Sem sorrisos, a história da regressão civilizacional referida por Alberto Gonçalves com o “sorriso” da sua
inteligente visão habitual.
Mas, como disse Gedeão, “Cada um
é seus caminhos”, haverá de tudo, como na botica, e o certo é que hoje, os
jovens mexem nas máquinas facilitadoras da vida, com uma tal perícia, que nunca
terão, talvez, os que de pequeninos amaram ler e até escrever, que se sentem
leigos e mesmo impotentes, perante o domínio das máquinas, onde esses jovens
poderão colher informação e leituras, se o quiserem, ou puderem. O certo é que
já os clássicos condenavam a escassez cultural dos jovens no seu tempo, mas a
evolução fez-se e continuará a fazer-se - entre nós cá, mais tremidamente, é certo,
como sempre foi, por razões conhecidas, entre as quais a de um carisma nosso,
de pieguice estreita e quantas vezes fechada à razão. Não deixa de parecer
assustador, e os governos são responsáveis, nas leis pedagógicas que impõem, e
a tal história de uma democracia vã.
Uma “story” de encantar
O que está em curso é um curioso processo de regressão
civilizacional, que a retirada dos telemóveis das escolas talvez atrase em
cinco minutos.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 14
set. 2024, 01:273
Quando li que o governo “recomendou”, ou
vai “recomendar” a proibição dos telemóveis até ao 2.º ciclo, a minha reacção
imediata foi averiguar o que é o 2.º ciclo. É o “preparatório” do meu tempo,
informaram-me sem grande paciência. Depois perguntei a que propósito os
cachopos andam com telemóveis na escola. Não me responderam. A medida deve ser
das coisas mais bem intencionadas e mais inúteis que consigo imaginar.
Houve um período, para aí há uma dúzia,
dúzia e meia de anos, em que me interessava por estes assuntos. Na época, escrevi na Sábado e
no DN o que, à distância, me parecem ser demasiadas crónicas sobre
criancinhas e o futuro que esperava as criancinhas após se desenvolverem (força
de expressão) num ambiente excessivamente protegido e tecnologicamente
anestesiado. Não eram crónicas optimistas. Se bem me lembro, e dado que o caso não exigia especiais
dons de vidência, foram certeiras. E certeiras a ponto de, sem que eu o
decidisse ou sequer me apercebesse, a partir de determinada altura ter abandonado o tema para sempre.
Ou quase, se contar com o presente
artigo. É possível que o meu inconsciente, a existir, soubesse com
antecipação o que o meu consciente, de
existência intermitente, teimava em ignorar: já não valia a pena. Participar.
Impedir
em 2024 os meninos e as meninas de aceder ao telemóvel no expediente escolar é
o mesmo que vedar a um apreciador de carne o bife ao almoço. Não é por isso que ele deixará de ser
carnívoro – e de resto pode
jantar posta de vitela e cear faisão. Agora é tarde, e Inês, se não é
morta, é pelo menos tão dependente do iPhone ou do Samsung que, privada da
engenhoca, dificilmente desatará a adquirir com toda a pressa as “competências
sociais” e a autonomia que jamais possuiu e conheceu. O provável é que a pobre Inês passe o recreio a contemplar a parede
como um zombie sem apetite por cérebros. Ou sem cérebros nas
proximidades.
Não admira. E não falo de nada aparentado à “erudição”, a “erudição” ligeira que
antigamente talvez incluísse alguma familiaridade com os “clássicos” russos e a
relevância de Steinmetz. Sei de adolescentes a roçar a idade adulta,
filhos e filhas de pais licenciados de classe média, que não conseguem acertar
na capital de França, ou identificar Paul McCartney, ou – felizardos – nomear o presidente em funções (digamos) da
República portuguesa. Em contrapartida, são altamente
versados e versadas em “dancinhas” do TikTok e youtubers “engraçados”.
E em joguinhos com bonecos e sanfona. Além disso, encontram-se
actualizadíssimos em matéria de filtros fotográficos para o Instagram. Na
oralidade, substituíram o anacrónico “sim” por “iá”, sessenta por cento das
restantes palavras por “tipo”, e quarenta por cento por brasileirismos em voga
ou anglicismos que decoraram. Embora não garanta que o QI das recentes gerações
baixou, “facto” que uns estudos afirmam e outros negam, afirmo a pés juntos que,
por isto e por aquilo, as recentes gerações assustam.
