Mas nem tudo são perdas, nestes assassinatos assim, o martírio até dá fama, veja-se a Joana d’Arc, no nosso caso ocidental tão ilustre. Mas o mal é que Netanyahu procrastina – digo, as negociações para paz com o Hamas. Os assassínios políticos, para mais, «criam bloqueios à “paz”, que “precisa de parceiros sérios e uma posição global contra o desrespeito pela vida humana”.»
Irão e Hamas "humilhados" com
a morte de Ismail Haniyeh. Grupo islâmico resiste, mas perdeu "cabeça da serpente"
Falha de segurança "embaraçosa" do Irão
levou à morte de um dos líderes políticos do Hamas. Teerão não quer escalada,
mas promete retaliar e deverá atacar Israel. Cessar-fogo em Gaza mais longe.
JOSÉ CARLOS DUARTE: Texto
OBSERVADOR, 31
jul. 2024, 22:204
Índice
“O embaraço iraniano” e os espiões israelitas
Negociações para um cessar-fogo congeladas?
O
regime iraniano tinha convidado esta quarta-feira os principais líderes dos movimentos
que integram o eixo de resistência —
o palestiniano Hamas, o libanês Hezbollah para assistirem à tomada de posse do novo
Presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, em Teerão.
O convite não era propriamente
surpreendente, tendo em conta as ligações daqueles grupos islâmicos ao regime
do Irão. Não obstante, o desfecho acabou por se revelar abrupto e manchar o
evento: na capital
iraniana, o líder político no exílio do Hamas, Ismail Haniyeh, foi assassinado.
Israel
não confirmou publicamente a autoria da morte de Ismail Haniyeh e recusa-se a
prestar comentários sobre o assunto, uma prática habitual da Mossad. Nem num
discurso à nação esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita, Benjamin
Netanyahu, reivindicou o ataque. Contudo,
é quase certo que os serviços secretos israelitas estiveram por trás
deste ataque. O
chefe de executivo já tinha dado luz verde, no início do ano, para um
plano que tinha como objectivo matar os líderes do Hamas no estrangeiro. Segundo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, a
luta contra o grupo islâmico é “internacional”, incluindo os “terroristas em
Gaza” e “aqueles que voam em aviões caros”.
Por
sua vez, o Hamas não perdeu tempo em apontar o dedo a Telavive,
dizendo que o assassínio do líder político do grupo islâmico se deveu a um
“ataque sionista traiçoeiro”. E prometeu
uma retaliação, garantindo que não passará “impune”. O regime iraniano respondeu na mesma linha.“Com esta acção, o regime
sionista criminoso e terrorista prepara o terreno para uma punição severa
para si próprio. Consideramos que é nosso dever vingar o seu sangue, já que foi
martirizado no território da República Islâmica do Irão”, assinalou o líder
supremo do Irão, o aiatola Ali Khamenei.
▲ Aiatolá Ali
Khamenei promete retaliação STR/EPA
Em termos operacionais, este ataque foi um sucesso em toda a linha para
o governo israelita. Para além de
eliminar um dos seus maiores inimigos na liderança do Hamas, Telavive expôs as
vulnerabilidades defensivas do Irão, que não conseguiu proteger os “convidados”
para a tomada de posse. Há especialistas que falam mesmo numa “humilhação” para
o regime iraniano. Em declarações ao Wall Street Journal, Sanam Vakil, especialista
no Médio Oriente pertencente ao think
tank Chatham House, assinalou que este ataque “humilha os iranianos e mostra as falhas nos seus
mecanismos de segurança e de serviços secretos”.
Adicionalmente, Israel
também consegue eliminar uma das “cabeças da serpente” do Hamas, como lhe
chamou o rabino Shmuel Eliyahu. Enquanto líder político no exílio, mais concretamente no Qatar,
Ismail Haniyeh era um dos políticos mais importantes e influentes do grupo
islâmico. A sua morte debilitará o Hamas, não sendo claro ainda quem será o seu
sucessor.
Apesar do sucesso estratégico que Israel
obteve nesta operação, a morte
de Ismail Haniyeh pode levar a um aumento de tensão, que pode afectar todo o
Médio Oriente. “Estamos preparados para todos os
cenários”, assegurou esta quarta-feira Benjamin Netanyahu. Em abril, após um ataque ao complexo
diplomático iraniano na Síria, Teerão lançou uma extensa ofensiva aérea com
recurso a mísseis — grande maioria acabou interceptada pelos sistemas de defesa
aéreos israelitas. Qual será a resposta do Irão desta vez? Por agora, o
New York Times adiantou que as
autoridades iranianas vão atacar directamente território israelita.
“O embaraço iraniano” e os espiões israelitas
Mick
Mulroy, antigo membro da CIA e ex-conselheiro durante a administração Trump,
não tem dúvidas de que este assassínio do líder do Hamas é um “embaraço
absoluto” para o regime iraniano.
“Ismail Haniyeh era seu convidado. Isto foi uma falha
completa da sua segurança”, disse ao Washington
Post, teorizando que Israel teria informações confidenciais que lhe permitiram
levar a cabo este ataque em Teerão.
Em
concreto, Israel terá atacado o quarto onde dormia esta madrugada (o ataque foi
às 2h00 em Teerão) Ismail Haniyeh com um míssil de longo alcance, ainda que não
se saiba se foi lançado desde território iraniano, ou se do estrangeiro. De acordo com o vice-líder do Hamas em Gaza, Khalil Al-Hayya,
que citou testemunhas que estiveram no local, o quarto onde dormia o
responsável do grupo islâmico ficou completamente destruído.
O
secretário-geral da Jihad Islâmica Palestiniana, Ziad Nakhaleh, teve um
desfecho diferente de Ismail Haniyeh.
Embora estivesse alojado no mesmo edifício que o líder do Hamas, estava
noutro piso, para onde o
míssil não foi direcionado. Acabou, por conseguinte, por sobreviver.
▲Israel terá atacado o quarto onde dormia esta
madrugada (o ataque foi às 2h00 em Teerão) Ismail Haniyeh com um míssil de
longo alcance . DALATI NOHRA HANDOUT/EPA
À Agence France-Presse, a vice-presidente do think tank Institut
de recherche et d’études Méditerranée
Moyen-Orient, Agnes
Levallois, considera que o facto de os “iranianos não terem sido capazes de
parar este assassínio é muito embaraçoso”. A especialista explica
que este ataque revela igualmente como existem espiões israelitas que conhecem
bem os serviços de informações iranianos. “Este
assassínio mostra que os serviços secretos israelitas estão bem treinados.”
O Hamas vai resistir?
Desde o dia 7 de outubro de 2023, quando
começou a guerra na Faixa de Gaza, que quase 40 mil pessoas, vários altos dirigentes militares e políticos
do grupo islâmico foram eliminados — e este é um dos principais objectivos
das autoridades israelitas. Segundo conta a Reuters, o
ministro da Defesa tem colado no seu gabinete fotografias dos comandantes do
Hamas. À medida que são mortos, Yoav Gallant coloca uma cruz vermelha
por cima dos seus retratos.
“Destruir o Hamas”. A par de trazer os
reféns que ainda permanecem na Faixa de Gaza “de volta a casa”, este é o principal objectivo de Israel
nesta guerra, algo que foi reafirmado pelo primeiro-ministro israelita esta
quarta-feira.
Todos
os objectivos que alcançámos só foram possíveis porque não desistimos, porque
tomámos decisões corajosas apesar das muitas pressões, a nível nacional e do
exterior”, garantiu Benjamin Netanyahu.
Face a esta pressão israelita, o Hamas tem conseguido sobreviver,
ainda que tenha perdido nos últimos meses altos dirigentes, tais como
Ibrahim Biari (responsável por supervisionar as operações militares no norte da
Faixa de Gaza), Saleh al-Arouri (que servia como interlocutor entre o Hamas e o
Hezbollah) ou Marwan Issa (vice-comandate do Hamas). Israel presume igualmente
que Mohammed Deif, o líder militar do Hamas em Gaza que preparou os ataques de
7 de outubro, esteja morto, mas o grupo islâmico nega essa informação.
Neste momento, o nome
mais influente do Hamas ainda vivo é Yahya Sinwar, o líder político do grupo
islâmico na Faixa de Gaza e que estará escondido em túneis. Perante
todos estes revezes, o Hamas terá capacidade para resistir? À RTVE, Manuel Torres, professor catedrático de Ciência
Política na Universidade Pablo de Olavide, esclarece que o “desaparecimento de um líder é sempre um
momento muito sensível para qualquer organização terrorista, porque abre um
período de incerteza sobre a sucessão”.
“Mas grupos como o Hamas estão muito
institucionalizados e nenhum dos líderes é insubstituível”, aponta
ainda Manuel Torres. Já Azzam Tamimi, analista no portal Middle East Eye,
clarifica que para muitos militantes do Hamas tornar-se um mártir
“não é uma perda”: “Na
doutrina islâmica, o martírio é um dos desfechos com sucesso na luta pela
verdade e justiça; a outra é a vitória”.
Certo
é que, ao longo da história do movimento considerado terrorista pelo
Ocidente, vários dirigentes morreram e foram
rapidamente substituídos. A própria
estrutura do Hamas está desenhada tendo em conta esse pressuposto. Como sinalizou ao New York Times
Azzam Tamimi, a liderança do grupo islâmico sabe que “pode
desaparecer a qualquer momento, porque pode ser morta, presa ou deportada”. Por consequência, foi desenvolvido“um
mecanismo de transferência rápido”
do controlo das operações militares.
