Por enquanto, durante muito tempo ainda, os versos da Tabacaria
não serão a ele
aplicados, presente na tela das muitas emoções que provocou, com a sua
personalidade e beleza. Mas os versos da angústia pessoana também se lhe
aplicarão, hélas!, como a esses todos que marcaram presença, duradoira, nos
espaços de cá. Tão injusto, tudo! Tão efémero!
«Ele
morrerá e eu morrerei.
Ele
deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A
certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois
de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a
língua em que foram escritos os versos.
Morrerá
depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em
outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre
uma coisa defronte da outra,
Sempre
uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre
o impossível tão estúpido como o real,
Sempre
o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre
isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra…»
Por outro lado… Se «Valeu a pena?»
O
«Tudo vale a
pena
Se a alma não é pequena»
Do próprio Pessoa não mistificado,
constitui outra sorte de verdade que nos torna mais eufóricos e gratos, na tal
relatividade modesta que pesa sobre o nosso orgulho banal.
Delon:
uma memória pessoal e doze filmes essenciais
Eurico de Barros recorda o dia em conheceu o “felino”
Alain Delon numa festa em Nice — e propõe 12 filmes essenciais do lendário
actor francês, que morreu aos 88 anos.
OBSERVADOR, 18 ago. 2024,
21:15
Aqui há uns 20 anos, estava no Festival
de Cannes em serviço para o Diário de Notícias, quando recebi um
telefonema de um amigo francês que, por motivo de afinidades políticas, tinha
feito amizade com Alain Delon. Este amigo estava em Nice, onde tinha uma casa
de férias, e disse-me: “Vou dar uma recepção informal aqui em casa ao
Alain Delon, que esteve de passagem aí pelo festival. É só para
alguns próximos, uma coisa discreta e privada, se o quiseres conhecer, mete-te
no comboio ou num táxi e vem até cá, é uma ocasião única, despacha-te!”.
Nem pensei duas vezes. Fui primeiro
comprar um casaco, para não aparecer com a minha habitual “farda” de
festival, jeans e polo, e meti-me num táxi que me deixou à porta de
casa do meu amigo em Nice. “Ele já
chegou, está no jardim, vem comigo, vou apresentar-te”, disse-me.
Atravessámos a casa em passo rápido e lá estava efectivamente Alain Delon,
então quase com 70 anos, descontraída mas elegantemente vestido, uma bebida na
mão, a conversar com um casal. O meu amigo pediu-lhe licença e apresentou-me à lenda viva.
A palavra “felino” é usada muitas
vezes para descrever Alain Delon, e não podia ser mais exacta. Delon era o equivalente humano de um
daqueles grandes felinos majestosos, perante os quais sentimos um misto de
admiração e de temor, de fascínio e de reticência. Emanava sensualidade,
magnetismo e um certo mistério, bem como que um poder natural, indefinível e
intransmissível. Ele podia perfeitamente, por consideração pelo nosso
amigo comum, ter apenas trocado meia dúzia de banalidades simpáticas comigo e
depois ido falar com outras pessoas. Mas foi de uma extrema gentileza e
atenção, e ficámos a falar durante uns bons minutos, e não só de filmes.
Depois de me transmitir a sua veneração
por Jean Gabin e Lino Ventura, com os quais tinha contracenado, e a sua enorme
admiração por John Garfield — o seu modelo enquanto actor –, e Clint
Eastwood,
Alain Delon, que sempre foi de direita
e nunca o escondeu, contou-me uma história extraordinária, ocorrida durante o
caos de protestos, violência e greves vivido em França durante o Maio de 68.
“Sabe, eu sou um impulsivo. Nessa altura ainda não havia televisões privadas em
França, só havia a televisão de Estado, a
ORTF, que fez greve, tal como a rádio. Fiquei fulo porque os franceses tinham
direito a ser informados sobre o que se estava a passar e aqueles esquerdistas
não deixavam, e por isso, telefonei para o gabinete do
Primeiro-Ministro Georges Pompidou, a oferecer-me para apresentar os
telejornais. E tinha-o feito, se eles tivessem aceitado.”
Entretanto, o meu amigo veio dizer-nos
que havia mais pessoas que queriam conhecer Alain Delon, e que também tinham
chegado outros amigos comuns, e despedi-me dele com um aperto de mão, um
agradecimento pelo tempo que me tinha dedicado e um enfático “C’était un
honneur, monsieur Delon!”, e ele a sorrir e a responder que não, que não, que o
gosto tinha sido todo dele. Guardei sempre este encontro inesquecível só para
mim, e conto-o agora, na morte, aos 88 anos, deste imenso actor que era também uma estrela de cinema, e uma figura que
viveu tão intensamente como representou, alimentando a sua arte com as
peripécias e polémicas da sua desassombrada personagem pública e da sua
movimentada existência privada: “Tudo aquilo que interpretei, eu vivi”.
[Alain
Delon responde ao Questionário de Proust por Bernard Pivot:]
Com ele, desaparece também uma certa
época da França, e de um modo de ser francês, uma certa maneira de ser ao mesmo
tempo uma estrela de cinema, um actor incontornável, uma figura popular e um
símbolo nacional; e uma era em que o cinema francês tinha uma variedade,
um peso, um prestígio e uma influência como nunca mais voltará a ter. Eis
doze filmes essenciais de Alain Delon, de entre os vários que merecem essa
designação, numa escolha puramente pessoal.
1- ‘À Luz do Sol’, de René
Clément (1960) – Se há um actor nascido para incarnar o Tom Ripley de
Patricia Highsmith, com a sua amoralidade casual e a sua beleza docemente
maligna, é Alain Delon. E a verdade é que nunca mais houve um Ripley como o
dele, muito elogiado pela própria escritora após ter visto o filme. Mas que
Delon esteve para quase não fazer, porque enjoava
em barcos.
2- ‘Rocco e os Seus Irmãos’, de Luchino
Visconti (1961) – Visconti
transformou Alain Delon numa estrela de dimensão internacional, ao dar-lhe o
papel de um rapaz vindo do campo para Milão e que se torna pugilista, ao mesmo
tempo que se envolve com uma prostituta e tenta zelar pela família que o
acompanhou. Delon dizia que sabia que tinha “aspecto de galã”, mas que
queria ser “o contrário disso”. E mostrou aqui que era mais do que capaz.
3- ‘O Eclipse’,
de Michelangelo Antonioni (1962) – Delon preferiu ser dirigido por Antonioni a fazer o papel do príncipe
Ali em Lawrence da Arábia, de David Lean (que foi para Omar Sharif). E integra-se perfeitamente, ao lado de
Monica Vitti, no universo cinematográfico de interrogação emocional,
perplexidade existencial e desolação anímica, causadas pelo advento da
sociedade do materialismo consumista, tal como aquele a entendia.
4- ‘O
Leopardo’, de
Luchino Visconti (1963) – Ao lado de Burt Lancaster no seu
idoso tio aristocrata, melancólico e sábio, e de novo sob a batuta de Luchino
Visconti, Delon é superlativo no garibaldiano, sedutor e solar Tancredi que,
com a sua juventude, carisma e optimismo, corporiza e anuncia os novos tempos
para uma Itália em convulsão, em que “tudo
deve mudar para que tudo continue na mesma”.
5-‘Assalto
ao Casino’, de Henri
Verneuil (1963) – A nova geração de Alain Delon encontra a do
veterano Jean Gabin neste policial de Henri Verneuil, exemplo maior do melhor cinema popular francês.
Gabin é um ladrão experimentado que vai sair da cadeia e quer dar um último e
grande golpe – num casino de Cannes -, na companhia de um jovem ex-companheiro
de cela (Delon). O velho consagrado e a vedeta recém-chegada dão-se na tela
como Deus e os anjos.
6- ‘O
Ofício de Matar’, de
Jean-Pierre Melville (1967) – Neste primeiro dos três filmes que faria
dirigido por Melville (com O Círculo Vermelho e Cai a Noite
Sobre a Cidade), Alain Delon personifica magistralmente um assassino profissional solitário e lacónico – um samurai de
gabardina, chapéu e pistola — , numa interpretação onde a palavra se faz
escassa e é toda ela assente em gestos, olhares, poses e sugestões, e na
presença mesmerizadora do actor.
7- ‘Borsalino’, de Jacques
Deray (1970) – O crítico francês
Eric Neuhoff escreveu que houve uma altura em que Alain Delon e Jean-Paul
Belmondo “levaram o cinema francês às costas”. Borsalino, uma
efusiva comédia de gangsters e de época, que Delon também produziu,
data desse tempo e assinala o primeiro
de dois encontros na tela destes dois “monstros”, e dos seus respectivos egos.
Foi um sucesso popular à altura de ambos.
8- ‘Outono
Escaldante’, de Valerio
Zurlini (1972) – Delon tem um dos seus papéis mais impressionantes
e tocantes, nesta fita em que é um professor de poesia substituto e viciado no
jogo, colocado em Rimini por alguns meses, que se apaixona por uma aluna
adolescente, com consequências trágicas. Actor e realizador não se deram bem
durante a rodagem, mas esse clima negativo entre ambos não se sente no
resultado final. Era um dos filmes favoritos de Alain Delon.
9-‘Mr.
Klein-Um Homem na Sombra’, de Joseph
Losey (1976) – Após O Assassinato de Trotsky, em 1972, Delon
voltou a trabalhar com Joseph Losey neste filme que também produziu (e que que
sabia que ia ser um fracasso de bilheteira, mas em que investiu para poder
fazer “um papel exigente, que exigia concentração”). Ele interpreta um
negociante de arte oportunista e arrogante na Paris da II Guerra Mundial, que
por uma coincidência de apelido, é tomado por judeu pelos alemães, e vê a sua
vida privilegiada transformar-se num pesadelo.
10-‘A
Nossa História’, de Bertrand
Blier (1984) – Alain Delon ganhou o seu único César de Melhor Actor
(que não foi receber, delegando em Coluche) neste filme muito mal-amado de
Bertrand Blier (foi recusado pelo Festival de Cannes e ignorado pelo público)
pelo papel de um garagista alcoólico e brusco, que se apaixona por uma estranha
(Nathalie Baye) que encontra num comboio e persegue como se ela fosse a
salvação da sua vida e para o amor. A
personagem não podia ser mais antipática e a composição de Delon mais notável e
oposta à sua imagem.
11 – ‘A Paixão de Swann’, de Volker
Schlöndorff (1984) – Se Luchino Visconti tivesse dirigido esta
adaptação de Marcel Proust, talvez tivesse tido sucesso. Mas pela mão de Volker
Schlöndorff, Um Amor de Proust foi um senhor fracasso, com a crítica
francesa a atirar-se em peso ao realizador alemão, alegando crime de
lesa-Proust. Fica Alain Delon, tão bem metido na pele do barão de Charlus como
mão de senhora distinta numa luva de marca caríssima.
12- ‘Nova
Vaga’, de Jean-Luc
Godard (1990) – François Truffaut dizia que tinha medo de Alain Delon
e o actor passou ao lado dos realizadores da Nova Vaga. Este encontro muito
tardio com Jean-Luc Godard (“Porque você é Godard e eu sou Delon”, como ele
explicou) deu um filme cripticamente godardiano, mas onde Delon se exibe mais
uma vez a contrapelo da sua imagem, numa personagem envelhecida e vulnerável,
que “mete pena”, como diz a certa altura.
REACÇÕES
Figuras
do cinema, antigos colegas de cena, mas também personagens de outros quadrantes
da nação. Todos se unem nas palavras que evocam Alain Delon, o astro que morreu este domingo, pacificamente, aos 88
anos, segundo anunciaram os seus três filhos. “Acabou-se o baile. Tancredi foi dançar com as
estrelas…”, reagiu a actriz italiana Claudia
Cardinale, que com ele
contracenou na longa de culto “O Leopardo”, de Luchino Visconti (1963),
resgatando a personagem desempenhada no grande ecrã por Delon. “A tristeza
é muito intensa. Associo-me à dor de seus filhos, seus entes queridos, seus
fãs…. (…) Per sempre tua (Sempre tua), Angelica”,” despediu-se.
Poucas
horas depois, era a vez de Brigitte
Bardot, outro
ícone, agora no feminino, assumir-se “devastada” com o desaparecimento de “um
amigo precioso e um homem de grande coração”.
“Hoje,
temos o coração pesado ao saber da morte de Alain Delon, um homem excepcional,
um artista inesquecível e um grande amante dos animais. Alain era muito
mais do que um ícone cinematográfico. Seu compromisso marcou nossos corações. Patrono
do nosso primeiro Natal dos Animais, apoiou a nossa Fundação com rara
generosidade. Alain também era amigo íntimo de nossa presidente Brigitte
Bardot, que está devastada com a sua morte. A amizade deles, baseada no amor
compartilhado pelos animais e no compromisso compartilhado com seu bem-estar,
era preciosa e sincera.”, manifestou-se a actriz através da sua fundação.
Pelo
próprio punho, numa nota manuscrita, apesar também ela dos seus 89 anos, e das conhecidas debilidades físicas, acrescentou ainda algumas palavras. “Ele
representou o melhor do ‘cinema de prestígio’ na França. Um embaixador da
elegância, talento, beleza“, escreve “BB” sobre seu amigo. “Perdi um amigo, um
alter ego, um cúmplice. Compartilhamos os mesmos valores, as mesmas decepções,
o mesmo amor pelos animais.”
“Estou profundamente triste com a partida de
Alain Delon, embora já a temêssemos há algum tempo. Nunca estamos preparados
para a partida de alguém que sempre admirámos e amámos. Alain é o ídolo da
minha juventude. Tive a oportunidade de produzir este famoso
dueto, Paroles, Paroles com sua amiga Dalida. Um sucesso que deu a
volta ao mundo. Dalida e Alain começaram as suas carreiras juntos em 1956, eram
vizinhos e sua amizade nunca quebrou”, recordou Orlando, irmão de Dalida e
antigo produtor/manager, recordando esse dueto mítico de 1973
que juntou a cantora e Alain Delon aos microfones.
Autor
e realizador, também Philippe Labro foi dos primeiros a despedir-se
do amigo através do X (antigo Twitter).
Símbolo
da nação, apesar da figura polarizadora, coube ao Presidente Emmanuel
Macron saudar um “monumento francês” que “fez sonhar o mundo inteiro”.
8h. Morreu Alain Delon ícone do cinema francês
Rachida
Dati, a ainda ministra da Cultura do governo francês (em gestão desde as
eleições de julho), também recordou Delon através de uma mensagem em
que recordou as “várias vidas” de um ator que representou “todos os papéis”, do
polícia ao bandido, e que se tornou “um dos maiores atores do cinema mundial”.
“Deixa
a França órfã da sua mais bela encarnação na tela”, escreveu Dati, que lembrou
que Delon preferiu a França a Hollywood e “manteve-se sempre fiel ao cinema de
autor”.
“A sua imensa carreira e elegância
incomparável ficarão gravadas na memória. Alain Delon incorporou a grandeza de
uma arte, ele era a alma de uma época.”,
sublinhou também no X Jordan Bardella, líder da União Nacional
de Marine Le Pen, que também e manifestou na mesma rede social. “A
lenda foi-se. Alain Delon deixa-nos órfãos da era de ouro do cinema
francês que ele incorporou tão bem. É uma pequena parte da França que amamos
que morre com ele”. Era público e confesso o alinhamento à direita do actor,
que se referia a Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, como “como meu
grande amigo”.
O
ex-Presidente francês Nicolas Sarkozy resumiu: “Foi o mais francês
dos nossos actores e, ao mesmo tempo, o mais internacional.” O actor
espanhol Antonio Banderas publicou três fotografias de Alain Delon e
escreveu na rede social X: “Adeus #ALAINDELON R.I.P”.
Já
cantora francesa Carla Bruni escreveu no Instagram: “Adeus Alain
Delon… Não esqueceremos todo o talento, toda a graça e toda a beleza que
trouxeste a este mundo. Não esqueceremos o carisma, a voz, a silhueta, o rosto
e a melancolia, essa profunda e estranha tristeza. É raro encontrar tanta graça
e tanta tristeza misturadas no mesmo ser humano”.
Antonio
Barbera, director do Festival de Cinema de Veneza, escreveu em comunicado:
“Alain Delon conseguiu o que a maioria dos seus colegas falhou: ser
considerado o homem mais bonito do mundo e ao mesmo tempo um actor
extraordinário. Se hoje ele deixa os seus restos mortais, é para subir ao
Olimpo do Imortais, dos que lembraremos para sempre”. Também o ex-presidente do
Festival de Cinema de Cannes, Gilles Jacob, prestou a sua homenagem. “Um
leão majestoso, um actor com olhar de aço, uma beleza insolente, um samurai
inesquecível que combina sobriedade, controle, uma presença ao mesmo tempo
gentil e carnívora, lucidez, uma carreira triunfante, amores tão lindos”,
escreveu.
Paul
Belmondo, filho de outra lenda e contemporâneo de Delon, evocou o dia em que Alain admitiu
ter saudades de Jean-Paul, um outrora rival
tornado amigo, que
partiu em 2021. “Alain, hoje é você quem fará muita falta. Descanse em
paz.”
A
televisão pública francesa também prestou homenagem a Alain Delon, nomeadamente
através da alteração da grelha do canal generalista France 2, o principal canal
público do país e o segundo canal mais visto de França. A partir das 21h, a France 2 vai transmitir Le
Samouraï (1967), do realizador Jean-Pierre Melville. Às 22h55, a
France 2 transmite A Piscina (1969), de Jacques Deray.
O
Le Figaro dá conta de como em Douchy, o último local de residência de Alain
Delon, os fãs do actor começam a reunir-se para prestar-lhe uma última
homenagem, depositando flores em frente aos portões da propriedade.
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