Expressão significativa e propícia a
especulação mais hilariante, que guardo, contudo, na mente, relutante a
ironias, preferindo rever aquele Portugal aqui referido por Guilherme d’Oliveira Martins, dentro
desses espíritos narradores, de que ele trata, com carinho de leitor antigo, que
desde a infância também descobri, na estante paterna, e fui aprofundando ao
longo da vida, em regozijos de idêntico amor, pelo chão onde nos nasceram
filhos, chão significativo de pátria para sempre amada, porque esse não trai, mesmo
que seja traído.
Portugal: compreender onde estamos
A consciência colectiva da
nacionalidade corresponde a um processo longo e progressivo. Há uma cadeia de
factos históricos cuja articulação conduz à maturidade do fenómeno nacional.
GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS Presidente
do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura
OBSERVADOR, 11
jul. 2024, 00:169
Portucale ou Portugale, junto à foz do Douro, é a matriz do corpo
político donde nasceu o Reino – um Estado que precedeu a Nação. O nome
Portugal leva-nos à influência indo-europeia e ao elemento céltico – Porto é
etimologicamente uma entrada de mar e o elemento Gal
corresponde à referência ao povo céltico
que se fixou no Douro. Aliás, o
mesmo elemento Gal encontramo-lo em diversas designações europeias: uma região da Capadócia (Galácia, origem dos Gálatas), um
bairro de Istambul (Galatasaray), uma região do sul da Polónia e na Ucrânia
ocidental, Galicia (onde está Cracóvia), a Gália (hoje França), o País de Gales
(Wales) e a Galiza (origem da língua galaico-portuguesa) …
A construção de Portugal deve-se a um duplo movimento – de norte
para sul, na reconquista cristã; e de sul para norte, na influência dos povos
de língua árabe e dos moçárabes (cristãos arabizados). Poucos países de extensão semelhante apresentam aspectos
tão variados como Portugal. Do mesmo modo, poucos
ostentam diferenças tão sensíveis nas floras espontâneas locais ou nas práticas
e instituições agrícolas. Como afirmou o Conde
de Ficalho (1837-1903),
cientista, historiador, proprietário agrícola e político, par do Reino, membro
da “Vida Nova”. Ramalho
Ortigão disse
dele: “Tanto
sabia com autoridade palaciana empunhar o seu bastão de mordomo nas funções
régias, como sabia manejar no gabinete a sua pena de escritor, como sabia governar
no campo o ferro de um arado na lavra de um alqueive, ou um pampilho de
vaqueiro numa apartação de gado”.
Recordamos o seu retrato de Portugal,
como país de contrastes. “Um
viajante subitamente transportado do centro do Minho ao centro do Alentejo, julgar-se-ia
a milhares de léguas do ponto de partida”. No Minho, “o verde variegado”, em vales estreitos, “com todas as nesgas
de terra bem aproveitadas, o verde brilhante do milho, o verde fresco dos
prados húmidos, e enquadrado por sebes vivas em que a vinha trepa pelas
árvores”. E, se fala do verde de Entre-Douro-e-Minho, numa paisagem limitada,
mas acolhedora, pinta, nas encostas, o “verde alegre” dos carvalhos de folha
caduca (que tantas vezes o lucro fácil sacrificou, teremos de dizer nós) e o
“verde-escuro” dos pinheiros…
Nesse tempo distante, contemporâneo
do neolítico, camponeses e camponesas cultivavam os campos – e o
escritor notava um fundo
matriarcal na sociedade (“a mulher
trabalha tanto ou mais que o homem”). No norte litoral, encontravam-se
os “pequenos rebanhos da pequena cultura”, nas colinas, entre os “tojos de flor
dourada e as urzes floridas dum violeta rosado”. Dois ou três bois nos prados,
meia dúzia de vacas ou uma dúzia de ovelhas nas encostas. A pequena
propriedade, de cultura dividida e pobre, mantida pelo camponês “pouco
progressivo” e pela sua prole… E Ficalho, que conhecia o Alentejo como as suas
próprias mãos, falava da transição desde o norte minhoto até à planura do
meio-dia – “a paisagem muda, mais árida, mais ampla, os tons são menos vivos,
pois o arvoredo dominante (a oliveira e os dois carvalhos de folha
persistente), são todos dum verde apagado, azulado na oliveira, acinzentado na
azinheira e sobretudo no sobreiro”.
