segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Torga também

 

Deve ter tido os mesmos rebates de consciência, mas superou-os em verso, embora os seus escrúpulos tenham a ver mais com dúvidas de teor teológico, que atacam os pensadores mais virtuosos. Vejamos a sua PRECE:

Prece

Senhor,
Deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro de um inimigo.....
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.

Tiago de Oliveira Cavaco não manifesta tal tipo de escrúpulos, pastor que é, para mais baptista. Outras são as suas confissões, de enquadramento à esquerda, desde os tenros anos da mocidade, sinal, de resto, de orgulhos e euforias, como eu também reconheci nos meus tempos de mocidade, em colegas ledores dos apóstolos dessa sua importância, que por ser proibida lhes concedia mais aura, e que foi, de resto aquela que também obteve Torga, embora por outras razões de engenho próprio, bem mais pertinentes do que essas, pese embora o seu peso específico bem poderoso, na época. Mas o amén ao comunismo, de TIAGO CAVACO perdeu consistência, porque teve mais tempo para lhe sentir os estragos, que muitos continuam, contudo, virtuosamente a defender sem a tomada de consciência que TIAGO CAVACO nos revela, pastor baptista escrupuloso que é, e a quem ficamos gratos pela honestidade da confissão.

Dizer amém ao comunismo

O problema dos comunistas, de tão supostamente empenhados que estão em ajudar as pessoas, é que deixam de acreditar que elas realmente existem.

TIAGO DE OLIVEIRA CAVACO Pastor Baptista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 18 ago. 2024, 00:1915

Quando tinha 17 anos achava-me comunista. Orgulhava-me em dizê-lo. A minha avó Paula tinha um companheiro que era mesmo militante e recordo-me de visitar a família, lá na Marinha Grande, e envaidecer-me da luta operária na qual uns quantos dos meus se tinham envolvido ao longo de décadas. Agradava-me ser contra o sistema e o ambiente do punk/hardcore onde me tinha metido, ajudava. Como era também um jovem evangélico, as letras da minha banda misturavam religião com uma linguagem à PSR (o Bloco de esquerda ainda estava para nascer). A minha vida era uma tentativa de baptizar os “Rage Against The Machine”.

A primeira vez que votei foi CDU. Eram umas autárquicas e na Amadora ainda prevalecia aquele cliché de que os comunistas nas câmaras eram uma aposta segura. Curiosamente, e de acordo com a minha memória, os comunistas perderam nesse ano para o PS. Pouco tempo depois entrei na Universidade, na FCSH da Avenida de Berna, e num ambiente muito à esquerda sentia-me no lugar certo. Não nego, no entanto, que foi uma questão marxista que me fez começar a ganhar uma certa antipatia pelos marxistas lá: sentia que o facto de vir dos subúrbios me distinguia dos outros, mais urbanos e sofisticados do que eu—a luta de classes era mais palpável na academia do que no secundário.

Precisamente por Marx dar espaço no seu pensamento às separações que o capital provoca entre as pessoas, vi-me distante daqueles que, acreditando nele, se afastavam de mim. À medida que o tempo foi passando, o meu marxismo, ainda muito virgem, foi fraquejando: não era só o facto de os marxistas que conhecia serem hipócritas no seu marxismo (já conhecia esse tipo de erro entre cristãos, claro), era também o facto de o marxismo, mesmo quando praticado por marxistas não-hipócritas, apresentar fraquezas que até então, no auge da minha reverência à revolução, não eram claras.

O que me afastou então do comunismo imaturo do final da minha adolescência? Marxistas não-praticantes ajudaram, sem dúvida. Mas diria que foi sobretudo a escassa espessura antropológica a desiludir-me. Fazendo uma simplificação imensa, falta à tradição comunista uma dimensão ontológica, de tão encafuada que está na análise da esfera social. Na prática, os comunistas personalizam os sistemas e despersonalizam as pessoas. O problema dos comunistas, de tão supostamente empenhados que estão em ajudar as pessoas, é que deixam de acreditar que elas realmente existem.

Comunistas descrevem a malícia do capitalismo ao mais ínfimo detalhe, como o pior Faraó que a história conheceu. Já as pessoas ficam, na literatura comunista, reduzidas ao papel que lhes sobra na lógica maniqueísta de opressor e oprimido. No final, quer os combatentes comunistas quer os seus verdugos capitalistas são fundamentalmente personagens sem ânimo, sem alma. Quando lia a literatura de esquerda desiludia-me porque os heróis não se podiam perder e os bandidos não se podiam arrepender. A grande falha do comunismo, cada vez mais evidente para mim, era o seu excesso de linearidade espiritual narrativa.

