Um título repetido – alheio embora –
para lembrar a riqueza de ponderação – e de execução – de uma figura humana
preciosa – MARIA JOÃO AVILLEZ - no seu olhar atento, dedicação familiar feita
de amor e resistência física, e sobretudo interesse pelo que no mundo vai – com
os seus jeitos descritivos impregnados de subtilezas reflexivas, decididamente
encantadoras, a que não falta a coragem, por vezes, de assumir posições de
frontalidade e argúcia crítica de excelente recorte de “femme savante”. Um auto-retrato que é igualmente um retrato
musculado do que por aí vai, que encanta sempre ler. Intimista a crónica, porque
feita com o coração. Mas também com a cabeça. E porque não com o estômago, no
saboreio da vida em plenitude, nos gozos, nas tristezas, nas concepções?
Crónica demasiado intimista
Dois cavalheiros frente a frente,
Eriksson e Artur Jorge, servindo o desporto e a competição. O que é outro modo
de evocar um Portugal esquecido onde estas pessoas existiam e estas coisas
aconteciam.
MARIA JOÃO AVILLEZ
, Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 28
ago. 2024, 00:1114
1 Dizem Agosto o mês “dos
outros”. Esses anónimos “outros” que fiquem com o ruído,
entalados em filas escaldantes de automóveis, correrias apressadas, lotações
esgotadas em praias, mesas, esplanadas, parques; sobrelotação em supermercados,
caixas de pagamento, estacionamentos; impaciências de alto grau na imprevista
procura de um dentista ou de uns óculos. Isso: Agosto fora de casa. Mas
talvez porque agora, que já foi passando, doce ou dolorosa, muita vida sobre
cada um dos nossos verões, estou cada vez mais certa de que não se pode deixar
encaixar assim Agosto, em tão má reputação. É preciso saber lidar com ele,
descobrir-lhe o avesso e não, não penso em “ressorts” — detesto a
palavra e a entediante vida que ela propõe —, nem em fantasiosas escapadas para
descampados com uma tenda às costas.
2O mês dos “outros”? Depende. Nunca
deixaria difamar o nosso Agosto, apesar de duro, hostil, brumoso, atlântico.
Ondas altas, maresia, neblinas, mas de repente, sem pré-aviso, quietude e
suavidade. Foi uma escolha. Agosto sempre aqui, cheio e vivido desde que formei
a minha própria família, cada vez mais vivido e mais cheio desde que ela
cresceu e se multiplicou. Hoje somos muitos — em casa, à mesa, no jardim, no
futebol, no cabanão, nos mergulhos, nos concursos, nos jogos. Nas conversas:
intergeracionais, participadíssimas, de mais que um credo político ou um
credo tout court. Tudo,
absolutamente, se discute. Das próximas moradas universitárias ao segredo de
uma receita de cozinha, do quem lê o quê aos mergulhos de cabeça ou aos
golos do dia. E, claro, a política: de André Ventura a Rui Tavares, com o que
interessa no meio. Já havia
talentos pictóricos, agora há uma “realizadora” de 16 anos a captar a vida com
a sua câmara, coadjuvada por um “escritor” de argumentos, de 14.
De vez em quando saímos deste oeste, uns
para norte outros para sul, mas são breves intervalos, voltamos sempre. Uma
escolha, sim. Apesar do irremovível nevoeiro matinal e (só às vezes, não
exageremos) da camisola às sete da tarde. Virar
Agosto do avesso para celebrar a “única estação” como Ruy Belo meu poeta,
chamava ao verão. Apetecida estação.
