segunda-feira, 23 de setembro de 2024

PRESIDENTE-REI

 

O Desejado, na mística dolorida de Fernando Pessoa. A homenagem sentida, no rigor histórico de Luís Soares de Oliveira.

Luis Soares de Oliveira

1 d  · 

fascículo 13

livro Caos e ordem, fasciculo 13

A paz de Sidónio

1916/7

Começo por colocar uma dúvida: podemos considerar o regime politico imposto por Sidónio Pais em 1916 como mera variante do regime de terror em vigor em Portugal, desde o regicídio, em 1906. É fora de dúvida que o regime de Sidónio foi imposto a tiros de canhão, mas também é fora de questão que o propósito do mesmo era acabar com a violência e e não continuar a mesma?

O militar lente de Matemática em Coimbra, Sidónio Pais, a quem Pimenta Machado havia confiado a Legação de Portugal em Berlim, foi demitido desta função pelo governo democrata de José de Castro e regressou a Coimbra. Sidónio Pais que já figurara num governo de Afonso Costa ficou com o gosto do poder. Além disso, Sidónio antes de ser Lente tinha sido militar e atingira o posto de major de Engenharia.

E assim aconteceu; ainda a guerra não tinha terminado na Flandres, já Sidónio Pais reenvergara o seu uniforme militar com galões de major e, mediante golpe de força apoiado pelos cadetes da Escola do Exército, assumiu o poder e prometeu com delirante aplauso popular a paz, acabar com as mobilizações. Sidónio temperava a violência com a sedução. Ele tinha a graça e tinha a força mas tinha também confiança na humanidade e em si próprio. Também não seguia ideologias e dispensava tais conceitos de filósofos. Politicamente, Sidónio não tinha ninguém atrás de si e não precisava: Tinha o seu magnetismo pessoal e dispensava propagandistas. Como séquito, preferiu os cadetes da Escola do Exército, jovens ainda não corrompidos pelas andanças da vida.

Enquanto ministro em Berlim, Norton esforçou-se por minorar as razões de queixa que Lisboa atribuía aos alemães. Ele estava pois condenado a desaparecer; também estava consciente do perigo espanhol e concordava com o Ministro alemão em Lisboa que, num relatório ao seu governo, informou: "Os portugueses estão tão absorvidos nas suas querelas internas que nem se dão conta do perigo que correm ".

Em Dezembro de 1917, encabeçou a sua revolução que era simultaneamente anti Afonso Costa, anti guerra, anti milícias armadas e anti marinheiros insubordinados no que foi acompanhado por alguns políticos republicanos designadamente o progressista Brito Camacho e os seus adeptos "unionistas". Matemático e oriundo da arma de artilharia, não teve dificuldade de assestar as baterias do castelo de São Jorge e imobilizar os navios de guerra surtos no Tejo. Ao fim de 3 dias de luta na Baixa de Lisboa, a sua revolução triunfou.

Quando se dá o Levantamento de Sidónio Pais - 7 Dezembro 1917 - já Afonso Costa despistava as gentes. Regressava de um viagem ao estrangeiro mas em vez de se dirigir a Lisboa desviou o regresso para o Porto onde foi informado que o chefe do governo interino, Norton de Matos, tinha apresentado a sua demissão ao Presidente da República. A casa de Afonso, na rua Alexandre Herculano, em Lisboa tinha sido assaltada e a de Norton fora saqueada. Norton afirmou que tinha telefonado a Afonso antes de renunciar. Afonso negava. Norton capacitou-se de que era odiado, sobretudo pelos militares. "Fui vencido", escreveu: "Se me apanham vivo matam-me de certeza" , Esqueceram-se ambos, Norton de Matos e Afonso Costa, que "há ir e voltar".

Para ir combater e morrer ainda há potências que ajudem, mas regressar à Pátria é um negócio exclusivamente nacional. A incapacidade em que se encontrou o governo de render os expedicionários durante a luta e fazer regressar o corpo expedicionário militar terminada esta foi causa de descontentamento que alastrou rapidamente. Os atentados sucederam-se, até que, em 14 de Dezembro de 1918, explodiu a revolta de Sidónio Pais. Costa e Chagas iriam agora ocupar os seus ócios com a criação da primeiro loja maçónica portuguesa, em Paris.

Norton optou prudentemente por salvar a pele. A João Chagas que o interrogou sobre os motivos de tal decisão, explicou: "o Afonso Costa está muito impopular". Os colaboradores mais próximos já se haviam apercebido que os dois lideres - o ausente e o presente - caminhavam para o rompimento. Norton tinha contudo influência em zonas onde Afonso não tinha. O rompimento teria pois que esperar que Afonso perdesse toda esperança de retorno.

