Num texto inesperado que nos deu prazer ler,
numa espécie de regresso às origens.
Cantigas de Amigo — Mais Cautas do que Castas
A mulher mais ou menos experiente,
mais ou menos cauta, mais ou menos expansiva dá voz e protagoniza uma poética
de densidade psicológica versátil e multímoda que tipifica a mulher portuguesa.
ISABEL PONCE DE LEÃO Professora Catedrática da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa / Centro de
Estudos Globais
OBSERVADOR, 15
ago. 2024, 00:2013
Na aproximação do nongentésimo
aniversário da formação de Portugal, convém lembrar que, a par das acções
bélicas, religiosas e diplomáticas de antanho, emergiram manifestações
culturais que em tudo reflectiam as características do povo e o seu modus
vivendi. No caso da literatura, surgem umas pequenas composições, de
tradição manifestamente oral, propícias a acompanhar actividades domésticas e
rurais, onde é exibida uma liberdade feminina que deixa antever um código de
relações humanas bem mais flexível do que o que, na altura, seria espectável.
As Cantigas de Amigo
São várias as teses sobre as origens
desta lírica peninsular. Se, durante muito tempo, se especulou, de forma pouco
consensual, sobre a sua génese, o aparecimento dos Cancioneiros da Vaticana (1840) e da Biblioteca Nacional (1880)
veio demonstrar a existência de uma
poética, singela, feminina, reflexo de uma hierarquização feudal, comprometida
com o real quotidiano, atento à guerra santa, e com manifestos sinais de
indigenato, cujo termo a quo é o célebre texto atribuído a D. Sancho I, “Ay
eu, coitada, como uyuo” (Nota do Editor: Ai eu, coitada como vivo),
datado de 1199(?). Não se tratando de um epifenómeno, outrossim de
manifestações populares e genuínas continuadas, perduraram no tempo e, mesmo se
mescladas com as moaxás árabes ou com as cantigas de amor provençais,
mantiveram uma identidade própria. Deve-se
ao século XIX, e à atracção dos românticos pela Idade Média, o seu estudo e
divulgação. Contudo, este interesse não se quedou por aí, antes fez a
ponte com os séculos XX e XXI, sendo comum, na produção portuguesa, ecos desta
poética em inúmeros poetas e cantores de que destaco, e. g., Zeca Afonso, Ary dos Santos, Natália
Correia, Fiama Hasse Pais Brandão, Manuel Alegre ou Manuel Sobral Torres.
Na chamada lírica peninsular,
onde, como referido, também se vestigiam poéticas pré-existentes, se inserem as
cantigas de amigo galaico-portuguesas, protagonizadas por uma donzela simples, espontânea, apaixonada, cândida
e saudosa que procura o encontro com o amigo, tomando, na sua ausência, a mãe,
a irmã ou a natureza por confidentes da sua coita de amor. Através destes cantares, torna-se fácil
entrever os variados estados psicológicos da velida no decorrer da
intriga sentimental: o seu primeiro encontro com o amigo; os tímidos oaristos;
as promessas de amor; os arrufos; o ciúme; a saudade; o receio da partida; a
alegria do regresso. Assim se tornam, estas composições, em excelente estudo da
psicologia da mulher medieval, deixando antever o tal código de relações
humanas ainda hoje parcialmente vigente.
Nelas, a única personagem activa e
sujeito falante é a mulher, não havendo qualquer resposta às suas súplicas
por parte do destinatário – o amigo assazmente referido, mas sempre ausente –
salvo em situações pontuais de manifesta influência provençal. A angústia face
à sua ausência – muitas vezes no fossado – é mencionada de forma
arrebatada, preocupando-se a fremosa com o seu bem-estar, e temendo a
morte, também por amor, de que dá conta o já citado termo a quo atribuído a D. Sancho I.
A tristeza e a saudade – marca tão
portuguesa – manifestam-se através de perguntas feitas às confidentes, chegando
a meninha a anunciar a própria morte decorrente da sua coita: “Ondas do
mar de Vigo / se uistes meu amigo! / e ay Deus se uerrá cedo!” (N.E.: Ondas
do Mar de Vigo / se vistes meu amigo! / e ai Deus se virá cedo!) (Martin Codax)
ou “Vy eu, mha madr’, andar / as barcas eno mar, / e moyro-me d’amor!”
(N.E.: Vi eu, minha mãe, andar / as barcas no mar, / e morro-me de amor!)
