segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Uma educação desleixada


Propícia ao atropelo constante das injustiças sociais, que nos faz situar entre os últimos dos europeus, mau grado tanto da sua magia de povo alegre e simpático. E afinal bem capaz de proezas, apesar das astúcias dos enroladores com os poderes instituídos à má fé das conveniências superiormente permitidas, mau grado as advertências como a do estudo que segue…

Por LUÍS SOARES DE OLIVEIRA.

HISTÓRIA. general. D.O. . VI fascículo B

A hierarquia antiga

A cultura tradicional tinha habituado as gentes a um modo de vida em que o rico esbanjava e o pobre rezava.. As virtudes heroicas dos antepassados serviam de capa a estes desmandos e para que não houvesse dúvidas sobre quem manda, de quando em vez, os trauliteiros valentes e fiéis aos seus patrões varriam as feiras a varapau. Os filhos da nobreza exibiam-se nas arenas públicas a pegar touros. Reservado para os mais ricos ficava o privilégio do toureio a cavalo. Em teoria, o soberano defendia a nação e, pelo serviço, o trono recebia o imposto sobre a terra; a aristocracia servia o soberano e dele recebia prebendas; a Igreja colectava a esmola e servia Roma; o povo que servia a todos ficava com as migas e os farelos.

OS NOVOS RICOS

Na Província, a imutabilidade da hierarquia social local devia-se em grande parte a uma instituição muito portuguesa - as Misericórdias, - que permitiu conjugar interesses paroquiais com os dos latifundiários. Empreendedores privados havia apenas merceeiros, padeiros, barbeiros e tecelões e urdidores. E porque eram mesquinhos, o produto económico não crescia. No vinho do Porto, tiraram partido os ingleses que souberam criar o mercado. Como notou Beckford, que aqui se demorou uma temporada no final do século XVIII, "em Portugal até os latifundiários são pobres" e isto porque não cuidam de extrair rendimento das suas propriedades. O português considerava a riqueza pecaminosa, sobretudo a alheia.

O escasso progresso tecnológico permitiu que começassem a surgir ainda, que minguadamente, fortunas privadas, produto do trabalho e não da herança ou de sinecura. Entre estas sobressaíam os cabedais esclavagistas acumulados em Africa, sobretudo em São Tomé, e um pouco em Moçambique, não contando as de capital estrangeiro:- Sena Sugar e a Companhia de Moçambique, ambas de capital britânico, e a poderosíssima Companhia dos Diamantes, esta de capital belga. Estas empresas - tanto nacionais como estrangeiras - operavam no Ultramar e traziam consigo as sementes do capitalismo internacional que haveria de marcar o século XX. Em Lisboa, começou a surgir uma classe de ricos com ligações ao ultramar e estes trouxeram a preocupação estética. Porém, o sentimento de que enriquecimento era pecaminoso estava já tão profundamente enraizado que até Afonso Costa se permitiu condenar e ridicularizar no Parlamento o destino de uma família que tendo partido tempos antes para São Tomé, "de pé descalço e saco às costa", vivia hoje em Paris num luxuoso palacete nos Campos Elísios, "usufruindo rendimentos superiores a 500 contos de reis anuais que lhe são pagos por banco londrinos". A verdade é que surgiu em Portugal , nos primórdios do século XX, uma classe esclavagista que vivia no luxo e seguia regras de etiqueta e padrões de consumo estrangeiros. Ainda conheci uma dessas famílias. A ostentação, o mostrar riqueza e requinte, era para esta gente compulsório e contagiava os janotas do tempos. Há que reconhecer contudo que foram eles - janotas e africanistas - que trouxeram até nós a Art Nouveau e outras modernidades. Foi aí e então que a estética começou a substituir a ética. A grande influência dos dois critérios verificar-se-ia um pouco mais tarde, no pós I Guerra Mundial, e enterraria definitivamente Júlio Dantas para proclamar Almada Negreiros - morra o Dantas pim -…", Ferreira de Castro, Sousa Cardoso, Santa Rita, Aquilino Ribeiro, José Régio e postumamente Fernando Pessoa que continuaram e multiplicaram o esfoço de Eça de Queiroz no sentido de actualizar a sociedade lisboeta:"

