A Lucas Pires, espécie de
meteoro que brilhou pelo saber e seriedade, na política portuguesa. Maria João Avillez, uma mulher
de valores e de estéticas, sempre vivamente empenhada na dignificação cultural –
e ética - do país que ama.
Climas, estalajadeiras, livros (e mais
desabafos)
Por agora esta estalajadeira atirará
para um desejado entre parêntesis, a casa, os compromissos, o clima, os
supermercados, os netos e os primos dos netos e levantará voo para outro poiso
no Atlântico
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista,
colunista do Observador
OBSERVADOR, 07 ago.
2024, 00:20
1Há calor. Estamos habituados: é assim.
Embora seja transtornante nunca saber com que se conta, sabemos que esta – como
dizer? – circunstância meteorológica, estacionou nesta região para todo o
sempre. (Não, não são as alterações climáticas, é um exclusivo).
Além da inverosímil diferença entre
podermos passar uma tarde outonal de camisola vestida e no dia seguinte
mergulhar em ondas atlânticas de alto luxo, há uma inverosimilhança mais
caprichosa ainda: sair-se de casa num
dia de sol radioso, chegar a uma praia muito perto e não conseguir ver o mar,
confundido com a espessura do nevoeiro. Ou o contrário: calçar umas
botas para vencer a humidade molhada do jardim e de repente ligarem-nos alguns
amigos beneméritos “há bandeira verde
na praia e está muito calor”. É o tal “exclusivo”
O pintor Almada Negreiros – julgo já ter
contado isto – apesar de tudo tinha mais sorte: muito amigo de um tio-avô com
casa a 50 metros da nossa, vinha passar uns dias estivais que muito lhe
apraziam mas escrevia espantado para Lisboa “aqui o verão nunca nasce antes do meio dia”. Ao menos, mesmo
preguiçoso e desfasado do relógio, o verão… nascia-“lhe”. Nós, é conforme. E há dias em que por pouco não se acende
a lareira
Toda
esta litania que terá entediado o leitor, para dizer que as caprichosas
intermitências climáticas, têm ao menos uma vantagem: numa casa rebuliçosa
ocasionam súbitas ilhas de sossego. A
tribo vai “lá para baixo”, em cima, há uma aparência de normalidade. As ilhas
são escassas para quem continua com compromissos profissionais, mas é como o
clima: também nos habituamos.
Por agora esta estalajadeira atirará
para um desejado entre parêntesis, a casa, os compromissos, o clima, os
supermercados, os netos e os primos e primas dos netos, e levantará voo para outro poiso no Atlântico. Um sossegado momento.
Até a chegada de nova leva neste Agosto que corre.
2Sossego não é de modo algum aquilo a que
se terá entregue Nuno Gonçalo Poças – cronista do Observador – na tarefa imensa
que é a sua biografia de Francisco Lucas Pires que aqui citei na
passada semana, “O Príncipe da Democracia”
(D. Quixote). RECOMENDAMOS
Trabalho de casa, duro, exigente,
permanente, na procura do personagem. Através do que leu, estudou, investigou,
claro. Mas também do que soube ouvir e aprender com os interlocutores “certos”
com quem foi ter. Para além da família, gente que em diversas estações
politicas e circunstâncias pessoais, cívicas, académicas, parlamentares,
politicas, de Lucas Pires, com ele se cruzaram, o defrontaram, a ele se
juntaram, dele se afastaram. Mas que se lembram e “contam”. Que souberam contar”.
Julgo porém que há também muito de
Nuno Gonçalo Poças nestas páginas para além da capacidade intelectual para as
ter escrito: há o seu próprio pensamento sobre a politica, acompanhando com
convicção o de Lucas Pires e seguindo com igual convicção e aplauso essa
trajectória. Seja na sua graça pessoal, no brilho intelectual, no
fulgor (ah “esse” tão amado Grupo de Ofir…”) na determinação da sua vontade política; mas seja também na
ambiguidade que existiu ou na incoerência que também houve (e lembro-me da
perplexidade entristecida em que elas me deixaram na altura).
