Respondendo à última consideração deste
excelente estudo de PATRÍCIA
FERNANDES com a graça repetitiva do juiz do excelente programa “A SENTENÇA”,
que vejo religiosamente e diariamente na TVI. Se somos democratas, temos,
naturalmente, que subordinar as leis multiculturalistas às regras da
democracia. O mal é que existem regras menos democráticas nesses povos “invasores”
actuais, que insistem nos seus próprios preconceitos…
Os muitos problemas do multiculturalismo
Multiculturalismo não é uma palavra inócua para
significar “respeito pelas diferenças culturais”, como é muitas vezes usado
entre nós. E gera inúmeros problemas.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 09 set. 2024, 00:062
1. Cosmopolitismo e multiculturalidade
É difícil evitar uma sensação de
estranheza quando, no metro da cidade universitária, em Lisboa, nos deparamos
com as supostas palavras de Sócrates, o grego, nos azulejos: “Não sou ateniense, nem grego. Mas sim um
cidadão do mundo.” Gera estranheza pois Sócrates
não nos deixou qualquer escrito e as ideias que lhe atribuímos são aquelas que
os seus discípulos lhe atribuem – estando aquela frase muito distante dessas
ideias, em particular quando relatam os momentos que antecederam a sua morte.
Se Sócrates tinha alguma certeza era a de que era cidadão de Atenas, a quem
devia a condição de homem justo que respeita as leis da cidade.
Mas é verdade que, numa perspetiva
histórica, ele se encontrava já numa fase de decadência do período dourado da
polis, e a passagem do período clássico para o período helenístico
representou uma mudança no modo como os gregos se viam no mundo: o seu posicionamento deixou de ser feito
por relação à polis – como havia acontecido pelo menos desde o século VIII a.C.
– e passou a ter como referência um espaço mais amplo: o kosmos, que as
conquistas de Alexandre anunciavam. Tratava-se de uma nova disposição militar (a da conquista) que se traduzia não só numa nova
disposição mental (ser kosmopolitês, cidadão do kosmos), como também em novas abordagens
filosóficas, nomeadamente com o estoicismo, a primeira grande teoria da
universalidade (e que
podemos, com esforço e polémica, colocar nos primórdios do liberalismo).
É o estoicismo, e a sua abordagem
universalista e racionalista – que se terá inspirado em Diógenes, o Cínico –,
que vingará na civilização antiga que sucede à dos gregos: Roma e a sua
abertura ao mundo como símbolo de passagem da velha polis à cultura cosmopolita.
E é este o contexto dos azulejos da cidade universitária: aquela frase é de
Plutarco, que terá vivido entre 46 e 120, e que a atribui a Sócrates vários
séculos depois da sua morte.
Plutarco, de naturalidade grega e
cidadania romana, representa bem essa fase histórica marcada pelas virtudes
cosmopolitas e que foram recuperadas no século XX, quando a palavra
cosmopolitismo se tornou parte do vocabulário sinalizador de virtude: as
pessoas boas defendem sempre o cosmopolitismo e as cidades que valem a pena são
sempre cosmopolitas e, por isso, devemos considerar-nos cidadãos do mundo. Tudo
o resto é parolice e ignorância.
Filosoficamente, o cosmopolitismo é uma
teoria normativa. Não só defende um modelo político que desconsidera as
lealdades nacionais e propõe mecanismos de governação globais (inspirados em
projetos supranacionais como a UE e a ONU), como entende que o ideal
cosmopolita é aquele que as sociedades justas devem ambicionar, de acordo com
um comprometimento moral com todos os seres humanos. Projetos dúbios, mas que
se têm tornado mais populares conforme as sociedades se têm tornado mais
multiculturais.
2. Multiculturalidade e multiculturalismo
A distinção entre multiculturalidade e multiculturalismo é
fundamental e a sua desconsideração, recorrente no espaço público,
impossibilita uma discussão adequada deste tema. Falar em multiculturalidade ou dizer que uma sociedade é
multicultural remete para o domínio da descrição factual da realidade. E,
considerando o modelo globalista actual é uma descrição adequada para quase
todos os países ocidentais, que passaram a ter de conviver com diferentes
culturas no seu seio, ao contrário da
tendência mais monocultural que, genericamente, caracterizou os países europeus
nos últimos dois séculos (há excepções importantes, mas que constituem
precisamente excepções).
A discussão sobre se queremos ou podemos
evitar essa multiculturalidade terá de ficar para outro momento. Por
agora, a questão é a de saber como lidar com a multiculturalidade: ou seja, é a
de saber que modelos políticos existem para lidar sociedades multiculturais e
como se reflectem no domínio da lei, como é marca dos estados de direito
ocidentais.
Durante
muitas décadas, a resposta prevalecente foi o modelo assimilacionista, que nos diz, genericamente, que as pessoas que
chegam a um determinado país devem assimilar a norma desse país, ficando
vinculadas às regras e leis nacionais, nomeadamente àquelas que resultam da
dimensão cultural. Assenta na tradição
liberal individualista e de igualdade perante a lei, sem garantir direitos baseados em grupos, nomeadamente culturais.
