Deve ter tido os mesmos rebates de
consciência, mas superou-os em verso, embora os seus escrúpulos tenham a ver
mais com dúvidas de teor teológico, que atacam os pensadores mais virtuosos. Vejamos
a sua PRECE:
Prece
Senhor,
Deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.
Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro de um inimigo.....
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.
Tiago de Oliveira Cavaco não
manifesta tal tipo de escrúpulos, pastor que é, para mais baptista. Outras são
as suas confissões, de enquadramento à esquerda, desde os tenros anos da
mocidade, sinal, de resto, de orgulhos e euforias, como eu também reconheci nos
meus tempos de mocidade, em colegas ledores dos apóstolos dessa sua importância,
que por ser proibida lhes concedia mais aura, e que foi, de resto aquela que
também obteve Torga, embora por outras razões de engenho próprio, bem mais
pertinentes do que essas, pese embora o seu peso específico bem poderoso, na
época. Mas o amén ao comunismo, de TIAGO CAVACO perdeu consistência, porque teve
mais tempo para lhe sentir os estragos, que muitos continuam, contudo, virtuosamente
a defender sem a tomada de consciência que TIAGO CAVACO nos revela, pastor
baptista escrupuloso que é, e a quem ficamos gratos pela honestidade da
confissão.
Dizer amém ao comunismo
O problema dos comunistas, de tão
supostamente empenhados que estão em ajudar as pessoas, é que deixam de
acreditar que elas realmente existem.
TIAGO DE OLIVEIRA CAVACO Pastor
Baptista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 18 ago. 2024, 00:1915
Quando
tinha 17 anos achava-me comunista. Orgulhava-me em dizê-lo. A minha
avó Paula tinha um companheiro que era mesmo militante e recordo-me de visitar
a família, lá na Marinha Grande, e envaidecer-me
da luta operária na qual uns quantos dos meus se tinham envolvido ao longo de
décadas. Agradava-me ser contra o sistema e o ambiente do punk/hardcore onde
me tinha metido, ajudava.
Como era também um jovem evangélico,
as letras da minha banda misturavam religião com uma linguagem à PSR (o Bloco
de esquerda ainda estava para nascer). A minha vida era uma tentativa de
baptizar os “Rage Against The Machine”.
A primeira vez que votei foi CDU. Eram umas
autárquicas e na Amadora ainda prevalecia aquele cliché de que os comunistas
nas câmaras eram uma aposta segura. Curiosamente, e de acordo com a minha
memória, os comunistas perderam nesse
ano para o PS. Pouco tempo depois entrei na Universidade, na FCSH da
Avenida de Berna, e num ambiente muito
à esquerda sentia-me no lugar certo. Não nego, no entanto, que foi uma
questão marxista que me fez começar a ganhar uma certa antipatia pelos
marxistas lá: sentia que o facto de
vir dos subúrbios me distinguia dos outros, mais urbanos e sofisticados do que
eu—a luta de classes era mais palpável na academia do que no secundário.
Precisamente por Marx dar espaço no seu
pensamento às separações que o capital provoca entre as pessoas, vi-me distante daqueles que, acreditando
nele, se afastavam de mim. À medida que o tempo foi passando, o meu
marxismo, ainda muito virgem, foi fraquejando: não era só o facto de os
marxistas que conhecia serem hipócritas no seu marxismo (já conhecia esse
tipo de erro entre cristãos, claro), era também o facto de o marxismo, mesmo
quando praticado por marxistas não-hipócritas, apresentar fraquezas que até
então, no auge da minha reverência à revolução, não eram claras.
O que me afastou então do comunismo
imaturo do final da minha adolescência? Marxistas não-praticantes ajudaram, sem
dúvida. Mas diria que foi
sobretudo a escassa espessura antropológica a desiludir-me. Fazendo uma
simplificação imensa, falta à tradição comunista uma dimensão ontológica, de
tão encafuada que está na análise da esfera social. Na prática, os comunistas
personalizam os sistemas e despersonalizam as pessoas. O problema dos
comunistas, de tão supostamente empenhados que estão em ajudar as pessoas, é
que deixam de acreditar que elas realmente existem.
Comunistas descrevem a malícia do capitalismo ao mais ínfimo
detalhe, como o pior Faraó que a história conheceu. Já
as pessoas ficam, na literatura comunista, reduzidas ao papel que lhes sobra na
lógica maniqueísta de opressor e oprimido. No final, quer os combatentes
comunistas quer os seus verdugos capitalistas são fundamentalmente personagens
sem ânimo, sem alma. Quando lia
a literatura de esquerda desiludia-me porque os heróis não se podiam perder e
os bandidos não se podiam arrepender. A grande falha do comunismo, cada vez
mais evidente para mim, era o seu excesso de linearidade espiritual narrativa.
