O Desejado,
na mística dolorida de Fernando Pessoa. A homenagem sentida, no rigor histórico
de Luís Soares de Oliveira.
1 d ·
fascículo 13
livro Caos e
ordem, fasciculo 13
A paz de Sidónio
1916/7
Começo por colocar uma dúvida: podemos considerar o regime politico imposto por
Sidónio Pais em 1916 como mera variante do regime de terror em vigor em
Portugal, desde o regicídio, em 1906. É fora de dúvida que o regime de Sidónio foi imposto a tiros de canhão, mas
também é fora de questão que o propósito do mesmo era acabar com a violência e
e não continuar a mesma?
O militar lente de Matemática em Coimbra, Sidónio Pais, a
quem Pimenta Machado havia confiado a Legação de Portugal em Berlim, foi
demitido desta função pelo governo democrata de José de Castro e regressou a
Coimbra. Sidónio Pais que já figurara num governo
de Afonso Costa ficou com o gosto do poder. Além disso, Sidónio antes de ser
Lente tinha sido militar e atingira o posto de major de Engenharia.
E assim aconteceu; ainda a guerra não tinha terminado na
Flandres, já Sidónio Pais reenvergara o seu uniforme militar com galões de major
e, mediante golpe de força apoiado pelos cadetes da Escola do Exército, assumiu
o poder e prometeu com delirante aplauso popular a paz, acabar com as
mobilizações. Sidónio temperava a violência
com a sedução. Ele
tinha a graça e tinha a força mas tinha também confiança na humanidade e em si
próprio. Também não seguia ideologias e
dispensava tais conceitos de filósofos. Politicamente, Sidónio não tinha ninguém atrás de si e não
precisava: Tinha o seu magnetismo pessoal e dispensava propagandistas. Como séquito,
preferiu os cadetes da Escola do Exército, jovens ainda não corrompidos pelas
andanças da vida.
Enquanto ministro em Berlim,
Norton esforçou-se por minorar as razões de queixa que Lisboa atribuía aos
alemães. Ele estava pois condenado a desaparecer; também estava consciente do
perigo espanhol e concordava com o Ministro alemão em Lisboa que, num relatório
ao seu governo, informou: "Os portugueses estão tão
absorvidos nas suas querelas internas que nem se dão conta do perigo que correm
".
Em Dezembro de 1917, encabeçou a sua revolução que era simultaneamente anti
Afonso Costa, anti guerra, anti milícias armadas e anti marinheiros
insubordinados no que foi acompanhado por alguns políticos republicanos
designadamente o progressista Brito Camacho e os seus adeptos "unionistas". Matemático e
oriundo da arma de artilharia, não teve dificuldade de assestar as baterias do
castelo de São Jorge e imobilizar os navios de guerra surtos no Tejo. Ao fim de
3 dias de luta na Baixa de Lisboa, a sua revolução triunfou.
Quando se dá
o Levantamento de Sidónio Pais - 7 Dezembro 1917 - já Afonso Costa despistava
as gentes. Regressava
de um viagem ao estrangeiro mas em vez de se dirigir a Lisboa desviou o
regresso para o Porto onde foi informado que o chefe do governo interino,
Norton de Matos, tinha apresentado a sua demissão ao Presidente da República.
A casa de Afonso, na rua Alexandre
Herculano, em Lisboa tinha sido assaltada e a de Norton fora saqueada. Norton
afirmou que tinha telefonado a Afonso antes de renunciar. Afonso negava. Norton
capacitou-se de que era odiado, sobretudo pelos militares. "Fui
vencido", escreveu: "Se me apanham vivo matam-me de certeza" ,
Esqueceram-se ambos, Norton de Matos e Afonso Costa, que "há ir e
voltar".
Para ir combater e morrer
ainda há potências que ajudem, mas regressar à Pátria é um negócio
exclusivamente nacional. A incapacidade em que se encontrou o governo de render
os expedicionários durante a luta e fazer regressar o corpo expedicionário
militar terminada esta foi causa de descontentamento que alastrou rapidamente. Os atentados sucederam-se, até que, em 14 de Dezembro
de 1918, explodiu a revolta de Sidónio Pais. Costa e Chagas iriam agora ocupar os seus ócios com a criação da
primeiro loja maçónica portuguesa, em Paris.
Norton optou prudentemente por salvar a pele. A João Chagas que o
interrogou sobre os motivos de tal decisão, explicou: "o Afonso Costa está
muito impopular". Os colaboradores mais próximos já se haviam apercebido
que os dois lideres - o ausente e o presente - caminhavam para o rompimento.
Norton tinha contudo influência em zonas onde Afonso não tinha. O rompimento
teria pois que esperar que Afonso perdesse toda esperança de retorno.
(continua)
NOTAS DA INTERNET:
I -BREVE BIOGRAFIA:
Sidónio Bernardino Cardoso da Silva
Pais (Matriz, Caminha, 1 de maio de 1872 – Socorro, Lisboa, 14 de dezembro de 1918)
foi um militar e político que, entre outras funções, exerceu os cargos de
Deputado, de Ministro do Fomento,
de Ministro das
Finanças, de Embaixador de Portugal em Berlim, de Ministro
da Guerra, de Ministro
dos Negócios Estrangeiros, de Presidente da Junta
Revolucionária de 1917, de Presidente
do Ministério e de Presidente
da República Portuguesa. Oficial de Artilharia, foi também professor na Universidade de
Coimbra, onde leccionou Cálculo Diferencial e Integral.
