domingo, 15 de setembro de 2024

Um texto


De Jaime Nogueira Pinto (e outros de comentadores) defendendo pontos de vista cordatos relativamente aos candidatos que disputam a presidência americana, decididamente, Trump aparentando ser um justo, na sua infantilidade perversa, ante a aleivosia traiçoeira de Kamala.

A América dividida e que nos divide

Apesar de tudo, não parece que o debate tenha tido grande efeito sobre o eleitorado, mantendo-se os candidatos muito próximos, quer na totalidade da massa eleitoral, quer nos Estados decisivos.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do OBSERVADOR

OBSERVADOR, 14 set. 2024, 00:1855

Num tempo de pessimismo em relação à política e aos políticos, os eleitores têm vindo a confirmar experimentalmente a famosa frase do realista cínico Talleyrand, de que a escolha em política é sempre “uma escolha entre dois inconvenientes”.

Por estes tempos, este parece ser o paradigma da luta política no mundo euroamericano. O facto de, no resto do mundo, poder o inconveniente ser ainda maior e nem sequer haver escolha não tem servido de grande consolo para quem, por aqui, se vê perante o esvaziamento racional e ideológico e a simplificação “emocional” dos “inconvenientes políticos” em jogo, representados por estridentes personagens de wrestling, como que vindas de mundos inconciliáveis.

Tentemos, com alguma calma, guardar o senso comum. Mesmo estando em claques opostas, em oposição radical, mesmo tornando-nos inimigos no sentido schmittiano do termo, tentemos pensar que nem tudo é o que parece, que há causas e consequências reais em jogo e que há pessoas boas ao serviço de causas más e pessoas más ao serviço de causas boas. Até na América.

A dupla prodigiosa

As eleições americanas afectam-nos e vão afectar-nos a todos. Sobretudo num mundo perigoso, com dois conflitos quentes na Europa Oriental e no Médio-Oriente, uma dezena de potências nucleares, uma ordem internacional em falência e em processo de substituição por ordem multipolar em caótica ascensão e uma comunicação social mais empenhada em narrativas ideológicas úteis para os seus objectivos do que na descrição e na análise objectiva dos factos. Um mundo perigoso onde a tecnologia permite a grupos não estatais organizados causar efeitos desproporcionais para a sua capacidade e onde há todo um novo patamar de propaganda, com mundos virtuais paralelos, antagónicos, cruzados.

É neste quadro que nos Estados Unidos se vão travar as mais que decisivas eleições de 5 de Novembro de 2024. Inicialmente eram para ser disputados pelo actual presidente, Joe Biden, e o ex-presidente, Donald Trump, mas depois da pobre prestação de Biden no debate com Trump, o Partido Democrático, mostrando disciplina e obediência a cúpulas nem sempre visíveis, procedeu ao defenestramento do Presidente (que até aí defendera como habilíssimo e preparadíssimo, contra “insinuações reaccionárias” de eventuais deficiências de memória e raciocínio do re-candidato). Fê-lo expeditamente, ultrapassando regras de democracia interna e substituindo-o por uma vice-presidente até aí quase simbólica, usada em 2020 para equilibrar o centrista moderado Biden com a ala mais à esquerda do partido.

Assim, do dia para a noite, a figurante de conveniência foi convertida por uma poderosa máquina de propaganda numa nova e excepcional criatura, capaz de governar a América.

Curiosamente, o que vimos, foi a preocupação de esvaziar e moderar a imagem da candidata, de a desradicalizar, de lhe retirar a carga de esquerda, de a livrar das ideias e dos actos do passado a fim de a tornar aceitável para independentes e moderados, enfim, para as classes médias. O mesmo para o seu co-equiper na vice-presidência, o governador do Minesota, Tim Walz, outro radical da legislação anti-Vida e do wokismo transgénero, que passou a ser aquilo que até já parecia – um cordato chefe de família com quem se toma uma cerveja à tarde, na doçura de uma cidade pequena do Minesota, desfrutando da american way of life.