(continua)

NOTAS DA INTERNET:

I -BREVE BIOGRAFIA:

Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (MatrizCaminha1 de maio de 1872 – SocorroLisboa14 de dezembro de 1918) foi um militar e político que, entre outras funções, exerceu os cargos de Deputado, de Ministro do Fomento, de Ministro das Finanças, de Embaixador de Portugal em Berlim, de Ministro da Guerra, de Ministro dos Negócios Estrangeiros, de Presidente da Junta Revolucionária de 1917, de Presidente do Ministério e de Presidente da República Portuguesa. Oficial de Artilharia, foi também professor na Universidade de Coimbra, onde leccionou Cálculo Diferencial e Integral.

Enquanto Presidente da República, de forma ditatorial, sem consultar o Congresso, suspendeu e alterou por decreto algumas normas da Constituição de 1911, protagonizando a primeira grande mudança no republicanismo português — a República Nova, de cunho presidencialista — transformando-se numa das figuras mais controversas da política portuguesa do século XX. O seu assassinato, no final de 1918, gerou grande comoção popular, culminando no poema-elogio fúnebre de Fernando Pessoa que lhe deu o epíteto de Presidente-Rei.

Em 1966, os seus restos mortais foram trasladados solenemente para o Panteão Nacional, na Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, aquando da sua inauguração. A cerimónia ocorreu no dia 5 de dezembro e homenageou igualmente com estas honras outros ilustres portugueses. Antes disso, o seu corpo encontrava-se na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos.

 

II- Fernando Pessoa:

À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

Longe da fama e das espadas,

Alheio às turbas ele dorme.

Em torno há claustros ou arcadas?

Só a noite enorme.

Porque para ele, já virado

Para o lado onde está só Deus,

São mais que Sombra e que Passado

A terra e os céus.

Ali o gesto, a astúcia, a lida,

São já para ele, sem as ver,

Vácuo de acção, sombra perdida,

Sopro sem ser.

Só com sua alma e com a treva,

A alma gentil que nos amou

Inda esse amor e ardor conserva?

Tudo acabou?

No mistério onde a Morte some

Aquilo a que a alma chama a vida,

Que resta dele a nós — só o nome

E a fé perdida?

Se Deus o havia de levar,

Para que foi que no-lo trouxe

Cavaleiro leal, do olhar

Altivo e doce?

Soldado-rei que oculta sorte

Como em braços da Pátria ergueu,

E passou como o vento norte

Sob o ermo céu.

Mas a alma acesa não aceita

Essa morte absoluta, o nada

De quem foi Pátria, e fé eleita,

E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente

Quando a quem quer leva de novo

Quão mais crê o Rei ainda existente

O amor de um povo!

Quem ele foi sabe-o a Sorte,

Sabe-o o Mistério e a sua lei

A Vida fê-lo herói, e a Morte

O sagrou Rei!

Não é com fé que nós não cremos

Que ele não morra inteiramente.

Ah, sobrevive! Inda o teremos

Em nossa frente.

No oculto para o nosso olhar,

No visível à nossa alma,

Inda sorri com o antigo ar

De força calma.

Ainda de longe nos anima,

Inda na alma nos conduz

Gládio de fé erguido acima

Da nossa cruz!

Nada sabemos do que oculta

O véu igual de noite e dia,

Mesmo ante a Morte a Fé exulta:

Chora e confia.

Apraz ao que em nós quer que seja

Qual Deus quis nosso querer tosco,

Crer que ele vela, benfazeja

Sombra connosco.

Não sai da nossa alma a fé

De que, alhures que o mundo e o fado,

Ele inda pensa em nós e é

O bem-amado.

Tenhamos fé porque ele foi.

Deus não quer mal a quem o deu.

Não passa como o vento o herói

Sob o ermo céu.

E amanhã, quando queira a Sorte,

Quando findar a expiação,

Ressurrecto da falsa morte!

Ele já não.

Mas a ânsia nossa que encarnara,

A alma de nós de que foi braço,

Tornara, nova forma clara,

Ao tempo e ao espaço.

Tornará feito qualquer outro,

Qualquer cousa de nós com ele;

Porque o nome do herói morto

Inda compele,

Inda comanda, e a armada ida

Para os campos da Redenção,

Às vezes leva à frente, erguida

Espada, a Ilusão.

E um raio só de ardente amor,

Que emana só do nome seu,

Dê sangue a um braço vingador,

Se esmoreceu.

Com mais armas que com Verdade

Combate a alma por quem ama.

É lenha só a Realidade.

A fé é a chama.

Mas ai, que a fé já não tem forma

Na matéria e na cor da Vida,

E, pensada, em dor se transforma

E a fé perdida!

