Emergindo de um falso sentimento de fraternidade
social, hipócrita e distorcido…
A “desinformação” e a informação deles
O conceito de “desinformação” é um
primor. Em primeiro lugar, é espantoso que o Estado decida o que a ralé deve
afirmar ou consumir. Em segundo, que simulacros de jornalistas celebrem a
censura.
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 10 ago. 2024, 00:222
“O crime de incitamento ao ódio racial
envolve a publicação ou a distribuição de material ofensivo ou abusivo, que
pretende ou é capaz de alimentar o ódio racial. Assim, se alguém “retweeta”
isso, se partilha isso, potencialmente comete esse crime. E nós temos agentes da polícia exclusivamente dedicados a vigiar as
redes sociais. O
trabalho deles é procurar material do género, e depois accionar processos de
identificação, detenções e por aí fora. É algo de muito sério. As pessoas
pensam que não estão a fazer nada de mal. Estão. E sofrerão as consequências.”
Desculpem a longa citação, a qual, só
para que fique claro, não é o péssimo monólogo de um péssimo vilão num péssimo
filme. Ou, bem vistas as coisas, se calhar é. O autor das afirmações acima chama-se Stephen
Parkinson e, desde
Novembro de 2023, manda no Crown
Prosecution Service, uma
espécie de Ministério Público da Inglaterra e Gales. As
crianças e os ingénuos terminais acharão louváveis as intenções do homem, que
afinal, coitadinho, apenas quer
impedir o “racismo” e punir os “racistas”. Mas quem não se ri à menção
da palavra “hemorróidas” percebe que o objectivo é outro.
O
objectivo do sr. Parkinson é proibir a divulgação de opiniões e informações não
devidamente filtradas sobre a guerra civil que se cozinha na terra dele. A
propósito de guerra civil, Elon Musk
usou a expressão no mesmo contexto e inspirou uma onda de indignação e
exigências para que se abolisse o Twitter e, idealmente, o próprio Musk. Na Venezuela, o ogre local já atingiu
metade dos desígnios (e, a fim de alcançar a metade restante, desafiou o
bilionário americano para um encontro de porrada com transmissão ao vivo). O
Reino Unido vai a caminho, e por enquanto desatou a prender cidadãos por
“espalharem desinformação”.
O conceito de “desinformação” é um
primor. Em
primeiro lugar, é espantoso que seja o Estado, fonte suprema de confiança, a
decidir o que a ralé deve afirmar ou consumir. Em segundo lugar, é
extraordinário que simulacros de jornalistas saltitem de alegria perante a
imposição da censura. Em terceiro lugar, é de censura que se trata, e um regime
onde vigora a censura não é um regime democrático. Ao
reduzir a questão a um confronto da “verdade” com a “mentira”, a ortodoxia no
poder esquece-se de referir um pequeníssimo pormenor: o de que
a decisão acerca do que é verdadeiro é sempre deles, e só nós mentimos. Quando os factos dependem de quem detém a
força, os factos morreram. E a liberdade também.
O sr. Parkinson fala em “ódio racial”. Na
verdade, que como se vê é um anacronismo, o
que, nas entrelinhas do seu cérebro funcionário, o sr. Parkinson realmente diz
e realmente deseja erradicar é “frases,
imagens, palpites desagradáveis para com muçulmanos, certas minorias étnicas ou
peculiaridades sexuais ou físicas que esteja na moda acarinhar”. A título de exemplo, não tenho notado as
autoridades do Reino Unido demasiado preocupadas com o ódio aos judeus, no
recato da internet, nos protestos de rua e, às vezes, no lombo do judeu mais à
mão. É possível que considerem
os apelos à extinção de Israel e ao extermínio dos seus habitantes uma manifestação
de carinho e, sobretudo, uma aspiração genuína e factualmente inatacável. Não
sei. Eles, por definição, é que sabem. E decidem em conformidade.
Se tamanha miséria se resumisse ao Reino Unido, a miséria seria
suportável: não ponho lá os pés há 18 anos, e há 22 que evito Londres com
intenso zelo. O que me
interessava naquelas paragens ou desapareceu ou prepara-se para desaparecer ou
resiste em doses insuficientes. A chatice é que os ataques à civilização
não se esgotam ali. Na América, país com que mantenho uma relação próxima e
tumultuosa, há agora um candidato a vice-presidente convicto de que a liberdade
de expressão não inclui o “discurso de ódio”, ou seja, o que ele e os comparsas
dele decidem ser “discurso de ódio”. Suponho que, se a dona Kamala for eleita em Novembro, explicar ao
sr. Tim Walz que os rapazes não menstruam engrossará a lista de crimes
passíveis de cadeia. Porém, incendiar e saquear cidades a pretexto de
“injustiça social” candidatará o criminoso a uma medalha por actos cívicos.
Os ventos gelados da censura,
naturalmente seleccionada, e da submissão, evidentemente orientada, sopram no
Ocidente inteiro, por acaso o pedaço do mundo que, após séculos de cabeçadas,
conseguira arranjar um lugar humano para o indivíduo na sociedade, e um
equilíbrio sofrível entre direitos e obrigações. Foi, compreendemos hoje, um equilíbrio precário, que durou por alto
meia dúzia de décadas e deixará saudades. Minto: não deixará saudades a toda a
gente. É escusado visitar o estrangeiro para sentir o apetite de tantos por
restrições, mordaças, castigos. Portugal, o Portugal institucional e o Portugal
anónimo que, da esquerda à direita, se manifesta nas “caixas” de comentários,
rebenta de apelos a tempos menos livres. Talvez essas criaturas imaginem que,
no divertido exercício da opressão, lhes caberá a parte de cima, e não lhes
ocorre a enorme probabilidade de acabarem em baixo.
Nota: Por férias do
autor, está crónica regressa a 31 de Agosto.
COMENTÁRIOS (de 5):
Maria Paula Silva: Há 4 anos suspeitava eu que
houvesse uma censura velada. No 1º programa do Comité Central o AG apelou a que
enviássemos questões e eu enviei precisamente essa. A sua resposta foi que lhe
parecia claro que a censura já não era velada, mas sim desvelada. Nós
(os da minha idade) que lutámos pela liberdade de expressão, faz-nos muita
confusão como chegámos de novo aqui. Regredimos? Quanto ao excesso de
informação e de desinformação, há que ser muito selectivo, 1º) porque não há
tempo para digerir tudo, 2º) porque devemos evitar, a todo o custo, deixar que
nos transformem em caixotes do lixo. Quanto a Londres, onde tive uma
experiência de vida fantástica durante 1 ano (1968), estamos plenamente de
acordo. Falta de interesse e até medo.
Espero que
não cheguemos ao mesmo, mas ao ver a decadência generalizada por toda a Europa,
dificilmente escaparemos. Vivemos tempos conturbados e perigosos e é preciso um esforço de lucidez constante para não submergirmos num pantanal ou
lodaçal que vertiginosamente se instala e tudo permeia. Boas férias, AG!
Alexandra Ferraz: Esta decadência acelerada do
Ocidente para o obscurantismo da Idade Média é deprimente... deixámos de ter
estadistas! Tudo se resume a ideologias esquerdopatas... nunca pensei
viver para assistir a um espectáculo tão atrozmente deplorável. Contudo, ainda
me resta uma restiazinha de fé na humanidade 🙏... Boas férias Alberto 🙌🙌
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