Pelos maus da fita

Este é um lado da equação. Do outro lado está Donald Trump. Trump tem um passado liberal-chique, de tycoon do imobiliário, de anfitrião de reality shows e de mulherengo do show business. Quando, em 2016, encabeçando os descontentes do “sistema” e promovendo uma agenda conservadora, bateu os candidatos da direita republicana nas primárias e foi eleito, a surpresa foi geral. Apesar do seu estilo excitado e por vezes brutal, apesar da febre de nomeações e demissões de colaboradores, Trump não “acabou com a democraciae dirigiu uma Administração conservadora e realista sem novas guerras e com um sucesso apreciável na reconciliação do Médio Oriente. Internamente, a economia correu bem. No final foi leviano no modo como destratou a Covid-19 e os seus efeitos e isso pode ter-lhe custado a reeleição.

Independentemente das razões, foi também pouco feliz no modo como lidou com o ataque ao Congresso, em Janeiro de 2021, por alguns dos seus partidários, um gesto de populismo desastrado que rendeu munições sem fim aos seus inimigos.

Apesar de tudo isto e do histrionismo excêntrico e aparentemente caótico do candidato a Presidente, se eu fosse norte-americano, votaria na dupla Trump-Vance. Em Trump, como mal menor, em Vance por identificação com os seus valores de nacionalismo conservador e popular. Porque o que está em jogo não é a personalidade mais ou menos coerente, mais ou menos simpática, mais ou menos capaz de enumerar em público bons e sãos princípios de cada um dos candidatos, mas a política e as políticas que querem e vão prosseguir e as suas consequências.

Desde logo, com Trump e apesar de Trump, uma política internacional realistae não ideológica, como a dos neocons que, da Administração George W. Bush, liderados pelo Vice Dick Cheney, até às administrações democráticas, do Iraque à Líbia e ao Afeganistão, foram levando o caos ao Médio Oriente e a humilhação ao Ocidente. E uma política que conduza, efectiva e rapidamente, a Europa e o Médio Oriente à paz. E o virar de página sobre uns Estados Unidos reféns de agendas radicais, a exportarem como valores da América e do Ocidente as bandeiras do wokismo e fazendo depender programas de ajuda da adopção de um alucinado catálogo de fatais experimentalismos.

É com espanto que vejo amigos e conhecidos, muitos deles católicos, que, por detestarem Trump, se declaram agora simpatizantes de uma dupla de abortistas radicais até ao nono mês (o “sofrimento psicossocial”, que passou a integrar a lista dos critérios elegíveis para a “inviabilidade do feto”, também justifica aborto até aos nove meses), e com vontade de estender a prática, por lei, a toda a América. O facto de considerarem Trump “mentiroso” ou “grunho” não me parece razão suficiente para “endossarem” uma Kamala algures entre o saco de vento e a caixa de Pandora.

Já quanto a J.D. Vance, o segundo de Trump, poucas vezes um político americano terá tido um pensamento tão coerente, estruturado e sofisticado.

O debate

Dito isto, o debate correu mal a Trump. Kamala Harris seguiu um guião bem ensaiado: grandes, bons e generosos princípios, a união de todos independentemente da cor da pele, um qualquer virar de página (sobre a própria Administração?), uma espécie de sermão da montanha secularizado, entremeado de modo tranquilo com provocações ao adversário e mentiras descaradas, como a sua história do fim da guerra no Afeganistão, logo contraditada – não evidentemente, ali, pelos pivots – mas pelo general Keith Kellogg, que participou nas negociações.

Trump pôs de lado o sentido de humor e pose presidencial e foi-se deixando levar pelas estudadas provocações da adversária. E foi sendo excessivo, o que lhe é habitual, mas o que, desta vez, lhe foi prejudicial. Por exemplo, sabendo-se que Harris e Waltz são pelo aborto incondicional e sem prazo, para quê acrescentar um ponto, e falar em assassínio de recém-nascidos? Sendo a imigração ilegal um flagelo na América, para os que chegam e para os que estão, e tendo Kamala Harrris demonstrado a sua incompetência em controlá-la, para quê trazer a história dos imigrantes que devoram os animais de estimação dos “bons americanos”? Para quê voltar à fraude eleitoral? Porquê não condenar claramente a invasão do Capitólio, mesmo insistindo na bondade do próprio discurso, e continuar a atribuí-la exclusivamente à (real) recusa de Nancy Pelosi de reforçar a segurança? Porquê não recordar mais oportuna e factualmente a actuação da candidata democrata quando do violento “assalto às instituições” por militantes do Black Lives Matter?