Pra que deu Deus a confiança

A quem não ia dar o bem?

Morgado da nossa esperança,

A Morte o tem!

Mas basta o nome e basta a glória

Para ele estar connosco, e ser

Carnal presença de memória

A amanhecer;

Espectro real feito de nós,

Da nossa saudade e ânsia,

Que fala com oculta voz

Na alma, a distância;

E a nossa própria dor se torna

Uma vaga ânsia, um esperar vago,

Como a erma brisa que transtorna

Um ermo lago.

Não mente a alma ao coração.

Se Deus o deu, Deus nos amou.

Porque ele pôde ser, Deus não

Nos desprezou.

Rei-nato, a sua realeza,

Por não podê-la herdar dos seus

Avós, com mística inteireza

A herdou de Deus;

E, por directa consonância

Com a divina intervenção,

Uma hora ergueu-nos alta a ânsia

De salvação.

Toldou-o a Sorte que o trouxera

Outra vez com nocturno véu.

Deus p'ra que no-lo deu, se era

P'ra o tornar seu?

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!

Mais vivo que nós somos, fita

Do Abismo onde não há mudança

A terra aflita.

E se assim é; se, desde o Assombro

Aonde a Morte as vidas leva,

Vê esta pátria, escombro a escombro,

Cair na treva;

Se algum poder do que tivera

Sua alma, que não vemos, tem,

De longe ou perto — por que espera?

Por que não vem?

Em nova forma ou novo alento,

Que alheio pulso ou alma tome,

Regresse como um pensamento,

Alma de um nome!

Regresse sem que a gente o veja,

Regresse só que a gente o sinta —

Impulso, luz, visão que reja

E a alma pressinta!

E qualquer gládio adormecido,

Servo do oculto impulso, acorde,

E um novo herói se sinta erguido

Porque o recorde!

Governa o servo e o jogral.

O que íamos a ser morreu.

Não teve aurora a matinal

Estrela do céu.

Vivemos só de recordar.

Na nossa alma entristecida

Há um som de reza a invocar

A morta vida;

E um místico vislumbre chama

O que, no plaino trespassado,

Vive ainda em nós, longínqua chama —

O DESEJADO.

Sim, só há a esp'rança, como aquela

- E quem sabe se a mesma? — quando

Se foi de Aviz a última estrela

No campo infando.

Novo Alcácer-Kibir na noite!

Novo castigo e mal do Fado!

Por que pecado novo o açoite

Assim é dado?

Só resta a fé, que a sua memória

Nos nossos corações gravou,

Que Deus não dá paga ilusória

A quem amou.

Flor alta do paul da grei,

Antemanhã da Redenção,

Nele uma hora encarnou el-rei

Dom Sebastião.

O sopro de ânsia que nos leva

A querer ser o que já fomos,

E em nós vem como em uma treva,

Em vãos assomos,

Bater à porta ao nosso gesto,

Fazer apelo ao nosso braço,

Lembrar ao sangue nosso o doesto

E o vil cansaço,

Nele um momento clareou,

A noite antiga se seguiu,

Mas que segredo é que ficou

No escuro frio?

Que memória, que luz passada

Projecta, sombra, no futuro,

Dá na alma? Que longínqua espada

Brilha no escuro?

Que nova luz virá ralar

Da noite em que jazemos vis?

Ó sombra amada, vem tornar

A ânsia feliz.

Quem quer que sejas, lá no abismo

Onde a morte a vida conduz,

Sê para nós um misticismo

A vaga luz.

Com que a noite erma inda vazia

No frio alvor da antemanhã

Sente, da esp'rança que há no dia,

Que não é vã.

E amanhã, quando houver a Hora,

Sendo Deus pago, Deus dirá

Nova palavra redentora.

Ao mal que há,

E um novo verbo ocidental

Encarnado em heroísmo e glória,

Traga por seu broquel real

Tua memória!

Precursor do que não sabemos,

Passado de um futuro a abrir

No assombro de portais extremos

Por descobrir,

Sê estrada, gládio, fé, fanal,

Pendão de glória em glória erguido!

Tornas possível Portugal

Por teres sido!

Não era extinta a antiga chama

Se tu e o amor puderam ser.

Entre clarins te a glória aclama,

Morto a vencer!

E, porque foste, confiando

Em QUEM SERÁ porque tu foste,

Ergamos a alma, e com o infando

Sorrindo arroste,

Até que Deus o laço solte

Que prende à terra a asa que somos,

E a curva novamente volte

Ao que já fomos,

E no ar de bruma que estremece

(Clarim longínquo matinal!)

O DESEJADO enfim regresse

A Portugal!

27-2-1920

 

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