Tendo dito isto, não descobri o céu no
meu abandono do comunismo. Os autores
não-comunistas não são necessariamente melhores do que os comunistas. Devo até
confessar que, passadas mais de duas décadas do meu afastamento da esquerda,
continuam a ser as vozes dessa latitude que mais me seduzem. O que está por
trás desta aparente contradição? Continuo a amar comunistas, reconheço. A sua
selectividade analítica é compensada pela visceral rejeição do sistema.
Sei que vou resvalar para uma simplificação semi-freudiana mas aquilo que mais anima um comunista não é
a construção da utopia mas a queda da Babilónia. Aos sins do comunismo digo não
mas aos seus nãos digo sim.
Até
quando o comunista se esvazia conceptualmente, prescindindo de ferramentas
morais e religiosas, ele re-espiritualiza-se no seu ódio contra a grande cidade
do orgulho humano, edificada sobretudo à custa do capital. O melhor dos
comunistas não é, neste caso, gostarem mesmo das pessoas e, por isso,
defendê-las; o melhor dos comunistas é abominarem a arrogância de uma pequena
minoria delas. Logo, é real a paixão que continuo a nutrir algo secretamente
pelos meus autores de esquerda arcaica (socialistas no sentido contemporâneo do
termo nunca me interessaram). Sinto que quando um comunista fala em sociedade
sem classes, o que ele quer mesmo é o apocalipse. E aí estamos juntos no mesmo
amém.
COMENTÁRIOS (de 15)
Nuno Abreu: Não me lembro
de ter lido uma frase tão curta que defina tão bem o que é o comunismo: “Os
comunistas personalizam os sistemas e despersonalizam as pessoas.” Os
comunistas são números que apoiam um sistema. Eles não têm o direito de pensar.
São obrigados a seguir o chefe, que depende de outros chefes, até ao suprassumo
chefe que comanda tudo. São inibidos de pensar. Limitam-se a levantar o braço
para o chefe ver e assim terem direito a serem chamados de camarada! Muito
Obrigado!
Pobre Portugal: O
Comunismo é a inveja do sucesso do Capitalismo. E essa inveja só provocou
miséria, terror e morte. João
Floriano: Excelente
crónica. Recorrendo à sua experiência pessoal e à evolução pela qual o tempo
e a experiência nos conduzem, Tiago Cavaco leva-nos a pensar sobre
o que significa ser comunista. Aderir à esquerda nos anos da adolescência é
quanto a mim o mais normal nessa fase da vida em que pensamos que
temos na mão a possibilidade de salvar o mundo e as respostas para os males da
sociedade. Após o 25 de Abril, fui abordado por partidos de esquerda para me
juntar a eles: o PCP e a UDP. Ainda frequentei algumas reuniões mas não gostei
da conversa dos saneamentos no meu local de trabalho, que o PCP se propunha
levar a efeito. Outra coisa que também me desagradou profundamente foram as
indicações para controlar reuniões e pessoas que já se revelavam opositores.
Nunca estive em nenhuma reunião da PIDE, mas agora que olho para trás, devia
haver certas semelhanças. Portanto o interesse passou rapidamente, até porque
nessa altura eu estava completamente envolvido em projectos pequeno-burgueses
como a construção da minha casa e o meu primeiro casamento. A UDP também só me
despertou tédio. Queriam espalhar a boa nova através do seu jornal a Voz do
Povo. Nunca tive qualquer talento para convencer fosse quem fosse. Nas
primeiras eleições a seguir ao 25 de Abril, ainda votei UDP. Nada de anormal. O
anormal é haver gente da minha idade que ainda continua a votar em
partidos de esquerda.
unknown unknown: Eu
devo ter a idade do cronista e nunca me entusiasmei com a treta comunista! Mas,
agora é moda ser-se anticomunista, tal e qual como apareceram muitos
antifascistas depois do 25 abril! Muito conveniente mas muito falso, falta-nos
cultura democrática, os mais importante é termos instituições democratas onde
se pense livremente e se assuma a responsabilidade de ser livre! Paul C. Rosado: Identifico-me bastante com este texto. Ao
autor só terá faltado perceber a inveja em que se baseia o
"comunismo" de muitos, que depois se revela na hierarquia comunista, onde
ser o mais rico é substituído por se ser o mais importante/poderoso. No fundo,
sempre o estatuto. Com ou sem o dinheiro. Mas, está muito bom. Glorioso
SLB: Marx dizia q a religião é
o ópio do povo. Os sistemas comunistas chacinaram biliões de pessoas em todo o
Mundo. É pura e simplesmente um posição indefensável. Tb simpatizo com os
hippies que fumam ganzas no FMM. Pelo seu desmaterialismo. Mas esses nunca mataram
ninguém. Apesar da sua visão do Mundo tb ser utópica. Deve precisar de outro
baptizmo, de outro crisma ou qq outro sacramento lá da sua Igreja para abrir os
olhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário