sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A responsabilidade das calças rasgadas


Na questão da falta de educação actual, apontando para uma permissividade educacional que me parece apenas grotesca, no seu pedantismo de uma liberdade que se pretende democrática. Pois até em senhoras pesadamente velhas já tenho visto o rasgão nos jeans da sua modernidade. Daí, do dito rasgão, a perda de maneiras, a deseducação generalizada de que trata o texto do escritor ALEXANDRE BORGES. De tal modo estranho tais jeitos representativos hodiernos, que chego a enternecer-me com a apresentação digna de grupos que por vezes aparecem nos programas musicais, vestidos com o rigor antigo, prova de uma antiga educação de respeito para com os assistentes e não de pura provocação exibicionista, de uma liberdade desrespeitosa para com o outro, apenas “respeitadora”(?) de si própria, no “livre” desprezo pelas “boas maneiras”. E, por muita “irmanação” para com os sem-abrigo ou a classe dos trabalhadores mal pagos na sociedade má pagadora, que os rasgões - por enquanto apenas nas calças - também traduzem – ou traduziram, a coisa está já tão enraizada que tal irmanação da virtude actual já passou ao esquecimento, (embora continuemos a vivê-la nos discursos pungentes da esquerda sempre contrária e sempre contrariada), tudo isso me parece apenas fruto de um fado miserabilista e sofredor, como foi, afinal, o nosso de todo o sempre, com rasgões menos hipócritas o de antigamente.

Fora de tempo

É o mesmo comportamento que observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo.

ALEXANDRE BORGES Escritor e argumentista

OBSERVADOR, 29 ago. 2024, 00:2142

Agosto termina e, daqui e dali, metemos a vida no saco e enfiamo-nos num transporte qualquer de regresso à realidade. A estrada é o que é e há muito não inspira literatura, mas estações de comboios e aeroportos caíram, última e vertiginosamente, de lugares cinematográficos a expositores concentrados do pior que temos para apresentar enquanto espécie. Dirá que, na melhor das hipóteses, é saudosismo do cronista; na pior, superficialidade. Talvez, mas receio que não. A forma como nos apresentamos nunca é apenas a forma; para os filósofos antigos, era a forma que concedia a essência à matéria. Mas, se preferir uma reflexão mais prosaica, fiquemos por esta: se é assim que nos comportamos em público, imagine em privado.

Em tempos, as pessoas vestiam-se para viajar. De forma especial, digo. Tal como se vestiam para ir ao teatro, os católicos para a missa, os netos para o almoço de família. Havia a “roupa de domingo”, que agora lembramos com um sorriso entre a ternura e a troça. Hoje, cheirará a mofo, mas evoca tempos economicamente mais difíceis, em que era preciso poupar o casaco bom e os sapatos, e ir ao estrangeiro ainda não se tornara mais banal do que, sei lá, ao supracitado teatro.

As coisas mudam e malfeito seria se não o fizessem. Mas não precisávamos de ter caído para o ponto em que nos passeamos por estações e aeroportos com almofadas de pescoço por coleira ou cachecol (custava mesmo muito levá-las num saquinho na mão e colocá-las só quando fosse preciso?). Não se trata de termos deixado de nos preocupar com a aparência porque essa, como sabemos, nunca esteve tão em alta; trata-se de entendermos o momento da viagem como uma suspensão momentânea da realidade em que nos estamos nas tintas para o próximo. Homens e mulheres adultos viajam de fato de treino ou calção, quantas vezes a deverem muitas actualizações aos respectivos perímetros abdominais, e como quem está a duas viagens low-cost de começar a fazê-lo em pijama. Atropelam-nas filas para o check-in, o raio-x ou o embarque, bocejando, esgravatando o nariz, tossindo ou espirrando para cima do cidadão incauto mais próximo, indiferentes ao que possa pensar sobre eles já que, em princípio, ali a seguir ao Duty Free, nunca mais os verão na vida.

A única preocupação é passar à frente, não perder o respectivo comboio ou avião, nem o lugar, previamente marcado à janela ou não, onde dentro em pouco disputarão, ferozmente, com o passageiro do lado o direito à ocupação exclusiva do apoio para o braço. Durante todo o tempo, têm geralmente os olhos enfiados nos smartphones em scrolls infinitos, perdidos nas vidas que talvez gostassem de ter, seguindo pessoas com quem têm a ilusão de estarem a interagir, atrás das suas fotografias de perfil devidamente maquilhadas, filtradas, sorridentes, cheias de pretensa alegria de viver e paixão pela espécie – e sem almofadas de pescoço. Durante a viagem, hão-de fechar a persiana sem perguntar à restante fila se se importa, adormecer e babar-se para cima dela, enquanto esperam que tudo acabe depressa. No fim, correrão para tirar a mala e pelo direito inalienável a serem os primeiros a saírem da composição, furando pela multidão como jogadores de rugby famintos, atrasados para a ceia de Natal.