A casta de herdeiros ociosos manteve pois a sua influência. Vinham do que chamavam "o ermo da província", onde "sufocavam", em busca de horizontes estreitos que os deslumbravam. Instalavam-se perto do Chiado, de preferência com vista para o Tejo e para o Aterro. Mas... "sem ricos, os pobres não podem viver". Esta era uma verdade que até Afonso Costa reconheceu.

A politica do tempo

Eleições havia, mas eram garantidamente fraudulentas. O direito de voto era selectivo. Apesar da contestação interna, o Partido Republicano ganhava sempre. A ausência de alternância provocou a dificuldade das forças da oposição em aceder aos órgãos do Poder e privou de representatividade e de participação política grande parte da população o que não reforçou a estabilidade do novo regime republicano.

Os antigos partidos monárquicos foram dissolvidos imediatamente após o 5 de Outubro. Ficaram activos apenas os políticos republicanos históricos e os que aderiram, popularmente designados por arrependidos e adesivos. Ninguém queria ficar ligado ao passado. Aos políticos do tempo sobrava formação jurídica e faltava cultura económica. Diferentemente das democracias nórdicas que formam criadas e orientadas por empreendedores habituados a colaborar entre si para criar produto, a portuguesa foi, através dos tempos, dominada por gente que não favorecia o crescimento. Seguiam o conselho do Sermão da Montanha.

Os revolucionários republicanos tinham por lema: "isto agora é nosso: também queremos comer". Começavam então a alargar a sua actividades às cidades e vilas provincianas através dos "comités de vigilantes" da Carbonaria-Formiga Branca. ali, perseguiam os reaccionários e prometiam aos locais ««acreditaram e a violência instalou-se os bandos armados multiplicavam-se: era a guerra de todos contra todos em que levavam vantagem os mais violentos e imunizados contra a lei, ou seja os sicários da Carbonária.

Para o político e para o burocrata do tempo, defraudar o estado era prática aceite, Quanto tiras? era a pergunta a quem conseguia emprego no Estado. Este procedimento tornou-se hábito da cultura política nacional que lamentavelmente haveria de perdurar. Esta teria sido a justificação que levou a República a não combater a cleptocracia estabelecida. "Se fôssemos fazer política apenas com gente séria, ficávamos reduzidos a meia dúzia", dizia o probo José Luciano ainda nos tempos da Monarquia.

Domingos d'Oliveira nunca aceitou tal vício e manifestava a sua repulsa ao designar o Ministério da Finanças por Ministério das pinanças.

• A MISÉRIA

O único factor de igualdade era, na época, a maldita tuberculose. Esta tocava a todos e impiedosa reduzia os anos de vida de muitos. Só poucos muito poucos tinham a sorte de ser acolhidos em estabelecimentos hospitalares. A rainha Da Amélia tinha iniciado uma obra como esse propósito, mas D. Amélia partiu e a obra ressentiu-se. Segundo relatos que ouvi em casa de meus avós e pela leitura de alguns trabalhos isentos, o Portugal anterior a 1910 proporcionava um quadro de imensa pobreza a que os liberais não souberam pôr fim.

