Que a lei da maioria, por ser a mais forte, visto ser da maioria, seja a que deva impor-se, sem sequer fundar-se, as mais das vezes, sobre o saber da minoria – a que mais leu ou estudou os que, porque analisaram, souberam demonstrar…
A vontade geral
Quando nos juntamos em assembleia
para decidir, não devemos tomar uma posição considerando os interesses
próprios, mas devemos verificar se a proposta está de acordo com o interesse da
comunidade.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de
Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 12
ago. 2024, 00:152
1. O apelo comunitário
Permitem-me que regresse a Jean-Jacques Rousseau? Continua a
parecer-me que a melhor maneira de compreender as mudanças que estão a ocorrer
nas sociedades ocidentais é conhecendo o seu pensamento. Afinal, se a história
das ideias se encontra marcada por constantes revivalismos, importa notar como,
depois de derrotadas pelo liberalismo, as ideias de Rousseau são hoje cada vez
mais frequentes.
A verdade é que, apesar de ter vivido em
pleno século das Luzes, o pensamento de Rousseau é mais bem descrito como uma
espécie de proto-romantismo, projectando ideias que seriam influentes no século
seguinte. Pensemos na defesa de
uma sabedoria pré-racional e na desconfiança face à Razão e ao Progresso; na
prevalência da pureza das emoções e dos sentimentos perante a falsa
intelectualidade das Luzes; na ligação à natureza e a uma vida simples contra a
imoralidade das grandes cidades. Pensemos na dimensão comunitarista do
espartano Rousseau: sim, porque era Esparta que cativava a admiração de Rousseau,
não Atenas.
Sejamos justos. Considerando a
desestruturação actual das sociedades ocidentais, não é surpreendente que
encontremos relevância nas ideias de Rousseau: afinal, as sociedades necessitam
de um âmago comunitário para poderem funcionar de modo saudável, partilhando
recursos e responsabilidades sociais para além da letra da lei, e a democracia
exige um caldo cultural comum para ser possível decidir colectivamente um projecto
futuro. Uma cidade onde as pessoas vivem apenas centradas nos seus interesses,
evitando olhar os outros nos olhos e não se interessando pelo que é comum, pode
existir enquanto local de negócios e tribunais, mas nunca conseguirá garantir
uma vida boa, como diria Aristóteles. Neste sentido, a visão comunitarista de
Rousseau parece responder às ânsias humanas naturais de pertença e comunidade.
2. A vontade geral
Ora, de acordo com o famoso Contrato
Social de Rousseau, aquele
sentido de pertença traduzir-se-ia num mecanismo de vontade geral: as leis
seriam aprovadas pelos cidadãos, reunidos em assembleia, considerando o bem
comum – e seria através desta participação que recuperaríamos a liberdade
perdida do estado natural. Ser verdadeiramente livre, para Rousseau, é ser
autor das próprias leis, pelo que o filósofo recusa o mecanismo representativo
que faz com que os ingleses sejam livres apenas de 4 em 4 anos.
Este aspecto dá origem a dúvidas legítimas e Rousseau não se esquiva
a reconhecê-las: “a questão é saber como pode um homem ser livre e
forçado a conformar-se a vontades que não são as suas. Como podem os opositores
ser livres e sujeitos a leis às quais não deram o seu consentimento?”
Notemos a sua resposta:
“O cidadão dá o seu
consentimento a todas as leis, mesmo às que se aprovam contra a sua vontade e
mesmo às que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos
os membros do Estado é a vontade geral: é graças a ela que são cidadãos e
livres.”
Aparentemente, subjaz a este raciocínio
a lógica democrática de que a lei aprovada por maioria obriga todos os cidadãos,
mesmo aqueles que dela discordam. Mas, na verdade, quando Rousseau fala em
vontade geral está a atribuir-lhe um sentido
muito específico: quando nos juntamos em assembleia para decidir, não devemos
tomar uma posição considerando os interesses próprios, mas devemos verificar se
a proposta sob análise está de acordo com o interesse da comunidade. É esse
exercício que somos convidados a fazer e quando um de nós assume uma posição
que não está de acordo com a maioria, isso “nada mais prova senão que me enganei.”
(itálico meu)
Eis
o âmago do argumento rousseauniano: quando prevalece a opinião contrária à
minha (i.e., quando a maioria decide de modo diferente), isso não significa que
a minha posição resulta de um entendimento minoritário, mas legítimo; antes
significa que me enganei na percepção do bem comum e que, por isso, a minha
posição está errada.
É
este raciocínio que nos permite compreender a dimensão iliberal do pensamento
de Rousseau: ao afirmar que a opinião contrária manifesta o engano do cidadão,
o argumento de Rousseau deslegitima as diferenças de opinião e o pluralismo. O
bem comum e os valores sociais não estão abertos a diferentes interpretações e
entendimentos pelo que, quando não votamos ao lado da maioria, as nossas
opiniões devem ser condenadas, penalizadas, ostracizadas.
Rousseau
é, aliás, muito claro quanto às ideias liberais de desacordo, debate e troca de
ideias:
“Quanto mais reina o consenso nas
assembleias, isto é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, mais
a vontade geral é dominante. Mas os longos debates, as dissensões, o tumulto
anunciam o ascendente dos interesses particulares e o declínio do Estado.”
3. A vitória de Rousseau?
Os
tempos sombrios que vivemos levam-nos a encontrar recorrentemente este espírito
rousseauniano. É o que acontece no contexto da União
Europeia, quando se recusam outros entendimentos do projecto europeu, do seu
alcance e dos seus objectivos, considerados ilegítimos por contrariarem o
consenso ditado pelo pensamento progressista.
Também é possível encontrar o espírito
de Rousseau em certas publicações que recusam a legitimidade de entendimentos
diferentes sobre o bem comum e os valores morais. Um
bom exemplo disso é o manifesto recentemente publicado pelo ex-ministro da
educação, João Costa. O texto apresenta pouca densidade
argumentativa (apesar de, ou talvez por causa disso, recorrer muito ao negrito
e ao sublinhado), mas a lógica subjacente é facilmente identificável: quem não
concorda com a visão do autor está a promover discurso de ódio,
descontextualização e desinformação ou, numa versão mais piedosa, é
simplesmente ignorante. Aos
detentores da razão cabe “acender as luzes para que o terror se dissipe”. O espírito de Rousseau não poderia estar
mais presente: se não estás de acordo comigo, a tua posição é ilegítima.
Recorro a um último exemplo
demonstrativo da lógica rousseauniana da vontade geral: de acordo com
notícia do Público, alguns munícipes e organizações conimbricenses contestaram a atribuição da Medalha de Mérito de Solidariedade
Social à Associação de Defesa e Apoio à Vida, uma das associações fundadoras da
Federação Portuguesa pela Vida e que se opõe à legalização do aborto e da
eutanásia. Para o movimento feminista Rede 8M, reconhecer o
trabalho social meritoso desta associação seria preocupante, uma vez que “em
2007 a população [de Coimbra] votou no referendo com 66,3% a favor da
legalização do aborto. De resto, todas as freguesias votaram no Sim”. Rousseau
não o diria melhor: a decisão da maioria em determinado sentido retira
legitimidade aos que têm uma opinião contrária. Se a maioria se pronunciou, a minoria
deve ser silenciada, proscrita, condenada. Afinal, a sua posição não é apenas
diferente – está errada.
É possível que Rousseau esteja mais de
acordo com a nossa natureza do que o projecto liberal. Afinal, resistir à
tentação de impor a nossa verdade aos outros é um exercício extremamente
exigente – e vemos cada vez mais pessoas incapazes de o praticar. Mas com
todos os problemas manifestos do liberalismo, não é o pluralismo político um
valor pelo qual valha a pena viver.
COMENTÁRIOS
José B Dias: E por esta caixa de comentários podem apreciar-se bons exemplos
...
Alcides Longras: Sem dúvida, esta interpretação de que a minoria estará certamente
errada é visível ao longo de episódios tão díspares como o julgamento de
Galileu, as revoluções e conflitos do século XX, a gestão do Covid ou uma
simples assembleia de condóminos. E foi bem articulada por Einstein quando 100
cientistas escreveram um manifesto contra as suas teorias, a sua suposta
resposta foi que "se ele estivesse errado, bastaria um". O facto é que vivemos numa sociedade que
considera a verdade como uma acto de suposta democracia ou fruto de alguma
decisão de uma autoridade terrena (eleita ou não). E é um tremendo perigo
pensar assim. Para todos, façamos parte de minorias ou maiorias. O
delegar da razão sobre o que é genuíno torna todos susceptíveis de serem
vítimas de loucuras irresponsáveis, míopes ou simplesmente egoístas, rotuladas
de "bem comum". E já pereceram milhões sob esse rótulo.
A. Samora: Minoritário ou errado? Quando há eleições aparecem na
televisão umas criaturas com ar muito
inteligente que sabem interpretar e explicar-nos o que o eleitorado quis dizer.