(Nuno Fernandez Tornedol). Tais situações de ausência provocam o ciúme da
velida que, insegura, antevê a presença de uma rival e, ontem como hoje, sofre
sem o ocultar, antes o confidenciando: “Amiga, do meu amigo / [o]í eu oie
recado; / que é uiu’ e namorado / d’outra dona bem uos digo, / mays iur’ a Deus
que quisera / oyr ante que mort’ era.” (N.E.: Amiga, do meu amigo / hoje
eu ouvi um recado; / que está vivo e apaixonado /, por outra senhora bem vos
digo / mas juro a Deus que quisera / antes ouvir que morrera.) (Sancho
Sanchez), ou desabafando num monólogo magoado: “Eu nunca dórmho nada, / cuidãd’
en meu amigo; / el que tam muyto tarda, / se outr’ amor á sigo, / ergo o meu,
querria / morrer oi’ este dia.” (N.E.: Eu nunca durmo nada, / pensando no
meu amigo; / ele que demora tanto, / se tem outro amor, / ergo o meu, queria /
morrer hoje mesmo.) (Joan Lopez d’ Ulhoa). O temperamento feminino mostra
assim a sua fragilidade que pode, rapidamente, passar à ira e ao desprezo: “Ay
madre, ben uos digo: / mentiu-mh o meu amigo: / sanhuda lh’ and’ eu.”
(N.E.: Ai mãe, bem vos digo: / mentiu-me o meu amigo: / ando zangada com
ele.) (Pero Garcia), ou segurança, autoconfiança e mesmo vaidade, assim se
inferindo a versatilidade psicológica da donzela: “O meu amigo que me dizia /
que nunca mays migo uiueria, / par Deus, donas, aqui é iá!” (N.E.: O meu
amigo que me dizia / que nunca mais comigo viveria, / por Deus, donas, já aqui
está!) (Pai Soarez).
A mulher, personagem central: da donzela
ingénua à amante ardente
Durante muito tempo, defendeu-se que as
cantigas de amigo eram postas na boca de uma donzela ingénua, e pura, que
apenas convivia com o platonismo da afeição. Os estudos do século XIX, aos quais se deve muito do que se conhece
sobre a Época Medieval, vieram demonstrar algo bem diferente. De facto, a par
dessa timidez, surge, com frequência, a amiga desenvolta que aclara, através
dos seus actos, o sentimento amoroso que, não sendo pecaminoso, é, no mínimo,
erótico e provocador do desejo físico. Embora cauta e discreta, a sua
paixão surge explicitamente envolta numa sensualidade implacável que não
esconde o gozo físico: “Da noyte d’eyre poderam fazer / grandes tres noytes,
segundo meu sem, / mays na d’oie mi ueo muyto bem, / ca ueo meu amigo, / e,
ante que lh’ enuiassa dizer ren, / ueo a luz e foy logo comigo” (N.E.: A
outra noite pareceu-me / três grandes noites, / Mas na de hoje estou
muito bem, porque chegou o meu amigo, / e antes de lhe enviar recado, / veio a
luz e ficou comigo.) (Juião Bolseiro); ou implicitamente, ao exibir os seus
dotes físicos, por vezes com alguma irreverência, em frente do amigo,
tentando-o para que ele sinta necessidade de aproximação: “Nossos amigos todos
lá hiran / por nos ueer, e andaremos nós, / bayland’ ant’ eles, fremosas em cós,
/ e nossas madres, poys que alá uan, / queymen candeas por nós e por ssy, / e
nós, meninhas, baylaremos hy.” (N.E.: Nossos amigos todos lá irão / para
nos ver, e andaremos nós, / bailando diante deles, formosas em cós, / e as
nossas mães, pois que lá vão, / acendam velas por nós e por si, / e nós meninas
balaremos aí.) (Pero Viviaez). Nesta Cantiga de Romaria, de que apenas
transcrevi uma copla, a ben talhada vai mais longe: para além da
atitude provocatória de dançar em cós (sem capa) frente ao amigo,
engana a mãe, sua habitual confidente. Assim
desaparece todo o seu sentimento religioso, recorrendo ao ludíbrio; de facto, a
sua ida em peregrinação a San Simion, mais não é que pretexto para se exibir em
frente do amigo, postergando, assim, a sua devoção religiosa.
Destarte, fica patente que, enquanto as
irmãs e as amigas assumem sempre o claro papel de confidentes, a mãe, tendo
também esse papel, configura de igual modo a censura que à donzela é devida
pelo seu atrevimento, omitindo-lhe esta, por tal, alguns dos seus actos.
Servindo-se do ombro materno para desabafar as suas mágoas, esconde-lhe os actos
menos recatados chegando a recorrer à mentira. É assim que o cervo do monte
surge em várias composições como causador dos atrasos da menina que o utiliza
para se justificar perante a mãe: “Digades,
filha, mnha filha uelida, / por que tardaste na fontana fria: / os amores ei.
// […] // Tardei, mha madre, na fontana fria, / ceruos do monte uoluian a auga:
/ os amores ey. // […] // Mentes, mha filha, mentes por amigo, / nunca ui ceruo
que uoluess’ o rrio” (N.E.: Diz, filha, minha filha linda, / porque
demoraste na fonte fria: / tenho amores. // […] // Demorei, minha mãe, na fonte
frio, cervos do monte toldavam a água: / tenho amores. // […] // Mentes, minha
filha, mentes por causa do amigo, / nunca vi cervo que torvasse o rio.) (Pero
Meogo).
O tema do corpo, está presente nestes
cantares sendo frequente a donzela referir-se à sua elegância e beleza e
insinuando pormenores íntimos em termos metafóricos de que dá conta uma bailia
em que se alude à perda da virgindade: “Fostes, filha, eno baylar / e ronpeste
hi o brial: // […] // que fezestes ao meu pesar;” (N.E.: Foste, filha, ao
baile / e aí rompeste o vestido: // […] // custa-me que o tenhas feito;) (Pero
Meogo).
Uma clara poética feminina
O que ficou dito, faz ganhar
consistência a tese que defendo: havendo vestígios de poéticas
pré-existentes como e. g. a mozárabe e a provençal, a autóctone é autónoma e
verdadeiro paradigma do modus vivendi do povo que a gerou. Assim, é
inegável a existência de uma poética feminina. A mulher mais ou menos
experiente, mais ou menos cauta, mais ou menos expansiva dá voz e protagoniza
uma poética de uma densidade psicológica versátil e multímoda que tipifica a
mulher portuguesa, ainda nos dias de hoje, vivenciadora de sentimentos como a
saudade, o ciúme e a revolta enquanto reacções às adversidades amorosas sejam
platónicas ou de uma cauta sensualidade. Em termos formais, surge a intriga
amorosa dada de forma mais intensa do que extensa – composições muito curtas
que tudo dizem, ainda que haja algumas mais longas, sobretudo as mais genuínas
e primitivas; baseiam-se, contudo, em repetições – o paralelismo – sendo que
toda a mensagem é fornecida nas duas primeiras coplas e no refrão, que se
institui muitas vezes, corpus semântico. De forma subliminar há, nesta poética,
a tentativa, ainda que tímida, de emancipação
da mulher, inusual na época em que foi escrita.
No meio desta ancestralidade,
escondem-se autênticos tratados da psicologia feminina, documentários de vida
dos povos ligados ao mar, nos quais não será despiciendo continuar a reflectir,
porque – não é absurdo acreditar-se –, configuram
fontes de desvendamentos sistematicamente actualizadores do passado que
clarifica o presente.
Resultantes também de práticas
intertextuais, as Cantigas de Amigo abrem ao teocentrismo medieval, às tarefas
do quotidiano de uma sociedade rural em que a donzela implora a Deus o regresso
do seu amigo, ausente no fossado, ou, porque de ingénua pouco tinha, lhe roga
protecção para um encontro a sós; evoco os seus intensos diálogos com o mar tão
cruzado com o destino deste nosso povo, e verifico, noutro registo, a
inflexível estrutura das classes trovadorescas, tão decalcada no feudalismo
vigente, bem como a vassalagem amorosa que o trovador, através da voz feminina,
presta à donzela, sua suserana. Simplicidade
linguística, formal, política, social e religiosa enformam as manifestações
artísticas destes cantares medievais, retratando a permanência e continuidade
dos primeiros passos de um povo que, reflectindo nos 900 anos da sua
existência, sabe que o passado dilucida o presente e se torna garante do
futuro.
portugal 900
anos HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS
Assinante: A pagar oito cêntimos de assinatura por dia
não posso exigir mais do que esta crónica para adormecer da senhora Isabel
Ponce de Leão, que não sei quem seja ou possa ser nem a que propósito é que o
jornal a convidou para botar faladura aqui.
Maria Nunes: Excelente artigo. A poesia trovadoresca é
lindíssima. Assim os nossos jovens a compreendessem e amassem.
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