que deve recuar; determinar qual a que retira do tabuleiro. Percepcionar o lugar de todas, uma aqui, outra ali, esta desiste, aquela resiste.

Há anos que leio estes Diários, que só nos largam quando, virando uma página, percebemos subitamente que é a última, não há mais páginas… Este chama-se “A Desoras – Diário, 2017-2023” (D. Quixote) e dizem-nos – será assim? – que será o último dos seus diários.

O jogador de xadrez percebendo como tudo é antes do mais derisório, talvez se tenha cansado. Há um momento em que a lucidez pode ser tão impiedosa, e a ausência de qualquer ilusão tão sombria, que se atinge um qualquer limite e o jogador de xadrez resolve entregar-se. Nunca saberemos se verdadeiramente decidiu fazê-lo nem o porquê desta rendição – as perigosas contas com o já vivido? O brumoso temor do que resta viver? O que podia ter sido e não foi? Esperar?

Nunca saberemos. (Ele saberá?)

5Li estas “Desoras” num fôlego e – eu sabia – lá estava o patriota sem ilusões mas nunca se permitindo que a desilusão lhe pulverizasse o que ele sabe termos sido e termos feito. E também sabe como por essas incríveis lonjuras se contam ainda hoje marcas e marcos nossos – que só parecem manifestamente incomodar-nos a nós; e ainda sabe que nove séculos depois, cá estamos, os mesmos e dentro das mesmas fronteiras. Lá estava o cidadão culto, civilizado, de bom berço e acuidado critério, capaz de nos trazer – em dez linhas, três apontamentos, dois adjectivos ou trinta páginas – um ser humano inteiro. Lá estava o cosmopolita, reeditando o seu dom de pintar aguarelas sobre outras pátrias e povos, em tons ácidos, cores luminosas, ou tintas penumbrosas. E oferecendo-nos as memórias, os apontamentos, as histórias, as descobertas, as observações que coleccionou nas diversas geografias onde serviu como diplomata – pertence à dinastia dos Mathias – ou por onde deambulou. Lá estava o captador de mentes e almas -ou deveria dizer mais apropriadamente um dos melhores intérpretes que conheço da natureza humana? Lá estava este homem arguto que nunca resistiu a atrelar ao humor que usa uma não despicienda quantidade de sarcasmo. Talvez porque o excesso de lucidez lhe vete humor mais afável, talvez por entender que o humor é algo de tão sério que dispensa afabilidades. E lá estava o escritor. Este que respira em permanência o mundo, a vida, a paisagem humana dentro ou fora das nossas acanhadas portas e depois as atira para o mar da escrita. Deixando que as palavras levem às costas a realidade das coisas como as viu. Lá estava enfim o praticante de xadrez que só joga consigo próprio.

Um Marcello Mathias, que felizmente reencontrei igual a si mesmo - patriota, servidor público, cosmopolita, culto, intransigente com o que merece a intransigência, observador, sarcástico. Mas sempre, sempre, antes do mais e de livro para livro, muito interessante. Mesmo que o tempo que passa – a que se costuma chamar idade, mas eu não chamo – se tenha interposto entre ele e nós. E por isso tenha coberto esta escrita com o véu de uma melancolia que costumava ser fininha mas hoje pesa no véu. Perceberão o que quero dizer na minha quando os convoquei para este português que vale a pena.

(Oportunamente voltarei aqui com a magnifica biografia de Lucas Pires da autoria de Nuno Gonçalo Poças, e com o extraordinário – depois explico – livro de crónicas de Guilherme Oliveira Martins, “A Cultura como Enigma”. Oportunamente, se bem se percebe é aqui um eufemismo: voltarei quando a casa com mais gente que camas me der autorização).

PS — Mesmo em Agosto, com os Jogos Olímpicos, as férias, o verão, o calor, os amigos, só não vê quem não quer. O quê? Este deprimente banzé que aí anda – e andará –, idealizado, produzido, realizado e interpretado por André Ventura. Já com o banzé em andamento e após alguns actos do premeditado teatro que tem sido a Comissão de Inquérito Parlamentar promovida pelo Chega ao Presidente da República, começaram a ouvir-se felicitações a José Pedro Aguiar Branco porque (finalmente?) atrasou ou impediu que se viesse a entrar na maior devassa de que haveria memória em 50 anos. Ventura queria mais faenas, desta feita com WhatApp e tutti quanti – e amanhã o quê? Uma destituição do Chefe do Estado? Um assalto aos computadores do Palácio? A prisão de Nuno Rebelo de Sousa? Foi pena Aguiar Branco não se lembrar de que tinha muito do seu lado para impedir – ou ter acautelado – a menorização do parlamento, a vergonha de alguns parlamentares, a desconfiança sarcástica do povo, o descrédito da política. Vai – agora? – pedir “pareceres” a uma secção da Procuradoria-Geral da República? E porque não um pedir um parecer a si mesmo, legitimado pela sua função e com a autoridade que lhe advém de segunda figura do Estado (e sereno conhecedor de homens e leis). Apesar de já aí estar o verão, as férias, a família reunida, novos projectos… conseguem deprimir-nos. (E já agora… a penosa pantomina da denominada última ceia, na inauguração dos Jogos Olímpicos, foi um bom contributo em deprimência: tão despropositado, tão desinteressante, tão grotesco. Mais patético que “inclusivo”, dificilmente terá convidado à prática da tolerância (e que confusão que aí anda com “tolerância” só para um lado…). Os dias não andam amáveis.