Ora, o eleitorado não existe. Ou melhor: existe na cabeça deles. O que há
são milhares ou milhões de cidadãos votantes que, ao colocarem a cruzinha num
determinado quadrado, reduzem a esse gesto todo um mundo de opções e
sentimentos que irão na cabeça e coração de cada um deles naquele dia e àquela
hora. O acto de votar é muito reducionista. Mas considerando os resultados
eleitorais, contando votos, fazendo médias e medianas, avaliando tendências e
levando em conta o que se sabe sobre os protagonistas que foram votados,
deduz-se e constrói-se um identidade, o tal eleitorado, cuja expressão revela
uma personalidade, uma maneira de ser, que condiz com a necessidade de
entendimento e a racionalidade dos tais explicadores e analistas. Onde é
que já vai a vontade, a cultura, o sentir e tudo o mais de cada um dos
eleitores? E como é que isso podia alguma vez ser ponderado?A vontade colectiva
é muito reducionista. Ela é de um colectivo. Não é, nem pode ser a dos membros
(de cada um) desse colectivo. Ela é uma expressão – uma unidade de significado
– de uma linguagem própria de muitos cidadãos em assembleia, de acordo com
regras muito próprias. Uma das funções do sistema político (tem muitas mais)
é precisamente a de traduzir para linguagem política (a única que o sistema
político consegue reconhecer para traduzir em acção e decisões políticas)
aquilo que serão os sentimentos, anseios, opiniões, do comum dos cidadãos da
chamada sociedade civil. Mas voltemos à relação entre maioria e
verdade. Diz a autora, interpretando Rousseau,
que “Se a maioria se pronunciou, a minoria deve ser silenciada,
proscrita, condenada. Afinal, a sua posição não é apenas diferente – está
errada. ”Ora, nada mais errado! É que falta aqui uma variável: a legitimidade.
Não se pode confundir ou tornar sinónimos, verdade e legitimidade.
A
vontade da maioria só foi tornada dominante porque, sendo da maioria, foi
obtida legitimamente. E
o que a legitima é o processo, o procedimento da sua obtenção. O certo ou
o errado, a verdade ou a falsidade, são aspectos de outra natureza que não são,
nem podem ser aferíveis pelo número de votos em assembleia. Uma opinião que se pretenda tornar uma verdade
dominante não pode, do mesmo passo, impugnar as condições da sua ascensão à
condição maioritária. Seria um contra-senso e um absurdo. O sistema político
só é democrático se e enquanto considerar as opiniões minoritárias diferentes,
sem as proscrever nem condenar. Mas sobretudo sem as considerar erradas.
Porque isso ele não tem meio de aferir. expressão revela uma personalidade,
uma maneira de ser, que condiz com a necessidade de entendimento e a
racionalidade dos tais explicadores e analistas. Onde é que já vai a vontade, a
cultura, o sentir e tudo o mais de cada um dos eleitores? E como é que isso
podia alguma vez ser ponderado? A vontade colectiva é muito
reducionista. Ela é de um colectivo. Não é, nem pode ser a dos membros (de cada
um) desse colectivo. Ela é uma expressão – uma unidade de significado – de uma
linguagem própria de muitos cidadãos em assembleia, de acordo com regras muito
próprias. Uma das funções do sistema
político (tem muitas mais) é precisamente a de traduzir para linguagem política
(a única que o sistema político consegue reconhecer para traduzir em acção e
decisões políticas) aquilo que serão os sentimentos, anseios, opiniões, do
comum dos cidadãos da chamada sociedade civil. Mas voltemos à relação entre
maioria e verdade. Diz a autora, interpretando Rousseau, que “Se a maioria
se pronunciou, a minoria deve ser silenciada, proscrita, condenada. Afinal, a
sua posição não é apenas diferente – está errada. ”Ora,
nada mais errado! É que falta aqui uma variável: a legitimidade. Não se pode confundir ou tornar sinónimos, verdade e legitimidade. A vontade da maioria só foi tornada dominante
porque, sendo da maioria, foi obtida legitimamente. E o que a
legitima é o processo, o procedimento da sua obtenção. O certo ou o errado, a
verdade ou a falsidade, são aspectos de outra natureza que não são, nem podem
ser aferíveis pelo número de votos em assembleia. Uma opinão que se pretenda tornar uma verdade dominante não
pode, do mesmo passo, impugnar as condições da sua ascensão à condição
maioritária. Seria um contra-senso e um absurdo. O sistema político só é
democrático se e enquanto considerar as opiniões minoritárias diferentes, sem
as proscrever nem condenar. Mas sobretudo a
de comentários podem apreciar-se bons exemplos ...
Jose Ferreira > A. Samora: Bravo, basta
ver como a cada 4 anos, dois ou mais partidos vendem as suas verdades. No patológico quadro tuga, sem um módico de
continuidade entre legislaturas (caso Passos X Costa), a fazer triunfar os
'interesses pessoais' de cada um (o lote de ministros e ajudantes do PS com
emprego de deputados). Como neste já
antigo apontamento (sublinhados meus):
«Se
é que existe uma tal “consciência colectiva”, não faço a menor ideia de como
comprovar a sua existência. Aqueles que apelam para uma consciência colectiva
como «a vontade do povo» fazem-no geralmente para servir os seus interesses ou
as suas opiniões políticas ou sociais» “O
código cósmico” (a física quântica como linguagem da natureza )Heinz R. Pagels,
Gradiva (Lisboa).
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