De qualquer forma, não parece que o debate tenha tido grande efeito sobre o eleitorado, mantendo-se os candidatos muito próximos, quer na totalidade da massa eleitoral, quer nos Estados decisivos.

Uma certeza e uma dúvida

Quanto à parcialidade da comunicação, não devem nem podem restar dúvidas. A narrativa mediática dos grandes meios e da chamada “informação de referência” – do New York Times ao Economist, do Le Monde ao El País e aos nossos correspondentes e comentadoresnão se dá sequer ao trabalho de simular isenção. Porque afinal, no ringue de combate, alguém tem de encarnar o Mal; e Trump, a besta loira, o diabo em pessoa, fá-lo na perfeição.

Na vida real, só fica uma dúvida: ou o Diabo, que costuma ser subtil e insidioso, está a perder qualidades e as coisas passaram a ser o que parecem, ou também anda a serpentear por outras bandas, sob a aparência de Bem.

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COMENTÁRIOS (de 55)

Miguel Seabra: Trump é desbocado e por vezes parece uma criança grande. Em geral, é genuíno para o bem e para o mal. Kamala é falsa da ponta dos cabelos às unhas dos pés. É um lobo a dizer que é vegetariano e eu também me admiro como é possível que pessoas inteligentes de centro e de direita engulam entusiasticamente este lixo….          Ana Luís da Silva: Quem seja conservador e defensor dos direitos humanos só pode ter a mesma opinião de Jaime Nogueira Pinto. Quanto a mim a pedra de toque das eleições nos EUA tem duas metades. A primeira é que Trump tem provas dadas de ser um bom Presidente. A segunda é que alguém que defenda o aborto até ao nono mês de gestação ou é um monstro ou um facínora. Ainda assim Kamala dá a sensação de ser uma boneca articulada completamente oca, desprovida de humanidade palpável, um mecanismo com sistema de vida sofisticado que se enche com o discurso que no momento político der mais jeito debitar         José B Dias: Subscrevo na íntegra.               Paulo Luis da Silva: Mais um excelente artigo!  Vivemos de facto tempos perigosos que tornam imprevisível a realidade com que nos havemos de confrontar, não daqui a cem anos, mas até ao final desta década. Sobre a eleição dos EUA, o que me pergunto é: caso a Kamala vença as eleições, quem vai estar de facto a governar os EUA na sombra            José B Dias > klaus muller: A Springfield, Ohio, resident on his way to work called 911 to report spotting four Haitian migrants snatching geese near a city park just two weeks ago, according to a newly revealed recording. The call to a Clark County Sheriff’s Office dispatcher, obtained by the Federalist, appears to support a viral claim about some members of the migrant community eating animals in city parks.           Manuel Rocha: Trump foi um presidente que não teve guerras e arquitectou os Acordos de Abraão. Isso é mau para a Europa?  Já com os presidentes democratas (Obama Biden) as guerras começam ou não acabam (Ucrânia Médio Oriente, Síria) isso é bom para a Europa?  Na economia a Europa só tem de deixar de regulamentar tudo e um par de botas, para ser mais inovadora, competitiva e rica               Glorioso SLB: Se fosse americano, certamente votaria Trump. Como europeu, prefiro Kamala. Como pai, prefiro Trump. Portanto, voto no boçal Trump.          João Floriano: Eu também votaria em Trump se  o pudesse fazer. Por muito que o tentem apresentar como um americano bonacheirão, Walz apoia uma política tenebrosa no caso do aborto, teve actuação duvidosa nas manifestações que se seguiram à morte de Floyd e ao Defund the Police e apoia as transições de género sem critérios válidos (o sofrimento psicossocial não vale) a não ser o oportunismo político. Quanto  a Kamala o cronista identificou perfeitamente os problemas da sua vice presidência e não devem ser nada abonatórios para  a candidata, já que a estratégia seguida é «despir» Kamala das antigas roupagens e «vesti-la de novo». Sem qualquer admiração, o debate não provocou alterações