Nem a identidade é importante.
Plano Nocional de Leitura (XXV)
Romances e novelas não servem quase
nunca para dar informações a quem os está a ler, mas sobretudo para mostrar que
algumas pessoas que por lá andam não têm toda a informação que gostariam de
ter.
MIGUEL TAMEN
Colunista do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na
Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 29 set. 2024, 00:153
A heroína da extraordinária novela Maria Moisés, escrita
por Camilo Castelo Branco (1825-1890), apareceu
no Tâmega dentro de uma cesta. Um cónego que estava a jogar às cartas
quando vieram dar parte do sucedido observou que a circunstância parecia “um
caso bíblico,” e o paralelo bíblico explica que lhe tenham chamado Maria
Moisés; como Moisés, Maria foi encontrada à beira-rio. Mas ao contrário da história do Moisés original a novela coloca
reiteradamente certas perguntas: será Maria quem as pessoas dizem que é?
E qual será de facto o seu nome? As perguntas entretêm e afligem
várias personagens, embora quem esteja a ler o livro já saiba as respostas
desde o princípio.
Os romances e as novelas não servem
quase nunca para dar informações a quem os está a ler, mas sobretudo para
mostrar que algumas pessoas que por lá andam não têm toda a informação que
gostariam de ter. As
perguntas gerais sobre pessoas interessam os filósofos, mas as respostas que a
ficção dá não têm nada a ver com filosofia. Interessa-nos na ficção saber que pessoa é concretamente aquela, e
qual é o seu nome, e não adianta nada se as pessoas são quem dizem que são ou
têm os nomes que deviam. Maria
Moisés é uma das chamadas Novelas do Minho; o Minho é
para Camilo uma espécie de parque jurássico onde sobrevivem comunidades
dispersas atarefadas por trabalhos genealógicos.
Camilo foi o escritor português a
quem a genealogia mais interessou. As respostas às perguntas sobre
quem uma pessoa é são caracteristicamente dadas na sua obra através da
indicação do nome dos pais e dos parentes dessa pessoa. A genealogia
não é necessariamente ficção, mas é parecida com a ficção: é um modo de
curiosidade sobre coisas particulares. O pai de Maria Moisés, diz-nos, não estava destinado a “infelizes
senhoras de raça mista.” Foi-lhe prometida pelo contrário uma noiva de
uma família com um nome conhecido, “mas dos bons.” O itálico mostra
que Camilo nunca hesita em sugerir distinções genealógicas de pormenor, mesmo a
respeito de pessoas que não existiram.
A importância da genealogia para
Camilo é no entanto inseparável da ideia de que em matérias de amor o
conhecimento dos pormenores é de pouco uso. O pai de Maria Moisés
encontrara a sua futura mãe quando passeava sozinho pelo campo. Eram
ambos “peles-vermelhas no rigor antropológico.” O encontro foi prefaciado por um aviso:
no campo, “as serras têm sombras do infinito. O coração aí é maior que as
dimensões do peito. O homem como se vê só, no cabeço de um fraguedo, dá-se
grandeza extraordinária.” Camilo acha no fundo que há paisagens
que nos levam a pensar que não temos antepassados, e que por isso nos inclinam
à auto-estima e ao amor. No campo, como diz, somos “antigos actores da
vida animal”; fomos todos, como Moisés, encontrados no Tâmega.
COMENTÁRIOS;
Rosa Silvestre: A fixação de Camilo não
é consequência natural da sua própria história?
Rosa SilvestreRosa
Silvestre: A fixação na genealogia.
bento guerra: Será que o pensamento e
sentimento do Camilo, de há século e meio, é compreensível, no mundo de hoje?
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