Eu até que fui dos da “miuçalha branca” que também participou no apoio aos “assaltantes” do Rádio Clube de Moçambique, nesses dias 8 e 9 de Setembro de 1974 – Eu e o meu marido e o Artur, (que por sinal aparece na segunda página de um livro – “AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE” – de Ricardo de Saavedra – datado de Joanesburgo, Agosto de 1975 – que me foi oferecido por um amigo, pela Páscoa de 1976 – de que resultou a surpresa da descoberta do meu pequeno Artur, de quatro anos, logo na segunda página após o Prefácio, encostado a um Volkswagen - a foto de um velho mais abaixo sob a bandeira, escondendo provavelmente as lágrimas da sua vergonha patriótica ou da sua impotência prevista. Dia maravilhoso esse em que, carregados nós com os restos da festa de anos da Paula para distribuir pelos militares portugueses “assaltantes” do Rádio Clube, uma colega que descia com o marido e os filhos pequenos no seu carro, erguida em pé, ao ver-me, gritou: “Berta, também lhe devemos isto a si”, frase que nunca esqueci, não por conta de um ego vaidoso mas apenas consciente da sua participação literária “reaccionária", o meu último livro – “Pedras de Sal” tendo saído recentemente – onde questões, como as expostas por HELENA MATOS, no texto infra, haviam sido focadas, com ironia, naturalmente. Esse livro, enviei-o ao Dr. Almeida Santos, em carta adequada, que mereceu uma troca de correspondência delicada e virtuosa entre ambos, que reproduzo no final, saltando os 54 dos 138 Comentários ao texto dos COMENTADORES de HELENA MATOS, por me parecer importante como documento de um dos participantes da odisseia, desses “miuçalhos” lusitanos - (da expressão de Helena Matos) - reproduzida na obra “CRAVOS ROXOS”, que contém “PEDRAS DE SAL” em 2ª edição.
O medo de perguntar
Meio século depois, os acontecimentos
de 7 de Setembro de 1974 em Moçambique continuam a colocar a mesma questão: até
quando o activismo vai impor o medo de perguntar?
HELENA MATOS Colunista do Observador
OBSERVADOR, set.
2024, 01:16137
Milhares de pessoas terão sido
assassinadas a tiro, catana, queimadas vivas… Talvez tenham sido três mil.
Talvez mais. Talvez menos. Dificilmente,
sairemos do domínio das estimativas porque nunca houve a preocupação de saber o
seu número ou as circunstâncias da sua morte. Eram brancas, negras, asiáticas,
mestiças. Em Portugal, nos jornais, nas rádios e na televisão nunca houve
dúvidas: tratou-se de uma “aventura colonial da última hora” por parte da
“miuçalha branca” que ensombrou o “momento de júbilo”.
Comecemos pelo “momento de júbilo”?
Estamos em Setembro de 1974. Os portugueses são informados de que “O Estado português, tendo
reconhecido o direito do povo de Moçambique à independência, aceita por acordo
com a Frente de Libertação de Moçambique a transferência progressiva de poderes
que detém sobre o território nos termos a seguir enunciados.”
Ou
seja, o que em Moçambique temiam, quer as minorias branca e oriental, quer os
simpatizantes e dirigentes negros de vários partidos e movimentos
nacionalistas, estava consumado: os moçambicanos, a quem
menos de três meses antes Almeida Santos, ministro da Coordenação
Interterritorial garantira um referendo para decidirem o futuro daquele
território, iriam passar a viver numa república popular dirigida pela Frelimo.
Como o ministro dos Negócios
Estrangeiros, Mário Soares, declarara a 6 de Setembro ao chegar a Lusaka para
firmar os acordos com a Frelimo: “a delegação portuguesa estava na
Zâmbia para entregar o poder à Frelimo.” De facto era isso que estava a acontecer. É portanto este “o momento
de júbilo”. E é aqui que começa a “última aventura colonial” protagonizada pela
“miuçalha branca”.
A 7 de Setembro, o Rádio Club de
Lourenço Marques é ocupado e passa a designar-se Rádio Moçambique Livre. Os ocupantes declaram-se contra o que definem como
entrega de Moçambique à Frelimo. Entre
os ocupantes do Rádio Club estão também líderes nacionalistas negros como
Joana Simeão, Paulo Gumane e Uria Simango. Apelam à intervenção de Spínola, com
quem alguns, na qualidade de membros da FICO (Frente Integracionista de
Continuidade Ocidental), se tinham encontrado tempos antes no Buçaco. Aí,
garantem, o Presidente da República ter-lhes-ia dito “Façam vocês qualquer
coisa que mostre a vontade da Província, para eu vos apoiar.” Eles fizeram “qualquer coisa”. Mas em
Setembro de 1974, com o Acordo de Lusaka já firmado, com Spínola cada vez mais
fragilizado e obcecado com o futuro de Angola, era tarde demais para que o
apoio do ainda presidente da República se pudesse fazer sentir. Os revoltos
resistem até 10 de Setembro. Entretanto a violência explodira: violações, gente
decepada, queimados vivos, linchados e vários desaparecidos. Os
acontecimentos do 7 de Setembro de 1974, a violência que os acompanhou e a vaga
de repressão que lhe sucedeu marcam um antes e um depois: até ao final de
Agosto de 1974, tinham deixado Moçambique 5 mil portugueses. Mas só nas últimas semanas de Setembro e
primeiros dias de Outubro saem de Moçambique oito mil portugueses para a África
do Sul. Em Lisboa começam a cair pedidos de transferência para a “metrópole” de
professores, carteiros, funcionários dos caminhos-de-ferro, da aeronáutica, dos
bancos. Em Dezembro, segundo revela Vítor Crespo, Alto-Comissário de Moçambique,
em Lourenço Marques sobrava apenas um ginecologista e já nenhum ortopedista.