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COMENTÁRIOS (de 22)

Tim do A: Mais uma senhora que abraça a corrupção quando é praticada pelos seus. Digo -lhe que isso é uma moral muito duvidosa. Ademais a corrupção é o principal problema deste país e por isso devemos combatê-la sem tréguas. É isso que Ventura faz. Por isso é tão atacado pelo poder corrupto do PS e do PSD e CDS e seus escribas militantes. P.S. E já que afirma não gostar dos Wokes, que diz do wokismo do seu governo AD? Afinal gosta?               José Manuel Pereira: Pois cá estão os comentadores do Chega a fazer o que mais sabem: ofender; intimidar; ser grosseiros para além do razoável a todos que não lhes seguem a cartilha a gosto... Espantoso (ou talvez não) o Observador impávido perante este continuado e debochado insulto dos comentadores do Chega aos articulistas de quem não gostam... Agora, os articulistas têm de ser sacrificados ao péssimo gosto e insultos dos cheganos? e já agora, todos os outros comentadores também? E os articulistas que não gostam do Chega ou de "coisas" que o Chega faz, têm de aturar esta incivilidade grupal e aparentemente coordenada com paciência, é? Ao melhor estilo do cancelamento e silenciamento que apeteça a estes comentadores? Os outros comentadores também são assinantes, ou os cheganos têm mais direitos especiais de ataque, falta de gosto, falta de civilidade, falta de bom senso... que as restantes pessoas? "Isto" começa a ser um espetáculo degradante que em nada abona ao Observador, é excessivo e particularmente grosseiro neste artigo da Maria João Avilez que muito prezo, como tanta gente neste país, mesmo que possa nem sempre concordar com ela. A única coisa que posso fazer é deixar um pequeno desabafo de sério descontentamento com o facto de ter de aturar sistematicamente aqui a grosseria do Chega, como se fossem donos do país, da razão, da verdade absoluta... e do Observador... e sistematicamente com ameaças e tentativas de cancelamento..             .Pobre Portugal: Os instalados do centrão (que até à extrema esquerda se aliam) têm cá um medo do Chega. Pois, quem deve teme.                   Fernando Cascais > José Manuel Pereira: Olhe caríssimo, eu não sou do Chega e sou do piorio. Desancar em articulistas e outros comentadores há poucos com o meu nível. Linguagem ordinária, tiques de racista, xenófobo, homofóbico e misógino, creio que devo ser o melhor exemplo da caixa de comentários. Bem gostaria que o Observador corresse comigo de vez, mas nada. Por causa de mim muitos assinantes não vão renovar a assinatura como é o caso do Mário Figueiredo, coitado. Desde já desculpas antecipadas da minha parte. Isto vai ficar muito mais pobre sem um leitor da categoria do Marinho. Mas, oh Zé Manel, a maioria dos cheganos que escrevem aqui é boa gente que anda preocupada com a imigração descontrolada e com o Movimento Woke. Apoiam o Trump porque acham que representa a direita, prova, que são inocentes boa rapaziada mas ingénuos. Piores mesmo, tirando eu, são aqueles que se fazem de santinhos e querem um jornal feito à medida. Não gostam da contradição, apoiam Maduro às escondidas e acreditam em aparições de almas com dois mil anos. Quanto a esta articulista nunca gostei muito do seu jornalismo. É um bocadinha, como é que posso dizer, influenciada. Aquando dos debates das legislativas foi convidada a pontuar os debates, e, imaginem, favorecia mais os outros do que o seu PSD, imaginem. O discurso também é muito redondo e os amores saltam entre Mário Soares e Cavaco Silva, o que prova sem dúvida alguma bipolaridade ou pouco à vontade em arranjar inimigos na política. Soares e Cavaco serão sempre antagónicos. Ou gostamos de um ou do outro, isto, politicamente e enquanto governantes.                 Pobre Portugal > José Manuel Pereira: Desculpe, o senhor está a ter alucinações? É que não vejo nenhum comentário a “ofender; intimidar; ser grosseiros”, nem “ameaças e tentativas de cancelamento”. Pode-me indicar, por favor, qual o comentário que tem as características que acabou de enunciar. Não será que é o senhor quem está carregado de ódio por quem pensa diferente da colunista e de si?               Fernando Cascais: Se um tipo seguisse as recomendações de leitura dos colunistas do Observador ficava completamente maluco e teria um verão e umas férias piores do que uma estadia num campo de concentração. Recomendem livros normais para pessoas normais que se leiam entre duas banhocas no atlântico ou na piscina. Custa muito? Aqui em cima da mesa para arrumar que se lê de uma penada (dois dias no máximo com muitos mergulhos à mistura); Os Olhos da Escuridão de Dean Koontz, tão bom ou mesmo melhor do que Stephen King.

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