Na questão da falta de educação actual,
apontando para uma permissividade educacional que me parece apenas grotesca, no
seu pedantismo de uma liberdade que se pretende democrática. Pois até em
senhoras pesadamente velhas já tenho visto o rasgão nos jeans da sua
modernidade. Daí, do dito rasgão, a perda de maneiras, a deseducação
generalizada de que trata o texto do escritor ALEXANDRE BORGES. De tal modo
estranho tais jeitos representativos hodiernos, que chego a enternecer-me com a
apresentação digna de grupos que por vezes aparecem nos programas musicais,
vestidos com o rigor antigo, prova de uma antiga educação de respeito para com
os assistentes e não de pura provocação exibicionista, de uma liberdade
desrespeitosa para com o outro, apenas “respeitadora”(?) de si própria, no
“livre” desprezo pelas “boas maneiras”. E, por muita “irmanação” para com os
sem-abrigo ou a classe dos trabalhadores mal pagos na sociedade má pagadora,
que os rasgões - por enquanto apenas nas calças - também traduzem – ou traduziram,
a coisa está já tão enraizada que tal irmanação da virtude actual já passou ao
esquecimento, (embora continuemos a vivê-la nos discursos pungentes da esquerda
sempre contrária e sempre contrariada), tudo isso me parece apenas fruto de um
fado miserabilista e sofredor, como foi, afinal, o nosso de todo o sempre, com
rasgões menos hipócritas o de antigamente.
Fora de tempo
É o mesmo comportamento que
observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo
o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo.
ALEXANDRE BORGES Escritor e argumentista
OBSERVADOR, 29 ago. 2024, 00:2142
Agosto termina e, daqui e dali, metemos
a vida no saco e enfiamo-nos num transporte qualquer de regresso à realidade. A
estrada é o que é e há muito não inspira literatura, mas estações de comboios e
aeroportos caíram, última e vertiginosamente, de lugares cinematográficos a
expositores concentrados do pior que temos para apresentar enquanto espécie.
Dirá que, na melhor das hipóteses, é saudosismo do cronista; na pior,
superficialidade. Talvez, mas receio que não. A forma como nos apresentamos
nunca é apenas a forma; para os filósofos antigos, era a forma que concedia a
essência à matéria. Mas, se preferir uma reflexão mais prosaica, fiquemos por
esta: se é assim que nos comportamos em público, imagine em privado.
Em tempos, as pessoas vestiam-se para
viajar. De forma especial, digo. Tal como se vestiam para ir ao teatro, os
católicos para a missa, os netos para o almoço de família. Havia a “roupa de
domingo”, que agora lembramos com um sorriso entre a ternura e a troça. Hoje,
cheirará a mofo, mas evoca tempos economicamente mais difíceis, em que era
preciso poupar o casaco bom e os sapatos, e ir ao estrangeiro ainda não se tornara
mais banal do que, sei lá, ao supracitado teatro.
As coisas mudam e malfeito seria se não
o fizessem. Mas não precisávamos de ter caído para o ponto em que nos passeamos
por estações e aeroportos com almofadas de pescoço por coleira ou cachecol
(custava mesmo muito levá-las num saquinho na mão e colocá-las só quando fosse
preciso?). Não se trata de termos deixado de nos preocupar com a aparência
porque essa, como sabemos, nunca esteve tão em alta; trata-se de entendermos o
momento da viagem como uma suspensão momentânea da realidade em que nos estamos
nas tintas para o próximo. Homens e mulheres adultos viajam de fato de treino
ou calção, quantas vezes a deverem muitas actualizações aos respectivos
perímetros abdominais, e como quem está a duas viagens low-cost de
começar a fazê-lo em pijama. Atropelam-nas filas para o check-in, o raio-x
ou o embarque, bocejando, esgravatando o nariz, tossindo ou espirrando para
cima do cidadão incauto mais próximo, indiferentes ao que possa pensar sobre
eles já que, em princípio, ali a seguir ao Duty Free, nunca mais os verão na
vida.
A única preocupação é passar à frente,
não perder o respectivo comboio ou avião, nem o lugar, previamente marcado à
janela ou não, onde dentro em pouco disputarão, ferozmente, com o passageiro do
lado o direito à ocupação exclusiva do apoio para o braço. Durante todo o
tempo, têm geralmente os olhos enfiados
nos smartphones em scrolls infinitos, perdidos nas vidas
que talvez gostassem de ter, seguindo pessoas com quem têm a ilusão de estarem
a interagir, atrás das suas fotografias de perfil devidamente maquilhadas,
filtradas, sorridentes, cheias de pretensa alegria de viver e paixão pela
espécie – e sem almofadas de pescoço. Durante a viagem, hão-de fechar a
persiana sem perguntar à restante fila se se importa, adormecer e babar-se para
cima dela, enquanto esperam que tudo acabe depressa. No fim, correrão para
tirar a mala e pelo direito inalienável a serem os primeiros a saírem da
composição, furando pela multidão como jogadores de rugby famintos,
atrasados para a ceia de Natal.