Exagero? Pormenor circunstancial? Espero que tenha razão. Mas, assim de repente, diria que é o mesmo comportamento que observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo que os tempos da pandemia apenas parecem ter acelerado.

Vivemos metidos nos nossos telemóveis, fechados de headphones nos ouvidos, trabalhamos em casa, mandamos entregar a nossa comida à porta. Amanhã, pode haver outra praga, outro confinamento, uma guerra ainda mais próxima, alterações climáticas ainda mais drásticas. Então, açambarcamos. Do apoio para o braço ao papel higiénico. Tratamos de nós porque já não confiamos nas instituições para isso. Vivemos fechados na bolha das nossas redes sociais e avatares, convencidos da nossa importância no mundo ou revoltados contra ele pela terrível injustiça de tanto tardar em no-la reconhecer. Os nossos candidatos a líderes políticos são o exemplo acabado do colapso das boas maneiras: ser rude, grosseiro, ordinário, brejeiro, não só já não inspira vergonha; parece tomar-se agora por qualidade. Frontalidade, genuinidade, vir de fora do “sistema”.

Na sua superior crónica de ontem, Maria João Avillez recordava Sven-Goran Eriksson como um exemplo de decência e dignidade de um tempo que talvez já não exista. Muita gente lembrou assim o técnico sueco, um príncipe num universo, o futebol, onde a elegância é mais rara do que um pontapé-de-bicicleta. Eriksson foi mais do que isso, é claro; foi um vencedor em Portugal, Suécia, Itália, Inglaterra, e um dos técnicos que mais contribuiu para o avanço da modalidade nos anos 80 e 90. Mas a elegância bastaria.

Num tempo de tanta obsessão com o sucesso pessoal e profissional e exibição de vidas-troféu para pretensos “seguidores” que desprezaríamos na fila para o check-in do lado, não me importaria que um dia a lápide dissesse “aqui jaz um tipo que era bem-educado”. Quanto não diria da vida agora ali respeitosamente posta em sossego? Se a elegância e a gentileza são coisas de outro tempo, deixem-nos estar, orgulhosamente, fora de moda.

COMENTÁRIOS (de 42)

José B Dias: A coisa era ensinada em casa ... há já muito que as famílias se esqueceram.              Carlos Chaves: Caríssimo Alexandre Borges, excelente radiografia dos nossos tempos actuais! Felizmente ainda vamos tendo liberdade para seguirmos de acordo com os nossos valores e maneira de estar na vida, escolhendo estar “fora de moda”, ou pelo contrário entrar nesse “mainstream”, onde a nossa civilização ocidental está a mergulhar!   P.S. E o Alexandre nem sequer mencionou a forma como estamos a tratar os nossos velhos!                           Maria Paula Silva: Mais um de que gostei muito. Retrato perfeito da "modernidade". O preciosismo das cenas em aeroporto é delicioso, perfeito. Há falta de elegância e há  (muita) falta de higiene. Como epílogo basta-me "era uma boa pessoa". É muito bom estar fora de moda :) Boa noite!                    Tim do A: O artigo mostra bem a decadência da civilização ocidental e a americanização da a Europa cada vez mais parecida com o gueto africano da decadente Nova Iorque.                        José Manuel Pereira: Li com avidez. Parece a descrição perfeita da sociedade em que o egocentrismo tomou conta e a civilidade ou a falta dela, não são percebidas por falta de conhecimento. Ou então é pior quando há o conhecimento, e por vezes há, por ser pura grosseria potencialmente acompanhada por uma agenda obscura carregada de frustrações, onde o próprio perde a noção da cavalidade em que se tornou. Não se olha ao espelho, ou acha-se a si mesmo o máximo e não é, pelo contrário. Sem certezas poderia apontar algumas das razões que acredito estarem na origem desta aparente escolha individual ou colectiva pelo grotesco, talvez se possam resumir na falta de valores, mas também não sei se é causa ou consequência. Agora, muito provavelmente, mais uma vez, tal como sempre, este gritante egocentrismo e falta de educação individual e colectiva trará as piores consequências...                   Luís CR Cabral: Parabéns pela excelente crónica e fique descansado que ainda há muita gente bem- educada e que espero nunca se deixe abandalhar pela espero que pequena percentagem de grunhos que dão mais nas vistas.

Fanatismo ideológico e ideário revolucionário.  

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