Enquanto Presidente da República, de
forma ditatorial, sem consultar o Congresso,
suspendeu e alterou por decreto algumas normas da Constituição
de 1911, protagonizando
a primeira grande mudança no republicanismo português — a República Nova, de cunho presidencialista — transformando-se numa das figuras mais
controversas da política portuguesa do século XX. O seu assassinato, no final de
1918, gerou grande comoção popular, culminando no poema-elogio fúnebre de Fernando Pessoa que lhe deu o epíteto
de Presidente-Rei.
Em
1966, os seus restos mortais foram trasladados solenemente para o Panteão Nacional,
na Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, aquando da sua inauguração. A cerimónia
ocorreu no dia 5 de dezembro e homenageou igualmente com estas honras outros
ilustres portugueses. Antes disso, o seu corpo encontrava-se na Sala do
Capítulo do Mosteiro dos
Jerónimos.
II- Fernando Pessoa:
À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS
Longe da fama e das espadas,
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou
arcadas?
Só a noite enorme.
Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que
Passado
A terra e os céus.
Ali o gesto, a astúcia, a lida,
São já para ele, sem as ver,
Vácuo de acção, sombra perdida,
Sopro sem ser.
Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor
conserva?
Tudo acabou?
No mistério onde a Morte some
Aquilo a que a alma chama a
vida,
Que resta dele a nós — só o
nome
E a fé perdida?
Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.
Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.
Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!
Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!
Não é com fé que nós não cremos
Que ele não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Em nossa frente.
No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.
Ainda de longe nos anima,
Inda na alma nos conduz
Gládio de fé erguido acima
Da nossa cruz!
Nada sabemos do que oculta
O véu igual de noite e dia,
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.
Apraz ao que em nós quer que
seja
Qual Deus quis nosso querer
tosco,
Crer que ele vela, benfazeja
Sombra connosco.
Não sai da nossa alma a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Ele inda pensa em nós e é
O bem-amado.
Tenhamos fé porque ele foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o herói
Sob o ermo céu.
E amanhã, quando queira a
Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte!
Ele já não.
Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornara, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.
Tornará feito qualquer outro,
Qualquer cousa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Inda compele,
Inda comanda, e a armada ida
Para os campos da Redenção,
Às vezes leva à frente, erguida
Espada, a Ilusão.
E um raio só de ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.
Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem ama.
É lenha só a Realidade.
A fé é a chama.
Mas ai, que a fé já não tem
forma
Na matéria e na cor da Vida,
E, pensada, em dor se
transforma
E a fé perdida!
Pra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!
Mas basta o nome e basta a
glória
Para ele estar connosco, e ser
Carnal presença de memória
A amanhecer;
Espectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ânsia,
Que fala com oculta voz
Na alma, a distância;
E a nossa própria dor se torna
Uma vaga ânsia, um esperar
vago,
Como a erma brisa que
transtorna
Um ermo lago.
Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque ele pôde ser, Deus não
Nos desprezou.
Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus;
E, por directa consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.
Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com nocturno véu.
Deus p'ra que no-lo deu, se
era
P'ra o tornar seu?
Ah, tenhamos mais fé que a
esp'rança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.
E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;
Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — por que espera?
Por que não vem?
Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!
Regresse sem que a gente o
veja,
Regresse só que a gente o
sinta —
Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!
E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!
Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
Estrela do céu.
Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;
E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longínqua
chama —
O DESEJADO.
Sim, só há a esp'rança, como aquela
- E quem sabe se a mesma? — quando
Se foi de Aviz a última estrela
No campo infando.
Novo Alcácer-Kibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Por que pecado novo o açoite
Assim é dado?
Só resta a fé, que a sua memória
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga ilusória
A quem amou.
Flor alta do paul da grei,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou el-rei
Dom Sebastião.
O sopro de ânsia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,
Bater à porta ao nosso gesto,
Fazer apelo ao nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,
Nele um momento clareou,
A noite antiga se seguiu,
Mas que segredo é que ficou
No escuro frio?
Que memória, que luz passada
Projecta, sombra, no futuro,
Dá na alma? Que longínqua espada
Brilha no escuro?
Que nova luz virá ralar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ânsia feliz.
Quem quer que sejas, lá no
abismo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um misticismo
A vaga luz.
Com que a noite erma inda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da esp'rança que há no
dia,
Que não é vã.
E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redentora.
Ao mal que há,
E um novo verbo ocidental
Encarnado em heroísmo e
glória,
Traga por seu broquel real
Tua memória!
Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portais extremos
Por descobrir,
Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!
Não era extinta a antiga chama
Se tu e o amor puderam ser.
Entre clarins te a glória
aclama,
Morto a vencer!
E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,
Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a asa que somos,
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,
E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal!)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!
27-2-1920
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