Tendo dito isto, não descobri o céu no meu abandono do comunismo. Os autores não-comunistas não são necessariamente melhores do que os comunistas. Devo até confessar que, passadas mais de duas décadas do meu afastamento da esquerda, continuam a ser as vozes dessa latitude que mais me seduzem. O que está por trás desta aparente contradição? Continuo a amar comunistas, reconheço. A sua selectividade analítica é compensada pela visceral rejeição do sistema. Sei que vou resvalar para uma simplificação semi-freudiana mas aquilo que mais anima um comunista não é a construção da utopia mas a queda da Babilónia. Aos sins do comunismo digo não mas aos seus nãos digo sim.

Até quando o comunista se esvazia conceptualmente, prescindindo de ferramentas morais e religiosas, ele re-espiritualiza-se no seu ódio contra a grande cidade do orgulho humano, edificada sobretudo à custa do capital. O melhor dos comunistas não é, neste caso, gostarem mesmo das pessoas e, por isso, defendê-las; o melhor dos comunistas é abominarem a arrogância de uma pequena minoria delas. Logo, é real a paixão que continuo a nutrir algo secretamente pelos meus autores de esquerda arcaica (socialistas no sentido contemporâneo do termo nunca me interessaram). Sinto que quando um comunista fala em sociedade sem classes, o que ele quer mesmo é o apocalipse. E aí estamos juntos no mesmo amém.

COMUNISMO      POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 15)

Nuno Abreu: Não me lembro de ter lido uma frase tão curta que defina tão bem o que é o comunismo: “Os comunistas personalizam os sistemas e despersonalizam as pessoas.”  Os comunistas são números que apoiam um sistema. Eles não têm o direito de pensar. São obrigados a seguir o chefe, que depende de outros chefes, até ao suprassumo chefe que comanda tudo. São inibidos de pensar. Limitam-se a levantar o braço para o chefe ver e  assim terem direito a serem chamados de camarada! Muito Obrigado!                  Pobre Portugal: O Comunismo é a inveja do sucesso do Capitalismo. E essa inveja só provocou miséria, terror e morte.                             João Floriano: Excelente crónica. Recorrendo à sua experiência pessoal e à evolução pela qual o tempo e  a experiência  nos conduzem, Tiago Cavaco leva-nos a pensar sobre o que significa ser comunista. Aderir à esquerda nos anos da adolescência é quanto  a mim o mais normal  nessa fase da vida em que pensamos que temos na mão a possibilidade de salvar o mundo e as respostas para os males da sociedade. Após o 25 de Abril, fui abordado por partidos de esquerda para me juntar a eles: o PCP e a UDP. Ainda frequentei algumas reuniões mas não gostei da conversa dos saneamentos no meu local de trabalho, que o PCP se propunha levar a efeito. Outra coisa que também me desagradou profundamente foram as indicações para controlar reuniões e pessoas que já se revelavam opositores. Nunca estive em nenhuma reunião da PIDE, mas agora que olho para trás, devia haver certas semelhanças. Portanto o interesse passou rapidamente, até porque nessa altura eu estava completamente envolvido em projectos pequeno-burgueses como a construção da minha casa e o meu primeiro casamento. A UDP também só me despertou tédio. Queriam espalhar a boa nova através do seu jornal a Voz do Povo. Nunca tive qualquer talento para convencer fosse quem fosse. Nas primeiras eleições a seguir ao 25 de Abril, ainda votei UDP. Nada de anormal. O anormal é haver gente da minha idade que ainda continua  a votar em partidos de esquerda.             unknown unknown: Eu devo ter a idade do cronista e nunca me entusiasmei com a treta comunista! Mas, agora é moda ser-se anticomunista, tal e qual como apareceram muitos antifascistas depois do 25 abril! Muito conveniente mas muito falso, falta-nos cultura democrática, os mais importante é termos instituições democratas onde se pense livremente e se assuma a responsabilidade de ser livre!           Paul C. Rosado: Identifico-me bastante com este texto. Ao autor só terá faltado perceber a inveja em que se baseia o "comunismo" de muitos, que depois se revela na hierarquia comunista, onde ser o mais rico é substituído por se ser o mais importante/poderoso. No fundo, sempre o estatuto. Com ou sem o dinheiro. Mas, está muito bom.                     Glorioso SLB: Marx dizia q a religião é o ópio do povo. Os sistemas comunistas chacinaram biliões de pessoas em todo o Mundo. É pura e simplesmente um posição indefensável. Tb simpatizo com os hippies que fumam ganzas no FMM. Pelo seu desmaterialismo. Mas esses nunca mataram ninguém. Apesar da sua visão do Mundo tb ser utópica. Deve precisar de outro baptizmo, de outro crisma ou qq outro sacramento lá da sua Igreja para abrir os olhos.

 

 

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