Seja como for o que interessa aqui é o
modo como o autor foi totalmente
interceptado pela figura de Francisco
Lucas Pires para
depois se apoderar dela. Com um
extremo rigor, minúcia, detalhe; com um quase obsessivo fito de juntar toda a
informação, sobre um político de quem queria saber mais ou saber tudo. Como ele
me disse (desarmantemente) uma vez “a ideia de escrever a biografia surgiu da
vontade de a ler. Como à época, não existia nenhuma, resolvi escrevê-la para me
permitir lê-la depois.”
Lembro-me de boa quantidade destes
factos por os ter testemunhado mas apesar disso e já tantos anos depois, Lucas
Pires e o seu trajecto incomum ficaram mais claros e mais recortados sobre a
sua história e a sua época. Um dia perguntei ao Nuno Gonçalo Poças o que o
tinha aproximado de Francisco Lucas Pires, nesta longa e tão circunstanciada
viagem com ele. A resposta foi inequívoca:
“Com as suas falhas, os seus erros, ele
foi o grande político-intelectual português, e chegou a sê-lo mesmo à escala
europeia. Houve grandes políticos em Portugal nos últimos 50 anos. Houve
intelectuais. Mas nenhum como ele cumulou as duas características e de forma
tão relevante. É um certo tipo de político que não existe hoje, mas de que
talvez o país precise. Falar dele não vale só a pena, como pode mesmo tratar-se
de uma necessidade.”
Hoje? Sim:
“Lucas Pires podia, hoje, ser
a referência política, ideológica, filosófica, senatorial e intelectual de um
espectro largo que caiu nalguma orfandade e que vive muito dependente de
figuras providenciais. Lucas Pires recusava para si próprio essa ideia providencial,
via mais autoridade nas ideias do que nos chefes. Isso podia ter feito de si
algo que o país nunca teve ou teve muito pouco: um Presidente da República
liderante para o país, mais do que para a sua área política, mesmo num sistema
que não é presidencialista.”
Poderia?
3“A Cultura como Enigma” é o
que surpreendentemente nos sugere Guilherme
d’Oliveira Martins. Também aqui
mencionei há dias este seu inspirador livro (Gradiva) prometendo voltar a ele.
Referi-o como um “extraordinário livro de crónicas” que é o
que ele é, antes do mais. Mas tanto mais extraordinário quanto nem se lê assim,
e tratando-se do “já lido” porque publicado anteriormente em jornais, poderia
ter causado preguiça ou distancia. É o oposto: lê-lo é um regalo.
Cada crónica vale por si, dispensando
o “amparo” da presença das outras; a escolha de as juntar e o acerto
literário dessa seleção, tornaram automaticamente mais rico o seu tão
diversificado conteúdo; essa espantosa diversidade de temas e as suas não menos
espantosas abordagens levam-nos connosco pela mão: a natureza humana, a
história, a cultura, as civilizações, a memória, Deus, estão sempre em pano de
fundo, ou á boca de cena. São, têm sido, o seu instrumento de escrita. Talvez
porque haja em Guilherme d’Oliveira Martins qualquer coisa que releva de uma
pessoalíssima forma de encarar a cultura e a história como vivências
obrigatórias e obrigatoriamente partilháveis: além de ser um dos nossos mais
sólidos e completos intelectuais, é um excepcional “transmissor” e muitas
vezes, quase sempre, caleidoscópico. É evidente que a chave desta escrita
está no próprio autor, na erudição que transmite sem alarde, no imenso saber
que expõe naturalmente, nas pessoas que o interpelaram e tão bem define, nos
mundos que conheceu, nos cargos que exerceu cívica e politicamente e de tão
diversa natureza e eis o que nos desvenda uma boa parte deste cidadão exemplar:
ter dado boa conta de si na resposta a diversas chamadas. (Ah já me
faltava esta “cláusula” particular: Guilherme d’Oliveira Martins ter feito tudo
isto – escrever, intervir, governar, debater, apresentar, dirigir… em vários
sítios ao mesmo tempo. Julgo já não haver dúvidas ser o nosso autor o único ser
humano neste vasto mundo abençoado com o dom da ubiquidade.)
