quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Mais uma machadada

 

A primeira fora a de 1580, que durou 60 anos. As seguintes – já republicanas – tripartidas, fizeram / fazem - o que podem, com o respectivo donaire, de alcance vário. O texto é de LUIS SOARES DE OLIVEIRA que o escutou do seu avô, que o viveu, na primeira fase radical. Com dor, certamente. Aprouve-nos ler. Com dor vivemos a terceira, tudo se repete nesta vida, pesem embora outros diversos pareceres, mais repetitivos ainda. Para a estabilidade e a boa consciência educativa dos nossos afectos mundanais.

3 D  · 

«Ao meio-dia de 4 de Outubro de 1910, oficiais e praças do regimento de Lanceiros da Rainha, sob comando do coronel Alfredo de Albuquerque bivacaram em Monsanto, Luneta dos Quartéis, onde aguardaram ordens para atacar os revolucionários republicanos barricados na Rotunda. Competia-lhes descer a Palhavã, cruzar o Parque Eduardo VII sob fogo inimigo e, por fim, expulsar os revolucionários - não mais de 50 entre militares e civis, insuficientemente armados acicatadas por Machado Santos, Mendes Cabeçadas - do estaleiros de obras da estátua do Marquês, tudo de Moras, Ladislau Parreira e José Carlos da Maia. O almirante Cândido dos Reis, o principal cabecilha, tendo pensado que o golpe falhara, suicidara-se. Outros republicanos Sá Cardoso e o capitão Pala fugiram.

Entre os oficiais fiéis ao rei figurava o agora capitão Domingos d'Oliveira. Embora servindo no regimento dos Lanceiros da Rainha, Domingos d'Oliveira só tinha tido um encontro com a Rainha e este fora acidental. Aconteceu na Tapada da Ajuda. O avô tinha mandado fazer arreio e cabresto para um burro no qual montava seu filho Augusto, então com 8 anos de idade, vestido a rigor de chapéu alto, jaqueta, calção e botas de equitador de circo. Assim enfarpelado, Augusto acompanhava o pai nos seus passeios a cavalo pela Tapada. Dª Amélia, que por ali fazia o seu passeio pedestre com reduzido séquito, cruzou-se-lhes no caminho e parou para felicitar o garoto garboso no seu traje. Meu avô de tão emocionado ficou que se esqueceu de desmontar e fazer a vénia à Rainha, como mandava a etiqueta. Teria sido esta a primeira e última vez na vida em que Domingos d'Oliveira se sentiu embaraçado.

No dia 4,em Palhavã, o Regimento formou em coluna com Infantaria 1 e o Grupo de Artilharia a Cavalo, de Queluz. A coluna ficou sob o comando do general Malaquias de Lemos. Porém, as ordens que ali receberam não foram as esperadas. Mandaram a coluna seguir para Arroios e daí, já ao cair da tarde, recolher ao quartel do Carmo, onde se instalou Malaquias de Lemos, sempre distante da Praça do Marquês de Pombal. A voz de carregar sobre a barricada nunca chegou. Na manhã de 5, ainda no Carmo, a coluna assistiu ao arriar da bandeira azul e branca, substituída por um lençol branco sem as armas reais. Era a rendição.

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Teria havido ou não um intervenção pessoal do cônsul da Alemanha porém, segundo Jules Pabon a ordem de rendição foi dada na madrugada do dia 5, pelo general Carvalhais, então governador militar de Lisboa. Este ter-se-ia limitado a olhar para os soldados da coluna esfomeados pela fome e fatigados pelo falta de sono e comentou: «com esta gente já se não pode aqui fazer nada».

Paiva Couceiro ainda tentou atacar a Rotunda. O general Malaquias de Lemos, comandante da Guarda Municipal, recusou-se contudo a sair com a sua coluna do Carmo. Entretanto, os marinheiros da Mendes Cabeçadas começaram a desembarcar e o povo saiu à rua a festejar antecipadamente a vitória dos revoltosos. Logo os generais do rei içaram um lençol branco. Era a rendição Às 7 da manhã cessaram as hostilidades.

Depois veio o "regressar a quartéis";. Domingos d'Oliveira chorou mas nada podia fazer. Manter-se-ia para sempre reservado sobre tão melindroso assunto.

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Discutia-se ao tempo se tinham sido traidores os chefes militares da Monarquia- por terem deixado triunfar um movimento que saiu para rua com tão pouca gente - na Rotunda estariam uns cinquenta -,com poucas armas e, pior, sem vintém. O jornalista Raul Brandão, debruçou-se sobre a matéria e concluiu que os visados não tinham sido traidores, mas apenas tinham sido "burros"; e isto porque, quando rebentou a revolta, não cortaram a liberdade de movimentos aos cabecilhas da mesma. Ficou a dúvida; com efeito, os burros não são obedientes.

Do pouco que ouvi a meu1 avô sobre o assunto, fiquei a saber que o filho do conde de Sabugosa, seu vizinho em Alcântara, tinha cavalgado no dia 4 de Outubro, até Mafra para se inteirar da vontade régia. No regresso, parou em Queluz e falou com Paiva Couceiro - então capitão e respeitado herói de África - que ali aprontava a Bataria de Artilharia para seguir para o alto de Campolide com o objectivo de varrer as barricadas da Rotunda. Foi Paiva Couceiro quem, ao chegar a Palhavã, comunicou à restante oficialidade, muito à sua maneira:- «Nada a fazer. O filho da puta fugiu». Referia-se ao rei. Não foram portanto os próceres políticos e militares que decidiram não combater. Terá sido a própria Rainha Dª. Amélia - a quem o seu filho, então com 20 anos, pedia conselho e obedecia - a pessoa que optou pelo desterro.

"Do desterro não há retorno," foi o último comentário que lhe ouviram. Como princesa da Casa de Orleães ela sabia de que estava a falar. Entendeu - como escreveu no seu diário - que nenhum Rei ou Rainha pode reinar com medo do seu próprio povo. Já antes perdera o marido e um filho em defesa da Monarquia; não tinha agora vontade de perder ou sacrificar mais ninguém.

Consta que a última despedida feita à Rainha foi a de uma garota, filha de pescadores, que, já no cais da Ericeira, se atravessou no caminho e ajoelhou á sua frente para lhe beijar a mão. Pode ser lenda, mas talvez não seja. A gente do mar não vai atrás de atoardas e sabe quem é seu amigo. Artesão pescador não alimenta ódios e isto, em grande medida, porque o mar não tem dono. A propriedade da terra, o uti possidetis, criou o ódio entre os homens. No mar, tal não aconteceu. Lá, é o próprio mar e não uma qualquer pessoa quem rege o sofrimento humano.

A monarquia de1910, sem D. Carlos, era um vazio. (Até mesmo com D.Carlos já era uma vazio). A rainha compreendeu aquilo que Paiva Couceiro - que a insultou - não compreendeu:- o uso da violência no caso só poderia servir - se servisse - para interromper momentaneamente o curso automático e previsível da história.»

(CONTINUA AOS SÁBADOS)

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