Eis
a charneca inculta, a perder de vista, com as “grandes estevas glaucas”, as
“alfazemas prateadas”. E, no “verão do Verão”, o restolho das searas
“amareleja” e os pastos vicejam sob o “azul violento do céu”. As vacas e os
bois de “pelagem encarniçada” (da “cor do trigo” na expressão do povo) viviam
em grandes manadas, ao lado dos rebanhos “intermináveis” de ovinos pretos,
conduzidos por “pastores seminómadas”. Escasseiam as pessoas (“pastores” e
“maiorais pitorescos”) e, de longe em longe, há grupos de trabalhadores que amanham
a terra, e o que ela dá, “por conta dos grandes proprietários”, em demanda de
trigo, azeite, lã e cortiça…
Em
indo de sul para norte, as árvores mediterrâneas vão rareando até desaparecer
(com a excepção de Trás-os-Montes), o tamanho dos campos vai diminuindo, o
trigo vai dando lugar ao milho, o cinzento e o amarelo ao verde, e a gente
vai-se tornando mais numerosa nos caminhos e nas fazendas. Da influência do
Mediterrâneo vai-se passando para o Atlântico, sobretudo depois de passada a Cordilheira Central, como
Orlando Ribeiro ensinou. E, aí, a serra da Estrela é a grande referência beirã
(Beira-Serra), que, no dizer de Miguel Torga, não divide, mas une e concentra:
“alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão”.
Antero de Figueiredo diria: “cá em cima, os galaicos misturaram-se
como os asturo-leoneses; lá em baixo, os lusos cruzaram-se com os mouros”. De
facto, na linha de Herculano, salientamos que os lusitanos
apenas surgem em parte do território português, prolongando-se para Castela,
dos Montes Hermínios para sul e leste. E Maria
Angelina e Raul Brandão, no seu “Portugal Pequenino”, falavam
da quadrícula da pequena propriedade a norte do Tejo e das extensas planícies
ao sul – “com os pinheiros bravos
cobrindo o terreno nas costas marítimas e vegetando no interior até às
montanhas, onde só medram até certa altitude, na encosta voltada para o mar”.
E qualificavam, muito justamente, o
castanheiro como “a mais linda árvore de Portugal”, do mesmo modo que Aquilino
(em “Quando os Lobos Uivam”) dizia que nada era “mais sumptuoso que um souto em
vésperas de maturação”.
Esta “sucessão de transições” tem os
seus misteriosos santuários. São eles: Entre-Douro-e-Minho; a cidade-estado
do Porto; o para lá do Marão
mandam os que lá estão; a Régua
terra mágica do “vinho fino”; a Beira como um todo que circunda a Estrela; “um
ázimo pão sobrenatural”, que mora nos “sacrários que a Charola de Tomar
sintetiza” (Miguel Torga); Sintra como prefiguração do Éden de Byron; a
Arrábida, de Agostinho da Cruz a Sebastião da Gama, de que Oliveira Martins
disse: “acaso não há no reino panorama nem mais belo, nem maior, nem mais
nobre, nem mais variado”; e a sul, o Alentejo (com Alqueva a
mudar o panorama) e o
inebriante Algarve, de Teixeira Gomes e de Sophia de Mello Breyner. Raul
Brandão falava da “reverberação do sol”, do “azul mais azul” e do “branco mais
branco” de uma terra levantina, a que só faltam os minaretes – “duas cores e
cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a
maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um
cheirinho a cemitério” – “da soteia chego às estrelas com a mão”. E, se virmos
bem, tanta variedade da terra portuguesa formou um povo bastante homogéneo,
cujas idiossincrasias não induzem divisões insanáveis.
O tempo longo sempre nos reserva
inúmeras surpresas. Trata-se de procurar compreender os grandes movimentos, as
sínteses fundamentais, para além dos elementos circunstanciais que variam no
imediato.
José Mattoso estudou o tema, à luz da
moderna historiografia, procurando vê-lo com os olhos do nosso tempo – menos na
lógica de uma determinação ou de um destino e mais na confluência entre
múltiplos elementos estruturais e conjunturais. A
consciência colectiva da nacionalidade corresponde, assim, a um processo longo
e progressivo. Há uma cadeia de factos históricos cuja articulação
conduz à maturidade do fenómeno nacional. “De facto, mais do que
exaltar a Pátria, interessa-me o relacionamento dos Portugueses uns com os
outros”. E, após a investigação realizada, o historiador confessa: “a
resposta do passado medieval, pelo menos a que ouvi, foi esta. Portugal é irredutível e simultaneamente
uno e múltiplo. E a História convida-nos a viver as incomodidades daí
decorrentes e a tentar tirar delas algum partido”.
COMENTÁRIOS (de 9)
Joaquim Rodrigues: Quando assumirmos plenamente este
Portugal, de Norte a Sul, valorizando a sua diversidade de paisagens e
culturas, em vez de tentarmos impor a nossa pequenina "uniformidade",
então seremos um País verdadeiramente civilizado.
GateKeeper: Nestas coisas realmente importantes, não há nada como
ser honesto e simplificar a coisa. Já não há pachorra para 'diz-cursos' muito
galantes. Basta ter estudado esses 900 anos a sério, para concluír que "já
estivemos bem melhor". Só mesmo no "mundo d'Alice virtuo-artificial
d'ecrãs é que Portugal ainda tem algum "significado" [mesmo gasoso].
A única "partilha" com a Europa é a óbvia e rapidíssima decadência
moral, cívica & económica.
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