Desde que saiu o livro que me
encantou a palavra enigma. Perguntei-lhe o porquê desta fortíssima, poderosa
palavra, á roda da qual eu andava há meses: porquê?
“Porquê
Enigma? A leitura e a escrita permitem-nos um diálogo extraordinário com as
gerações que nos antecederam. Tomamos contacto, através dos livros e das
bibliotecas, com quem há muito nos deixou, mas também com a memória próxima de
quem continua a ser para nós referência próxima. Sim, é Deus que continua a
animar-nos e a dialogar connosco. Através da memória, vivemos um romance vivo,
com personagens que continuam connosco. O quadro da Menez , na capa, liga
pensamento e livros. O maior valor da cultura é o de uma viagem em que os
outros nos permitem encontrarmo-nos e encontrar o mundo.”
Pode transmitir-se melhor? Não.
PS1: Novo
desabafo deprimente: então o futuro Presidente do Conselho Europeu, já em
princípio de malas aviadas e com nova morada belga a sua espera, entra-nos
agora casa dentro num triplo salto “apresentador-entrevistador-comentador”, em
despropositadíssimas charlas televisivas?
Deslizando com o à vontade pelo curso
da política interna — a qual deixou de lhe dizer directamente respeito publicamente
— e fazendo recomendações ao partido que acabou de liderar? O gesto confere-me
inesperadamente dois direitos: o de considerar que ele quer trucidar
politicamente Pedro Nuno Santos, e outro mais embaraçoso: o de constatar que
António Costa não compreendeu que as suas funções de amanhã, já o deviam
automaticamente ter colocado hoje, num outro e mais focado, patamar de
intervenções, escolhas e actuações.
PS2: Desabafo de encantamento: um dos
melhores “intervalos” que tive neste verão afadigado foram dois e ambos
musicais: no Festival dos Capuchos, dirigido pelo músico Filipe Pinto Ribeiro, excelente pianista, e num cenário onde
o recente restauro do Convento nos reconciliava com o nosso património – ouvimos a sublime Elisabeth Leonskaya.
Tocava a solo, numa sala que por vezes suspendia a respiração e num dos mais
exaltantes, românticos, melancólicos, doces, duros, diálogos entre uma pianista
e o seu piano, a que jamais assisti. Inesquecível. (E seguido de ceia
com a pianista saboreando um nacional “prego”, numa esplanada sobre o areal da
Caparica. Outra vez inesquecível.)
O segundo momento foi há dias no “Verão Clássico – Festival e Academia” no
picadeiro do antigo Museu dos Coches. Uma surpresa a reter e a mimar, em plena
Lisboa estival. Entre Dvořák e Schumann fiquei com o sexteto para piano de
Felix Mendelssohn, magnificamente tocado por Filipe Pinto Ribeiro (que também assume a direcção, artística e
pedagógica, desta pérola lisboeta.) Estudado,
vivendo e tocando muito no estrangeiro – onde continua a passar boa parte do
ano –, Filipe move se com facilidade e qualidade entre colegas, intérpretes,
maestros, solistas, de gabarito musical internacional, a quem soube acenar com
Portugal como destino musical. E eles vieram. O espectáculo teve um
altíssimo nível artístico. Voltarão. É bom saber estas coisas. E
sobretudo poder contar estas coisas (nada deprimentes).
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COMENTÁRIO
Anabela Santos: Parabéns Maria João, pela sua imparcialidade,
inteligência, conhecimento, enfim pela brilhante carreira .
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