3Mas
Agosto não é só isto, que já seria muitíssimo, e de hossana obrigatório. Há
mais. Há aquilo de que também se é capaz, neste movimento contínuo. Com
a vida fui aprendendo que nos compete saber inventar ilhas desertas ou fabricar
silêncios para que uma vagarosa contemplação possa ter as honras do tempo. E assim me demoro a observar e absorver
as coisas, o campo, o recorte da paisagem, o nevoeiro a entrar como se fosse
uma pessoa. Os filhos e os netos. Revendo mais um dia que passou, esperando
que a noite que se anuncia traga com ela a certeza de que amanhã será assim,
igual a hoje, a ontem, a sempre, mesmo que não seja. Como estas nossas
imensas praias que sendo sempre as mesmas, devido ao capricho das marés, nunca
são: ao alvorecer a geografia é uma, ao entardecer, outra.
4Há momentos tão únicos de
contemplação que parece que os roubo ou então que estão no avesso. O inconfundível começo da manhã feito de
grato emudecimento no areal vazio onde só há o Atlântico, a essa hora quieto ou
despedaçado em espuma no ar salgado da praia; a tarde preguiçosa do
campo, envolta numa quentura espessa, ou já tingida pela humidade da “cacimba”,
nunca se sabe, habituámo-nos a esperar tudo; há a luz a esmorecer para dar
lugar à lua, por enquanto um ponto brilhante que observamos longinquamente a
ganhar forma. Tudo sempre igual sem o ser, mesmo que as horas e
os dias, apesar de retalhados em rotinas, escorram na sua inteira plenitude, e
só o crepúsculo antecipe a sua despedida. E há a confiante certeza de que, se
eu sair de casa, conheço cada árvore e cada curva do caminho, os muros
debruados de hortênsias, os portões das casas, o rumor alto dos eucaliptos, as
colinas ao longe. E a barragem aqui recentemente criada, que foi uma novidade e
hoje já não é, e onde dantes andávamos num barquinho, e já não andamos. Tudo
igual sem o ser, sim.
5Em Agosto, quando observamos a noite a
organizar-se sobre os povoados já adormecidos e no terraço ouvimos o
latido dos cães da “casa dos primos” aqui ao lado, percebemos o que pode ser uma imutabilidade a que talvez possamos
chamar felicidade. Estes dias e estas noites, as vozes e os risos
familiares, a claridade e o crepúsculo, o tamanho azul do oceano, as
ondas, o calor, os caminhos de terra, a cor das flores. O verão. Agosto.
Este
Agosto.
P.S.: Eriksson. Quanto saudade — antiga, de sempre, e não
apenas agora. Um príncipe. Nunca esquecerei o ser humano que ele era, para
quem a decência, a dignidade, a delicadeza passavam à frente de uma qualquer
bola a correr sobre um qualquer relvado, de um qualquer país. Também não esquecerei o seu olhar claro e
aquoso, o sorriso doce, a afabilidade do trato. Entrevistei-o uma vez na
sua casa do Guincho, desafiei-o uns tempos depois para jantar em nossa casa: ele veio, talvez por perceber, como eu,
que a súbita sintonia daquela conversa teria de durar sem gravador. E, outro
dia, pedi-lhe a ele e a Artur Jorge — mas quantos mortos já conto eu? — que se
juntassem a mim para uma conversa na véspera do jogo decisivo entre o Porto, de
Artur Jorge, e o Benfica, de Eriksson, para o campeonato desse ano. Dois
cavalheiros frente a frente, servindo o desporto e honrando a competição. O que
é outra maneira de evocar aqui — com uma certeza mágoa — um Portugal hoje
esquecido mas onde estas pessoas existiam e estas coisas aconteciam.
VERÃO NATUREZA AMBIENTE CIÊNCIA COMPORTAMENTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 14)
Nuno Abreu: O Agosto deixo-o a seu gosto. Mas tive muito gosto em
ter lembrado dois cavalheiros de quem muito gosto: Artur Jorge e Eriksson.
Amante do futebol, fico muita grato a quem ajudou a dignificá-lo
Carlos Chaves: Muito obrigado Maria João Avillez, pela partilha desta
bonita crónica de Verão, apenas toldada pela ausência dos que vão partindo.
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