Em Lisboa, no Aterro, - obra de engenharia inaugurada ainda por D.Luís e que ia do Cais das Colunas até Algés -, podia observar-se o espectro de miséria, do tempo. Por ali vagueavam aos milhares desempregados à espera de uma oportunidade de trabalho. Ainda vi lembranças deste triste quadro na Ribeira, ali para as bandas do Cais Sodré. Peixeiras e os sem emprego amontoavam-se sempre prontos a empregar seus braços, assim aparecesse quem os quisesse. Os que não eram contratados não regressavam logo a casa de mãos a abanar, suma vergonha. Sentavam-se no chão, deitavam-se pelos passeios, gozavam a sombra das árvores e dos quiosques mas por ali passavam o dia sempre na esperança de um chamado que lhes assegurasse umas escassas moedas para custear a janta... Como disse Raul Brandão, "ali estavam os homens, centenas, milhares, à espera, à espreita, naquele jogo do azar-sorte, do fortuito acaso, hora feliz ou sina malvada". Tal gente parecia aceitar que a miséria é para todo o sempre. Mas não era assim.

O operariado e as sufragistas seriam as questões sociais mais obsessivas dos primórdios do século XX, em todo o mundo ocidental. A primeira dizia respeito à remuneração do trabalho e a segunda ao direito de voto. A primeira internacionalizou- se rapidamente e assumiu logo à partida inflamado cunho violento; a segunda não. Porquê a diferença? Talvez porque o elemento feminino não aprendeu a causar estragos além dos da linguagem. Facto é que enquanto a primeira se fazia sentir entre nós, cada vez com mais intensidade; a segunda ficou restrita ao âmbito jurídico e movimentou pouca gente.

Aos poucos, surgiram os sindicatos e os movimento socialistas de vária denominações. Gradualmente, a Igreja alterou o seu modo tradicional de reagir aos contestatários e decidiu doutrinar nesta matéria em vez de torturar e matar. Ao fazê-lo, abençoou - sem o mencionar - o capitalismo, atribuindo-lhe a virtude de promotor do crescimento económico e, como tal, protector da sociedade. Os pontífices romanos pensavam talvez que deste modo ganhariam um aliado útil e travariam a fuga de adeptos, mas, na realidade, o que aconteceu foi que a Igreja acabou por tomar partido numa questão social, sem a resolver.

No caso do sufrágio feminino, em Portugal, o embaraço foi muito menor, excepto para Afonso Costa. Na Constituição de 1911 por ele elaborada o direito de voto era reconhecido aos chefes de família sem distinção de sexo. Tendo posteriormente constatado que o voto das viúvas não favorecia os objectivos políticos do seu partido, Afonso Costa, sem mais delongas, introduziu (1913) uma emenda à Constituição que restringia o reconhecimento deste direito aos chefes de família do sexo masculino

SINDICALISMO

O sindicalismo em Portugal não era em 1910 significante em números e menos ainda estava preparado para fomentar a violência nas ruas. Mas já prometia. Conforme inquéritos promovidos então pelas associações de classe revelaram que os efectivos do operariado quase duplicaram entre 1907 e 1917 (86 600 em 1907 e 142 600 em 1917) e continuaram a crescer exponencialmente até 1930 (217 900 em 1924 e cerca 300 000 em 1930). Em 1909, data do primeiro Congresso Sindicalista, cerca de 27 000 operários estavam associados. O sindicalismo limitava-se a registar e a propagandear. Até então não servia de agente da prosperidade da classe.  O Congresso, que já tinha dito que sim à primeira versão, disse também que sim à segunda e as senhoras teriam que esperar vinte anos, até ao governo de meu avô, para recuperarem o direito de voto. Poucas protestaram. Afonso aproveitou esta passividade para retirar aos militares o direito de voto também a estes. São todos iguais, mas há uns que são mais iguais do que os outros, diria George Orwell.