Exagero? Pormenor circunstancial? Espero
que tenha razão. Mas, assim de repente, diria que é o mesmo comportamento que
observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo
o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo que os tempos
da pandemia apenas parecem ter acelerado.
Vivemos metidos nos nossos telemóveis,
fechados de headphones nos ouvidos, trabalhamos em casa, mandamos entregar a
nossa comida à porta. Amanhã, pode haver outra praga, outro confinamento, uma
guerra ainda mais próxima, alterações climáticas ainda mais drásticas. Então,
açambarcamos. Do apoio para o braço ao papel higiénico. Tratamos de nós porque
já não confiamos nas instituições para isso. Vivemos fechados na bolha das
nossas redes sociais e avatares, convencidos da nossa importância no mundo ou
revoltados contra ele pela terrível injustiça de tanto tardar em no-la
reconhecer. Os nossos candidatos a líderes políticos são o exemplo acabado do
colapso das boas maneiras: ser rude, grosseiro, ordinário, brejeiro, não só já
não inspira vergonha; parece tomar-se agora por qualidade. Frontalidade,
genuinidade, vir de fora do “sistema”.
Na sua superior crónica de ontem, Maria
João Avillez recordava Sven-Goran Eriksson como um exemplo de decência e
dignidade de um tempo que talvez já não exista. Muita gente lembrou assim o
técnico sueco, um príncipe num universo, o futebol, onde a elegância é mais
rara do que um pontapé-de-bicicleta. Eriksson foi mais do que isso, é claro;
foi um vencedor em Portugal, Suécia, Itália, Inglaterra, e um dos técnicos que
mais contribuiu para o avanço da modalidade nos anos 80 e 90. Mas a elegância
bastaria.
Num tempo de tanta obsessão com o
sucesso pessoal e profissional e exibição de vidas-troféu para pretensos
“seguidores” que desprezaríamos na fila para o check-in do lado, não
me importaria que um dia a lápide dissesse “aqui jaz um tipo que era
bem-educado”. Quanto não diria da vida agora ali respeitosamente posta em
sossego? Se a elegância e a gentileza são coisas de outro tempo, deixem-nos
estar, orgulhosamente, fora de moda.
COMENTÁRIOS (de 42)
José B Dias: A coisa era ensinada em casa ... há já muito que as
famílias se esqueceram. Carlos
Chaves: Caríssimo
Alexandre Borges, excelente radiografia dos nossos tempos actuais! Felizmente
ainda vamos tendo liberdade para seguirmos de acordo com os nossos valores e
maneira de estar na vida, escolhendo estar “fora de moda”, ou pelo contrário
entrar nesse “mainstream”, onde a nossa civilização ocidental está a mergulhar!
P.S. E o Alexandre nem sequer mencionou a forma como estamos a tratar os
nossos velhos! Maria
Paula Silva: Mais um de
que gostei muito. Retrato
perfeito da "modernidade". O
preciosismo das cenas em aeroporto é delicioso, perfeito. Há falta de elegância e há (muita) falta de
higiene. Como epílogo
basta-me "era uma boa pessoa". É
muito bom estar fora de moda :) Boa
noite! Tim do A: O artigo mostra bem a decadência da civilização
ocidental e a americanização da a Europa cada vez mais parecida com o gueto
africano da decadente Nova Iorque. José Manuel
Pereira: Li com avidez. Parece a descrição perfeita da sociedade em que o
egocentrismo tomou conta e a civilidade ou a falta dela, não são percebidas por
falta de conhecimento. Ou então é pior quando há o conhecimento, e por vezes
há, por ser pura grosseria potencialmente acompanhada por uma agenda obscura
carregada de frustrações, onde o próprio perde a noção da cavalidade em que se
tornou. Não se olha ao espelho, ou acha-se a si mesmo o máximo e não é, pelo
contrário. Sem certezas poderia apontar algumas das razões que acredito estarem
na origem desta aparente escolha individual ou colectiva pelo grotesco, talvez
se possam resumir na falta de valores, mas também não sei se é causa ou
consequência. Agora, muito provavelmente, mais uma vez, tal como sempre, este
gritante egocentrismo e falta de educação individual e colectiva trará as
piores consequências...
Luís CR Cabral: Parabéns pela excelente
crónica e fique descansado que ainda há muita gente bem- educada e que espero nunca se
deixe abandalhar pela espero que pequena percentagem de grunhos que dão mais
nas vistas.
Fanatismo ideológico e ideário revolucionário.
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