A possível resposta do Irão
Se o Hamas vai resistindo, o
Irão prometeu uma retaliação e já está a planeá-la, confirmou o deputado Payman Falsafi, assegurando que o assassínio do “mártir Ismail
Haniyeh é um acto que vai levar ao arrependimento” por parte de Israel.
De acordo com o New York Times, o aiatolá Ali Khamenei ordenou que vai atacar directamente o território israelita. Segundo
apurou o jornal norte-americano junto de fontes iranianas, poderá tratar-se
de uma combinação de ataques com drones e mísseis em alvos militares nas
proximidades de Tel Aviv e Haifa, salvaguardando-se alvos civis. Ou então,
a missão fica para os seus aliados, como o Hezbollah, os houthis e grupos
xiitas. Não se sabe, todavia, quando é que será levada a cabo a ofensiva,
podendo demorar alguns dias.
▲ Ataque
iraniano a Israel em meados de abril de 2024 Anadolu via Getty Images
“O embaraço
iraniano” e os espiões israelitas O Hamas vai resistir?A possível resposta do
Irão
É um cenário idêntico ao que
ocorreu há quatro meses. Israel atacou, a 1 de abril, o complexo diplomático
iraniano em Damasco, o que causou a morte a sete comandantes da Guarda
Revolucionária iraniana — e dois dos quais altos comandantes. Após duas semanas
com o “dedo no gatilho”, só a 14 de abril é que Teerão reagiu.
Em todo o caso, tal como aconteceu em
abril, dificilmente se assistirá a uma guerra total no Médio Oriente. Como escreveu o jornalista do Financial Times Andrew England, o Irão não quer entrar num “conflito directo com
Israel ou os Estados Unidos”. “O principal objectivo” do regime
passa antes pela “sobrevivência da república”, o que significa continuar uma espécie de
guerra de procuração contra Israel “longe das fronteiras” do país, usando os
grupos como o Hamas ou o Hezbollah para esse efeito.
Apesar de uma
guerra directa entre os inimigos Irão e Israel ser bastante improvável, isso não
significa que a situação esteja controlada. “Eu não penso que o Irão vá para a guerra por causa da morte de um
líder do Hamas”, sintetiza Mairav Zonszein, analista do think tank International
Crisis Group ao Wall Street Journal. Ainda assim, a especialista avisa que “definitivamente” vai “haver uma resposta
iraniana”.
"Eu
não penso que o Irão vá para a guerra por causa da morte de um líder do Hamas"
Mairav Zonszein, analista do think tank International Crisis Group
Negociações para um cessar-fogo
congeladas?
Independentemente
de qual seja a resposta do Irão, algo parece certo. As negociações
para chegar a um cessar-fogo deverão ser, nos próximos tempos, interrompidas
entre as duas partes. A Casa
Branca realçou recentemente que o Hamas e Israel estavam
mais “próximos do que nunca” de terminarem o conflito com um acordo. Sem embargo, dirigentes do grupo
islâmico acusaram Benjamin
Netanyahu de “procrastinar” e levar a um “impasse” nas negociações ao colocar
“novas condições”.
Ora,
após a morte de Ismail Haniyeh, é provável que as negociações para um cessar-fogo fiquem congeladas. Mohammed
bin Abdul Rahman Al Thani, primeiro-ministro do Qatar, país que tem
servido como mediador, queixou-se
no X (antigo Twitter) que “assassínios políticos” não resolvem a
situação e criam bloqueios à “paz”, que “precisa de parceiros sérios e uma
posição global contra o desrespeito pela vida humana”.
À CNN internacional, uma fonte conhecedora das negociações
comentou que o assassínio de Ismail Haniyeh pode mesmo “complicar as
conversações”, isto porque aquele líder político era um dos mais
empenhados, no seio da liderança do Hamas, no objectivo de alcançar um
cessar-fogo. “Ele era alguém que via o valor de se chegar a um acordo e
era fundamental para ultrapassar certos bloqueios”, explica a mesma fonte.
Um
cenário de paz entre Hamas e Israel ainda parece longínquo. O governo
de Benjamin Netanyahu não desiste do objectivo de “destruir” o grupo islâmico,
que vai resistindo com o apoio do Irão e cujos militantes se adaptaram a
viver entre a vida e a morte. Já
entre Teerão e Telavive, as tensões mantêm-se; é difícil o jogo de equilíbrio
com o intuito de que o Médio Oriente não seja arrastado para uma guerra total.
Conflito Israelo-palestiniano Mundo IRÃO MÉDIO ORIENTE ISRAEL HAMAS
PALESTINA
COMENTÁRIOS (de 4)
Henrique Nobre: O MOSSAD redimiu-se
exemplarmente da falha catastrófica do ano passado. Bravo!
Jorge Pereira: Um dia duplamente FELIZ para
os direitos do homem, o humanismo, a liberdade, a democracia, a civilização
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