Assustam, não surpreendem. Uma abundante literatura “reaccionária”
previu o casamento entre a erosão da exigência educativa e o advento destas
criaturinhas excessivamente mimadas, dependentes, vigiadas, susceptíveis e,
admita-se, assaz ignorantes. Para citar exemplos, o Closing of the American
Mind, de Allan Bloom, é de 1987. Em 1998, antes da democratização dos
telemóveis e da alvorada da internet, Melanie Phillips publicou All Must
Have Prizes. A Nation of Wimps, de
Hara Marano, que aponta holofotes para a “parentalidade” sufocante, saiu em
2008 e ainda só descreve a influência dos telemóveis básicos, toscos porém
suficientes para alimentar o controlo e a fragilidade dos petizes.
E The Anxious Generation, de Jonathan Haidt, é de Março passado e não esgota as
consequências nos meros problemas de aprendizagem e socialização: o autor
atribui à veneração permanente dos telemóveis e da internet em geral a
responsabilidade por abalos graves na saúde mental da criançada, que hoje
abarca gente com 25 ou 30 anos.
A chatice é que semelhantes mudanças, e semelhantes mutantes, não
caem do céu. Os telemóveis também não. Instada a comentar a “recomendação” do
governo, a Confederação Nacional de Associações de Pais (CONFAP) acha que “o
telemóvel é uma ferramenta de segurança e monitorização para os pais”. Pois é. E esse, quer a CONFAP perceba ou
não, é que é o ponto. As crianças usam telemóvel na escola porque a vasta
maioria dos pais deseja que o façam, de modo a manter o vínculo (“o umbilical
eterno”, na expressão de uma psicóloga), “ficar descansados” e assegurar-se que
os rebentos regressam inteiros a casa, onde continuam a fitar o ecrã que calhar
pelo serão afora. Assim não
incomodam os progenitores, igualmente colados às emoções do WhatsApp ou de uns
retratos a que chamam “stories”. Tais pais, tais filhos: para todos a
proficiência da miudagem na matemática ou no português nunca é a principal
preocupação. E não será uma restrição facultativa e manca e limitada a uma fracção
do percurso escolar a modificar o que se tornou uma espécie de vida, se um
simulacro é viver.
Se quiserem forçar comparações e inventar um consolo, lembrem-se que
Sócrates, o grego não o “engenheiro”, se afligia com o impacto da escrita na
memória humana. E que os críticos
de Gutenberg acusavam a imprensa de fomentar a preguiça. E que a escrita de Nietzsche se alterou
no dia em que ele trocou a caneta pela máquina de escrever. Mas não
há consolo nenhum, e as comparações não são razoáveis. O que está em curso é um
curioso processo de regressão civilizacional, que a retirada dos telemóveis das
escolas talvez atrase em cinco minutos. E eu nem sou dos que acham as
maquinetas completamente desprovidas de utilidade, sobretudo se estiverem a ler
esta crónica numa.
ESCOLAS EDUCAÇÃO SMARTPHONES TECNOLOGIA
Glorioso SLB: Sim, estou a ler num
telemóvel. Mas ñ concordo c o cronista. Retirar os telemóveis das escolas, e
diria até de muitas reuniões de trabalho, é muito importante. Concentração,
aprendizagens, tudo.
klaus muller > Glorioso SLB: Não pude, porém, deixar de
sorrir (o que é muito raro hoje em dia) com o final da crónica. Mas eu sou muito básico em
questões de humor.
klaus muller > klaus muller: Pelos vistos não sou só básico
no humor, sou-o também culturalmente, pois não fazia a mais pequena ideia sobre
quem é Paul McCartney. Mas, curiosamente, sei quem é Mick Jagger, tal como
McCartney também ele compositor/cantor e mais ou menos da mesma idade. Bem sei que, como dizia alguém, a utilidade da cultura é permitir-nos dizer
tolices com distinção. Daí não estar muito preocupado.
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