significativas e apesar de se reconhecer que Trump não esteve na sua melhor forma, democratas e republicanos continuam empatados. Isto significa que as trincheiras já foram cavadas, os lados escolhidos e que restará poucos indecisos. Talvez um resultado de uma campanha longa e cansativa mesmo para os eleitores. Apreciei o termo de «sofrimento psicosocial» para apoiar o aborto até final da gravidez, o que configura um caso de assassinato digam o que disserem. O argumento tem passado despercebido por cá  o que é estranho. Será que foi usado na reunião da JS quando propuseram o aumento do tempo limite para a realização do aborto? será que Alexandra Leitão o utilizou para justificar o apoio que o PS dá aos seus jotinhas? Pode ter-nos passado despercebido. Quanto à última questão do artigo, tenho  a certeza que o MAL serpenteia por aí travestido como BEM e enganando muito boa gente. O BEM por sua vez transformou-se numa espécie de remédio amargo que não se quer tomar, apesar de poder curar muitos dos danos causados pelo wokismo: o que arde, cura!             Maria Tubucci: Excelente Dr. JNP. Mas tu tens cérebro ou emprenhas pelos ouvidos? Digo muitas vezes quando pessoal conhecido diz apoiar a KH. Ah e tal, o DT quer acabar com a democracia. Até 27 Junho a KH dizia à grande comunicação social que estava tudo com Biden. Um mês depois os democratas empurram Biden da corrida à presidência dizendo que tinha dificuldades cognitivas, instalam KH na corrida à presidência, sem ter ido a votos nas primárias nem sido escrutinada, herdando os delegados do Biden bem como as contas bancárias da sua campanha. Isto é democracia? Desde então a “indústria” das celebridades, a “indústria” política democrata, a “indústria” dos actores, a “indústria” dos cantores, a “indústria” da imprensa escrita e TVs promoveram a maior limpeza de imagemde  que há memória, impingindo KH como o melhor deste munto e arredores para a presidência dos USA. No fundo todos sabem que KH é fraquíssima e incapaz de motivar alguém a ir votar nela, logo puseram-se todos em campo para irem caçar votos para a KH. Em termos de expressão corporal vê-se que DT é mais real e humano, irrita-se, diz o que pensa e gosta da América. Enquanto KH é totalmente postiça, muda de sotaque conforme o estado onde está; é troca-tintas em 2020 era contra o fracking e contra a construção do muro, agora é a favor; não gosta dos americanos, promove o extermínio de bebés e a mutilação genital de adolescentes confusos. Ao longo dos últimos 4 anos como vice-presidente KH mostrou que nada fez para melhorar a vida dos norte-americanos. Para além da sua administração ter tornado o mundo mais perigoso e instável. Acho que KH é tipo robot, programado para dizer e fazer o que o dono manda, será uma desgraça para o mundo se ganhar..             Jorge Tavares: Com franqueza, caro Nogueira Pinto, acha mesmo que Trump se limitou a ser "pouco feliz no modo como lidou com o ataque ao Congresso, em Janeiro de 2021, por alguns dos seus partidários"? A sério?!              Fernando ce: Votaria em Trump nos EUA, apesar de Trump. Trump tem uma política de direita de na economia, nos costumes , nos valores da sociedade. Kamala, um política socialista na economia, woke nos costumes e , mais do que uma politica duz que quer “avançar e não voltar atrás” fazendo -me lembrar um qualquer PREC com uma fixação de preços, e meras promessas de um mundo melhor, entremeado com gargalhadas e um desconhecimento confrangedor de política internacional.                  José Neto: A crónica de JNP tem todo o mérito e rigor do costume e ainda, para mim, um brinde extra: lendo a crónica e também os comentários dos leitores, fiquei a saber que há por aí mais pessoas a pensar como eu. Cheguei a pensar que era o único! Ufa...            Nuno Borges > Maria Tubucci: Putin prefere uma fraca Kamala na Casa Branca. Com Trump nem se teria atrevido a invadir a Europa.

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