segunda-feira, 29 de julho de 2024

Registos

 

De um espírito que se pressupõe vivo, talvez de protesto antecipado contra a sua condição futura de cadáver sem préstimo, eterno e inútil problema das consciências pensantes.

Mas uma coisa que já não é pessoa pode tornar-se ainda, como o tal D. Sebastião que quis grandeza qual a sorte a não dá”, o “louco, sim”, já que “Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?” e isso valorizou-o muito, no museu da História, ao contrário dos seres da maioria, que se transformam em cadáveres sem préstimo, ou puras cinzas, como é o próprio dos coisos que somos. Mas por isso todos esses putins, e não só, podem ficar sossegados a respeito dos seus seres futuros   Imortais, se lhes chamará.

Fora de Serviço

Uma coisa fora de serviço é uma coisa que não serve, ou já não serve, ou não é usada, para aquilo para que foi feita. Sabemos isso muito bem ao entrar num museu.

MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 28 jul. 2024, 00:155

Nos museus misturam-se coisas que já serviram para alguma coisa com coisas que não servem para nada. Um vaso ou um relógio já serviram para alguma coisa; uma jóia ou um quadro não servem para nada, pelo menos no sentido mais familiar de ‘servem.’ Nas colecções dos museus há coisas de muitos tipos. O que nenhum museu tem é coisas que ainda sirvam. Mesmo que os relógios funcionem, e que os vasos possam ser usados para guardar azeite ou vinho, nos museus não servem já para aquilo que foram feitos. Ao visitar uma colecção de relógios em funcionamento num museu não queremos saber que horas são; e não nos interessa se os vasos ainda podem guardar líquidos.

Não faz por isso grande diferença num museu saber se uma coisa não serve para nada ou se já não serve para alguma coisa. Mesmo quando funcionam, nas colecções dos museus só há coisas fora de serviço.

Uma coisa fora de serviço é uma coisa que não serve, ou já não serve, ou não é usada, para aquilo que para foi feita. Sabemos isso muito bem ao entrar num museu. Não temos assim necessidade de usar palavras diferentes para nos referir ao que lá encontramos. Ao vaso do museu chamamos vaso; e usamos a palavra ‘relógio’ para nos referirmos ao relógio que lá encontramos.

Não é só nos museus que seguimos este princípio económico para nos referir a coisas fora de serviço: um carro que já não anda é ainda um carro; e um mocho empalhado é um mocho. Nalguns casos pode ser avisado acrescentar uma expressão à palavra que usamos, de modo a indicar que está fora de serviço. Podemos querer vender os salvados de um carro, ou um mocho empalhado. Acrescentaremos nessa altura entre parênteses as palavras ‘salvados’, ou ‘empalhado,’ para evitar confusões ou conflitos de consumo. Mas aos salvados de um carro chamamos ainda carro; e a um mocho empalhado chamamos mocho.

A uma pessoa fora de serviço não chamamos porém pessoa. Chamamos-lhe mais comummente cadáver, ou corpo. A distinção entre pessoa e cadáver não existe para vasos, mochos, relógios e carros. Um cadáver é uma coisa que já não é uma pessoa; não há pessoas fora de serviço. Comparado com uma pessoa, falta-lhe qualquer coisa: mas o quê? Não falta, como ao vaso, um uso: um cadáver não é uma pessoa que já não serve. E não lhe falta uma peça, como uma correia de distribuição, ou um dente. Embora certas peças se possam estragar, uma pessoa não é um conjunto de peças, ou um cadáver que serve para alguma coisa. Por isso diante duma coisa que já não é uma pessoa intriga-nos saber para onde terá ido aquilo que lhe falta, que não era nem uma peça nem um uso, mas que só nessa altura se consegue distinguir de um corpo.

ERRO EXTREMO      OBSERVADOR 

COMENTÁRIOS:

Francisco Almeida: Artigo algo enigmático. Intriga-nos saber para onde terá ido aquilo que lhe falta,... Noutros tempos, diria que seria a alma. Que já foi tão importante que foi o assunto que Sócrates escolheu para dialogar com os seus alunos na véspera da sua morte. Mas hoje, a alma pouco ou nada interessa à elite que pode ler Miguel Tamen. Até porque, na maioria, já são desalmados.            Alexandre Barreira: Pois. Caro Miguel. Mas olhe que um cadáver. Ainda pode ter utilidade. Nem que seja para. Alimentar...."abutres"....!!!     José Roque: Excelente!             bento guerra: Está a falar do MUDE, o museu da tralha Maria Augusta Martins: Paleio que "fede a morto". É melhor o autor ser empalhado!

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