Realmente deve ser dispensável, nestes
tempos de tanto porreirismo generalizado, de tanta bondade difundida pelas
almas generosas que querem continuar a difundi-la sem terem que prestar contas do
seu excesso de zelo altruístico geralmente deturpador dos factos, é certo,
requerendo policiamento orientador, à falta de outros serviços mais drásticos ainda,
na condenação dessa tal nova evangelização, segundo o seu próprio evangelho, de
uma doutrina de arrasa-velharias, que os governos medrosos – ou merdosos por
trocadilho inocente, isento de policiamento, filhos de Cristo que todos somos –
aceitam sem chocalhar, ou piar, que é mais doce o piu piu, nosso e deles, o que comprova a dispensa de policiamento.
O que é isso de “defund the police”?
Se temos dificuldade em imaginar um
mundo sem polícia e consideramos aquele apelo violento inaceitável, o problema
é nosso: “não queremos saber disso, queremo-los mortos e queremo-lo já.”
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 26 ago. 2024, 00:0516
1. Ainda a questão antropológica
Continuemos
no domínio antropológico. Afinal, como diz Carl
Schmitt em O conceito do político,
“Poder-se-ia pôr à prova todas as teorias do Estado e todas as ideias
políticas com base na sua antropologia, repartindo-as, de acordo com isso,
segundo elas pressuponham, consciente ou inconscientemente, um homem ‘mau por natureza’ ou ‘bom por natureza’.”
A questão convoca, na verdade, dois
níveis de reflexão. O primeiro é o de saber se existe algo como uma natureza humana a partir da qual
podemos pensar politicamente; o segundo é o de saber se essa natureza é boa ou má. Na segunda
metade do século XX, o pensamento pós-moderno pôs em causa a primeira daquelas
perguntas, considerando que a ideia de natureza humana era meramente resultado
de uma construção filosófica e política. O ser humano seria eminentemente cultural pelo que poderia ser
moldado e reformulado socialmente sem limites (é por essa razão que muitos,
sobretudo na sociologia, optam pelo uso da expressão “condição humana”). Na semana
passada, argumentei que os conhecimentos científicos mais recentes
afastam esta posição pós-moderna e demonstram como as tradições antigas foram capazes de compreender a nossa natureza
(a sua sabedoria é-nos, assim, ainda necessária).
Mas, havendo uma natureza humana, ela
será “boa” ou “má”? Em termos de teoria política, este antagonismo pode
ser pensado a partir de dois autores modernos: por um lado, Thomas
Hobbes, que, no seu Leviatã, defende que o homem é o lobo do homem (em
bom rigor, a afirmação de que o homem é mau implica uma valoração moral que
Hobbes não faz); por outro, Jean-Jacques Rousseau, que, nos seus Discursos e em
Emílio, defende uma bondade natural do ser humano, que seria
corrompida pela vivência em sociedade. A ciência recusa esta divisão: o homem não é naturalmente bom, nem
naturalmente mau – somos, antes, condicionados por diferentes estímulos que nos
levam a comportarmo-nos de uma ou de outra maneira. Basta ver, aliás,
como o nosso cérebro responde a neurotransmissores químicos mais altruístas e
mais egoístas, como explica, de modo divertido, Simon Sinek. E, mais uma vez, dá-se respaldo às velhas
tradições.
Ainda assim, a observação de Schmitt faz sentido: é que aquele
critério é muitas vezes útil para apreciar propostas e posicionamentos
políticos. Consideremos, a esse propósito, um livro publicado muito recentemente
pela ex-jornalista do The New York Times, Nellie
Bowles: Morning After the Revolution:
Dispatches from the Wrong Side of History (será que já
está prevista tradução entre nós?). Não se trata de um trabalho teórico: Bowles é jornalista e o livro consiste
num conjunto de relatos sobre o que aconteceu nos Estados Unidos naquilo a que
podemos chamar os anos woke: as suas notícias são sobre essa
“revolução” e, em especial, sobre como essa revolução falhou. (Este período
é também aquele em que Bowles percebe que já não faz sentido continuar no NYT,
mas regressarei ao livro dela mais vezes.)
2. To kill cops
Os relatos de Nellie Bowles começam com
a ocupação do bairro Capitol Hill, em Seattle, naquilo que ficou conhecido como
CHAZ (Capitol Hill Autonomous Zone) e, posteriormente, CHOP (Capitol Hill
Organized Protest). Na sequência
dos protestos motivados pela morte de George Floyd, em junho de 2020, e depois
de vários momentos de conflito entre manifestantes e polícia, movimentos com
ligação ao Black Lives Matter (BLM) e aos Antifa (movimento anárquico e
descentralizado, antifascista e antirracista) ocuparam uma parte da cidade de
Seattle, onde a polícia não podia entrar.
No pensamento do BLM, a ideia
de “defund the
police” (retirar financiamento à polícia para usar esse
dinheiro em políticas de promoção de equidade racial) era já um princípio
basilar – mas as circunstâncias daqueles protestos, enquadrados no confinamento
Covid-19, uniram Antifa e BLM numa reivindicação mais radical: era preciso
abolir a polícia.
Como grupo anárquico radical, os
Antifas sempre consideraram o desaparecimento da polícia como
necessário para se erguer um novo mundo sem autoridades, e aquele contexto
específico permitiu avançar a sua agenda a partir dos protestos BLM. Por seu turno, o BLM aproveitou-se das tácticas de
violência com que aqueles estavam familiarizados para ampliar a sua mensagem. De facto, Bowles é categórica na
afirmação de que foram os Antifas a dinamizar a dimensão mais violenta daqueles
protestos, algo que nem sequer é recusado pelos seus membros: “Encantados
com a recepção calorosa da imprensa, membros casuais Antifas começaram a
divulgar as suas próprias declarações e a aparecer em programas noticiosos, com
os rostos escondidos para manter o anonimato: ‘O uso da violência é uma táctica
para mantermos as nossas comunidades seguras’.”
Entre a bibliografia mais popular deste
movimento, e muito divulgado nas ocupações desse período, encontra-se o texto “I want to kill cops until I’m
dead”, que recusa a
dimensão meramente metafórica: “Os agentes da polícia têm de ser mortos, as
famílias dos agentes da polícia têm de ser mortas, os amigos e apoiantes dos
agentes da polícia têm de ser mortos. E queremos dizer isto em sentido tão
material como imaterial.”
Se temos dificuldade em imaginar um
mundo sem polícia e consideramos aquele apelo violento inaceitável, o problema
é nosso: “não queremos saber disso, queremo-los mortos e queremo-lo já.” Mais do que isso: temos de considerar que
essa limitação imaginativa é resultado de supremacia branca. Na verdade, a
polícia é uma instituição inerentemente racista, criada para manter uma
estrutura de opressão e exploração. Uma sociedade racialmente justa implica uma
sociedade sem polícia, sem pobreza, sem desigualdades e onde os membros da
comunidade cuidam uns dos outros. O crime só existe porque há pobreza, porque
há desigualdade, porque há capitalismo. Eis a visão rousseauniana do homem bom, como nota Bowles: “Chegaram
com uma política baseada na ideia de que as pessoas são profundamente boas,
adulteradas apenas pelo capitalismo, pelo colonialismo, pela branquitude e pela
heteronormatividade. Era uma filosofia inebriante e bela.”
Bela, mas sem correspondência com a
realidade. Algumas cidades, como Minneapolis, decidiram
investir milhões de dólares em programas de “violence interrupter” (interruptores de violência?): homens que andariam pelas ruas, sem
estarem armados nem protegidos, com a missão de intervir em situações de
violência e, através de meios não-violentos como palavras e café, terminar com
a disrupção. As consequências têm sido catastróficas: como Bowles
chama a atenção, estes interruptores de violência não têm sindicatos, não têm
pensões, não têm proteção, não têm armas. E o registo de violência e morte afecta-os muito mais do que acontece
com as forças policiais. Por outro lado, nas cidades que avançaram
programas de defunding, o crime violento aumentou para níveis que não se
registavam há décadas, ao mesmo tempo que o Pew Research revelava que, em
outubro de 2021, apenas 23% dos afroamericanos apoiavam cortes no
financiamento da polícia.
Como sempre acontece, estas agendas
progressistas, defendidas por activistas maioritariamente brancos e de classe
média e alta, acabaram por ser desastrosas para as classes mais pobres, que são
mais susceptíveis ao crime e à violência e são incapazes de contratar segurança
privada (o caso de Cori Bush é sintomático desta hipocrisia). A maioria
acabou por ficar cansada de cidades destruídas em nome de uma ideologia, que
“fazia sentido em todo o lado, menos na realidade”.
Aprendeu-se alguma coisa com tudo isto?
Em julho do ano passado e em celebração do seu décimo aniversário, o BLM lançou
uma campanha para que a mensagem não seja esquecida: It’s still defund the police. Afinal, “Abolition is
liberation”, “Abolition is safety”, “Abolition is
joy”.
3. Abolition is hot
No maravilhoso livro A realidade é
real?, Paul Watzlawick diz-nos: “quando
encontramos uma solução – e quando, enquanto a tentamos encontrar, pagamos um
preço relativamente alto em ansiedade e expectativa – o nosso investimento
nessa solução torna-se tão grande que podemos preferir distorcer a realidade de
forma a acomodarmos a realidade à nossa solução do que sacrificar esta última.”
É um traço da nossa natureza, do modo
como o nosso cérebro funciona e permite-nos compreender por que tantas pessoas
insistem em agendas insensatas e incompreensíveis: investiram tanto da sua energia na formulação de uma proposta, que é
extremamente difícil abdicar dela mesmo quando a realidade lhes diz que a sua
solução não funciona – ou, o que é talvez pior, mesmo quando a maioria das
pessoas discorda dela. E, muitas vezes, isto acontece por se partir de
certos pressupostos teóricos: como achamos que aqueles princípios são
toda a verdade, estamos dispostos a arriscar tudo para mostrar aos outros que
temos razão. Ora, este aspecto é particularmente visível quando o
mundo académico se mistura com o impulso activista – como Bowles capta ao citar
um académico-activista que defende a abolição da polícia: “Acreditar na polícia significa acreditar que as pessoas vão sempre
magoar-se umas às outras, que as pessoas vão sempre roubar. O abolicionista
pergunta: E se isso não for verdade? E se a natureza humana for boa? E se os
crimes acontecerem porque acreditamos que os crimes vão acontecer?”
Se esta perspectiva explica
porque alguns se mantêm agarrados a teorias desgarradas da realidade, não
explica, contudo, a adesão mediática que o movimento contra a polícia obteve na
altura. No seu caminho tentado de compreensão, Bowles
deixa-nos duas pistas relevantes: por um lado, os activistas obtêm prestígio e
… dinheiro, muito dinheiro naquela altura; por outro, afirmou-se entre os “New
Progressives” uma lógica tribal: ou
estás connosco ou estás contra nós; ou colocas a tua voz nos nossos protestos
ou és um inimigo a abater.
Mas
há uma outra justificação, mais real nos nossos dias e provavelmente mais
desconcertante. Num mundo de redes sociais e sinalização de virtude, “Abolition was
hot”: era muito mais excitante do que falar em reformas aborrecidas; era muito
mais atraente parecer revolucionário; parecia muito mais virtuoso estar ao lado
dos justos.
E, por essa razão, muitas figuras com
cargos políticos relevantes apoiaram os protestos e a ocupação de bairros,
promoveram acções de defunding e expressaram o seu apoio a movimentos como o Minnesota Freedom Fund, para
pagar as cauções dos manifestantes detidos durante os protestos de 2020. Foram simplesmente na onda e, quando deixou
de ser hot, esqueceram-se rapidamente do que tinham dito e feito. Este tipo de
atitude diz muito sobre a fraqueza dessas figuras, mas também é revelador da
natureza humana.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS (DE 16)
bento guerra: Estou "out" Rui Medeiros: Claramente
uma das minhas colunistas preferidas deste Jornal, uma lufada de ar fresco de
ideias e pensamento! Parabéns a Professora Patrícia Fernandes e ao Jornal
Observador. Carlos
Chaves: Excelente
texto, obrigado Patrícia Fernandes. No mundo ocidental onde a esmagadora
maioria das pessoas já não luta pela sobrevivência, já não se preocupam com o
que vão comer logo à noite, estes movimentos “hot” ganham grande relevância. E
nem mesmo a constatação do fracasso de muitos deles, evita o aparecimento
de muitos outros. Na minha opinião o sistema de instrução/educação no mundo
ocidental, Portugal incluído, tem sido instrumentalizado pela esquerda “wokista”, o verdadeiro viveiro de todo este
mal!
Manuel
Gonçalves Excelente
artigo acerca do absurdo e das profundas limitações de raciocínio do wokismo. vitor Manuel: Excelente, professora Patrícia Fernandes.
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