Ensino e nível de conhecimento

A situação do ensino público no tempo da Monarquia não era brilhante, A taxa de analfabetismo entre as pessoas com mais de 7 anos diminuiu de 73 % em 1900 para 69 % em 1910. A República trouxe consigo algumas inovações: foram criados em 1911 a primeira escola de enfermagem e um magistério; a educação oficial e livre para todas as crianças foi instituída por decreto. A escola primária continuou a ser violenta. As 5 500 que existiam em 1910 subiram para 6 500 em 1916, 6 900 em 1920 e cerca de 7 000 em 1925. Mas não foram atingidos resultados significativos. A taxa de analfabetismo apenas diminuiu de 69 % em 1910 para 64% em 1920. O Governo explicou esta escassa diminuição com a falta de professores e outras dificuldades, sobretudo financeiras. A escolaridade entre as crianças com idade compreendida entre 10 e 18 anos subiu de 0,8% em 1910 para 1,5% em 1917 e 2%em 1925. A taxa de alunos por professor pouco variou: de 17 em 1913 para 16 em 1923. Nas escolas superiores verificou-se um aumento de alunos de 3223 em 1911 para 4227 em 1923, A participação dos estudantes nos cursos técnicos foi respectivamente de 545 e 796. Muito se interrogavam «Para quê mais ensino técnico se não há mais actividades produtivas significativas? De qualquer maneira, novas reformas foram introduzidas e criadas novas escolas. Se analisarmos a situação da mulher, as cifras serão ainda mais baixas. A taxa de analfabetismo entre as mulheres com mais de 7 anos, que era de 71 %em 1910,apenas decresceu para 61 % em 1920, enquanto os mesmos números para a população masculina eram de 68 % e 57 %,respectivamente. No ensino secundário, a escolaridade das crianças do sexo feminino entre os 10 e os 18 anos de idade era 0,2 % em 1910 e 0,8 % em 1930. A percentagem de homens na universidade manteve-se constante: - 95%. A mulher continuava inculta.

A comunicação

Embora o ensino não tenha tido expansão digna de nota, o interesse pela informação política aumentou consideravelmente. Em 1912,foram fundadas as chamadas Universidades Livres e em 1913 as Universidades Populares, abertas ao público e onde os trabalhadores participaram activamente. O número de jornais aumentou de 450 em 1908 para 600 em 1923. Este aumento ficou a dever-se aos jornais políticos, de tal modo se multiplicaram que alguns observadores estrangeiros chamaram a Portugal «escola de democracia». Foi lançado no Porto o movimento cultural da Renascença Portuguesa encabeçado por Leonardo Coimbra, António Sérgio, Augusto Casimiro e João de Barros. Alguns intelectuais portugueses opõem ao positivismo importado do centro da Europa o “saudosismo” naturalista de Teixeira de Pascoaes. António Sérgio desligar-se-ia mais tarde do movimento para regressar ao racionalismo que inspirou a Seara Nova.

Os industriais deram-se conta da importância da imprensa e apressaram-se para a controlar. Os da moagem para quem o preço do pão era vital apoderaram-se do Diário de Notícias que tinha caído no goto dos lisboetas e este passou a militar do lado liberal- capitalista: sempre a favor do governo, qualquer governo.

Os republicanos, uma vez no poder, trataram de silenciar os jornais monárquicos mas não recorriam á censura. Invasão de populares que escaqueiraram móveis e máquinas da redação dos jornais, desterro do /quadro jornalístico foram os métodos escolhidos para o caso. Livres eram todos, mas alguns eram mais livres do que os outros.

No post Grande Guerra deu-se um choque cultural de consequência, sobretudo ao nível da massas: - a chegada do animatógrafo. Outros mais classistas se seguiriam, designadamente o Jazz, o modernismo, a Art Deco, etc. O sufragismo porém continuou a não cativar o espírito feminino português.

(CONTINUA NO PRÓXIMO SÁBADO)

 

Todas as reacções:

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Mario Curveira Santos: Para quando o livro que eternize esta maravilhosa prosa e melhor partilha de uma certa visão de um certo Portugal por umas certas pessoas (isto até podia ser o título 😃) Para além da brincadeira, muito obrigado pela partilha connosco Um abraço amigo

Joaquim Morais: Muito grato ao Senhor Embaixador por este texto!

 

GOSTO.

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