Simultaneamente a repressão cresce no território administrado por
Portugal. O Alto-Comissário Vítor Crespo
institui que questionar a representatividade da Frelimo é um crime contra a
descolonização e um sinal de racismo. Militares e agentes de segurança portugueses desempenham um papel
activo na detenção, interrogatório e entrega à Frelimo daqueles que se lhe
opõem, nomeadamente de dissidentes da Frelimo e nacionalistas negros que
participaram na revolta do 7 de Setembro. Por grotesca ironia a revolta em que os jornais só viam brancos não
só teve a participação de dirigentes negros como estes pagaram com a vida o seu
protagonismo nestes acontecimentos: Joana Simeão, Paulo Gumane e Uria Simango,
além doutros dissidentes da Frelimo, seriam internados em campos de reeducação
daquele movimento e queimados vivos mais tarde.. (No caso de Uria Simango a sua
própria mulher, Celina, foi também morta.)
Mas a imprensa portuguesa em 1974 não
tem dúvidas: no 7 de Setembro está-se perante uma “revolta dos colonos
brancos”, uma “aventura colonial da última hora” protagonizada por “rebeldes
brancos”, “miuçalha branca”, “grupúsculos”, “reaccionários”, “ultra
reaccionários”, “racistas”, “colonialistas” … que ensombraram o “momento de
júbilo” representado pela assinatura do Acordo de Lusaka.
Meio século depois o que surpreende
não é que o 7 de Setembro de 74 em Moçambique tenha sido relatado assim mas sim
a certeza de que hoje voltaria ser relatado assim. Porque, tal como aconteceu a propósito do
7 de Setembro de 74, não se trata tanto da imposição duma visão dos factos e do
seu silenciamento mas sobretudo do poder de instituir o medo de perguntar. Do medo de ser rotulado. Do
medo de passar para o lado dos controversos, que é meio caminho andado para
passar a conservador e de conservador a reaccionário e de reaccionário a outra
coisa qualquer já sem retorno social possível.
Meio século depois, quantos crimes
foram necessários para chamar ditador a Maduro? Ou o que vai ser necessário
para que deixe de ser visto como um risco denunciar a ideologia de género nas
escolas? E por quanto tempo mais vamos ter de esperar para
que se perca o medo de desmontar as efabulações sobre a escravatura como pecado
do homem ocidental e branco que se tornaram uma espécie de mantra obrigatório?…
O 7 de Setembro de 1974 em Moçambique
tem muito de perturbante. Mas o facto de sabermos tão pouco sobre o que ali
aconteceu nessa data também.
*****
Troca de missivas:
(TEXTOS de «LUSOS /74» (III LIVRO de “CRAVOS
ROXOS”, «MAIS PEDRAS DE SAL»):
1-
«UMA CARTA EM PAPEL COR DE ROSA»
«Dr. Almeida Santos: Envio-lhe o meu último
produto literário* (*Envio de PEDRAS DE SAL”). Espero que o aprecie, tanto mais
que me dirijo a alguém capaz de idênticos produtos. A única diferença consiste
em que ao Dr. Almeida Santos são propícios outros recursos copiosos, além dos
literários.
Eu tinha também, embora de modo algum
copioso, o de mestra de meninos, nestas terras que o sr. Dr. tanto ajudou a
colonizar, conquanto nelas se não eternizasse propriamente como velho colono.
Sei que o Sr. Dr. tem instigado os seus
amigos no sentido de irem cavar para outros lados. Neste momento em que, graças
a uma fina-flor pseudo portuguesa de amantes da variedade governativa e
demográfica, me consideram estrangeira nestas terras que aprendi na escola a
julgar portuguesas, necessitava do apoio de alguém que soubesse atentar nas
pessoas válidas para cavarem para outros lados, sem o espectro do desconforto
pecuniário.
O sr. D., como pessoa provadamente atenta
aos aspectos pecuniários, poderá ser esse alguém e eu a pessoa válida.
Mando-lhe essa prova e a informação de
que os meus cinco filhos necessitam de que o continue a ser por alguns anos
mais.
Sugiro, pois, que me apoie, através de um
prémio literário mais chorudo e pontual do que a tença dada ao Camões. Que bem
me posso comparar ao Camões. Ele cantou as glórias do povo português no seu
renascimento. Eu canto as mesmas no seu falecimento.
Gostaria de sair daqui, para estudar aí
novos tipos da comédia humana que me proponho analisar. Os entraves pecuniários,
resultantes de um colonialismo digerido à pressa, levam-me a recorrer a si, que
o digeriu sem dúvida mais espectacularmente sob todos os pontos de vista.
Com a agonia na alma, em previsão da do
corpo, que o sr. Dr. ajudou a perpetrar, sem contemplações para com os seus
irmãos de cor, embora, indiscutivelmente, de raça muito diversa.
Berta Brás
P.S. – O papel cor-de-rosa justifica-se,
creio, pela escassez do branco, nestas terras perfeitamente colonizadas por
algumas minorias esmagadoras.
Ag.
74
2-
A RESPOSTA DO SR. MINISTRO
Ministério da Coordenação
Interterritorial
Gabinete do Ministro
Berta
Ainda sem ter tido tempo para ler o seu
livro – é esta uma das fatalidades da minha nova condição – eis-me a
agradecer-lhe o ter-mo oferecido. Folheei-o num lampejo e pareceu-me amargo. Ou
só amargurado?
Não creia que é fácil esta tarefa que o
destino me reservou de ajudar a liquidar um império. Uma espécie de anti Infante.
Porquê eu?
Pelo contrário, tenho aconselhado as pessoas
a conservarem-se em Moçambique. Acredito em que poderão continuar a viver aí,
apesar de tudo mais agradavelmente do que na Metrópole.
Não obstante, diga concretamente em que medida
posso ir ao encontro das suas preocupações e desejos.
Em breve o futuro de Moçambique estará
definido “tant bien que mal”. Espero que não de todo mal, dado o ponto de
partida.
Creia-me
Amigo ao dispor
ALMEIDA
SANTOS
3-
RESPOSTA AO SR: MINISTRO
Sr. Ministro Almeida Santos:
Confesso-me honradíssima pela inédita
dita que me coube de trocar correspondência amável com um dos mais representativos
representantes da nação portuguesa. Porquê eu?
Lamento que as fatalidades da sua nova
condição lhe não permitam mais que uns lampejos de folheamento das minhas
Pedras, o que conduz fatalmente a interpretações erróneas. Não me parece amarga
a mim a minha obra – quando muito salgada – e amargurada não vejo em quê. Mas
talvez o sinta assim a sensibilidade do sr. Ministro, apurada nos trâmites
alegremente vertiginosos da actual política, incompatíveis com o equilíbrio e a
sensatez prazenteira que transparecem no meu sal luso.
A observação do
sr. Ministro das dificuldades surgidas na liquidação do Império espantou-me.
Ouvi falar em 50 milhões, mas foi com certeza alguém mais optimista, ciente das
vantagens deles para a formação de novas minorias capitalistas ou no
fortalecimento das anteriores. Na minha opinião, muito pessoal, confesso, a
liquidação foi grátis, dada a urgência posta na empresa. Não posso, pois,
deixar de o felicitar, bem como ao seu queridíssimo amigo, Dr. Mário Soares,
pelo “record” da proeza.
Para
concordar com as observações dos nossos governantes – entre os quais o Ministro
Almeida Santos – da possibilidade de permanência aqui, necessitaria de exemplos
fortes, como o do Sr. Ministro, que preferiu, todavia, estranhamente, a
permanência metropolitana, juntamente com a família e as matérias
indispensáveis para o amenizar das dificuldades surgidas.
Concretamente,
Sr. Ministro, já que a minha sugestão do prémio literário o não seduziu, o que
acho naturalíssimo, creia-me, não se me dava de possuir um prédio de trinta
andares de rendimento numa das alegres avenidas da nossa Lisboa. Posso, em todo
o caso, fazer um abatimentozinho de andares, à semelhança do abatimento feito –
a crermos no boato dos 50 milhões – a quando da venda de Moçambique aos nossos
irmãos pretos.
Pela parte
que me toca, não espero nenhum futuro promissor nesta terra, e justamente pelo
afastamento dela de um dos seus mais representativos representantes. – o Ministro
Almeida Santos. Prefiro o retorno à pátria do Infante e do Anti, e felizmente
poderei sempre contar com a protecção do último, que tão amavelmente se afirma ao
meu dispor, no que lhe fico profundamente reconhecida.
Berta Brás
PS- A mudança
de direcção para perto de V. Ex.ª – Parede (1) - justifica-se, não tenho
dúvidas em crê-lo, pelos mesmos motivos, conquanto menos favorecidos pela
sorte, que fizeram mudar a V. Exª.
Já no fecho
desta missiva, um rebate perturbou a minha consciência escrupulosa. Receando o
excesso de altura do meu prédio com trinta andares com abatimento numa terra
sujeita a tantos tremores como é a nossa Lisboa, outra alternativa se pôs ao
meu espírito iluminado presentemente de alternativas e interrogações sem
resposta: A de poder fazer corresponder os 3000 contos da minha conta bancária
de cá, a 3000 contos (também com possibilidade de abatimento) daí, o que
suponho não vai contrariar nenhuma dentre as numerosas especialidades do
Ministro Almeida Santos.
Set. 74
(1)
– Escrita de Lourenço Marques, a carta foi enviada já
de Portugal.
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