Em relação a um dos aspectos culturais mais sensíveis – a
religião –, o modelo assimilacionista exige que a dimensão religiosa fique restrita à esfera
privada, não podendo ser invocada no espaço público. O
exemplo clássico deste modelo é o assimilacionismo francês, que impõe o princípio republicano da laicidade e
recusa, nessa medida, a utilização de
elementos religiosos no espaço público (tema
diferente é o de saber se este modelo tem sido bem-sucedido em França).
Contudo, na década de 1970, surgiu, no Canadá, um novo modelo de
integração, pensado sobretudo para lidar com diferenças culturais anteriores,
nomeadamente as do Québec. Designado como multiculturalismo, caracteriza-se pela crença de que a
pertença a um grupo cultural é de tal forma relevante para a identidade
individual, que o estado deve reconhecer direitos de grupo – os chamados
direitos culturais – e criar políticas da diferença. Prescinde,
assim, da dimensão individualista do estado de direito liberal e percepciona a
pessoa como parte de uma tradição cultural, que condiciona, decisivamente, o
seu comportamento. Como diz João Cardoso Rosas, “Essas políticas englobam o tratamento preferencial no acesso à
educação e ao emprego, as necessárias adaptações ao nível das línguas usadas no
ensino oficial e dos próprios conteúdos curriculares, o apoio estatal às
instituições representativas das minorias culturais, a concessão de direitos
especiais sob a forma de direitos positivos (por ex., direitos especiais de
representação política) ou de isenções legais (por ex., para permitir o gozo de
feriados próprios, o uso de indumentárias tradicionais, o abate de animais de
acordo com códigos religiosos, etc.).”
Multiculturalismo não é, assim, uma palavra inócua para
significar “respeito pelas diferenças culturais”, como é muitas vezes usado
entre nós. Trata-se de um modelo de integração que se traduz em
políticas públicas e previsões legais de grande impacto. E que gera inúmeros
problemas.
3. Os muitos problemas do
multiculturalismo
A literatura referente aos problemas
do multiculturalismo é vasta, ao ponto de alguns proporem já um modelo
substituto de interculturalidade, pelo que me limitarei a destacar dois
tipos de problemas.
O
primeiro tipo abarca o que podemos designar como problemas
liberais, por colocar em causa dois princípios básicos do
sistema liberal: a lei
igual para todos e a garantia de direitos e liberdades fundamentais. Como vimos,
uma das políticas da diferença defendidas pelo multiculturalismo é a garantia
de protecções específicas ou a atribuição de vantagens pela pertença a
determinado grupo cultural. Ora, isto pode traduzir-se em alterações
às regras jurídicas básicas, quando
garante que, num processo penal, um arguido que pertença a um determinado grupo
cultural possa invocar a chamada “prova cultural” (“cultural defense”, em inglês) para justificar o seu crime.
Trata-se de uma situação prevista em muitos sistemas jurídicos e a sua
adopção tem sido defendida academicamente em Portugal.
Ainda
mais problemático é a crescente permissão para que, em países onde as
comunidades muçulmanas são maiores, como no Reino Unido, surjam sistemas
paralelos aos tribunais nacionais para a resolução de questões que afectam
elementos desse grupo cultural. Chamados “Sharia
Councils”, debruçam-se
essencialmente sobre questões familiares (em especial, divórcios), mas levantam
muitas dúvidas quanto aos direitos das mulheres.
Mas
notemos como as próprias instituições internacionais já se encontram tomadas
pelo pensamento multiculturalista. Em 2018, o Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos, chamado a pronunciar-se sobre a condenação de uma cidadã
austríaca por ter dito que o casamento de Maomé com a sua terceira esposa
constituía uma situação de pedofilia, se recusou a garantir o direito à
liberdade de expressão, subscrevendo a ideia de que aquela condenação é
necessária “com o objectivo de proteger a
paz religiosa na Áustria” e abrindo as portas à previsão de blasfêmia.
O segundo tipo de problemas remete
para a dimensão democrática, e numa dupla vertente. Por um lado, uma sociedade que adopte os
princípios do multiculturalismo está a minar a possibilidade de as estruturas
democráticas funcionarem adequadamente. Afinal, as democracias
modernas só foram possíveis após um longo processo de construção de comunidades
imaginadas, para usar a expressão de Benedict Anderson, para formar uma
identidade nacional comum. É esse lastro comum, é essa partilha de valores e
interesses a permitir o funcionamento democrático. Historicamente, territórios
multiculturais assumiram sempre a forma de impérios (de Roma ao império
austro-húngaro); já o
regime democrático foi criado numa pequena e homogénea polis grega.
Por outro lado, o multiculturalismo apresenta um outro problema
democrático fundamental: é que a adopção das suas medidas e das suas
políticas tem sido feita sem qualquer fundamento democrático, i.e., sem
discussão pública das suas implicações e sem declaração explícita nas propostas
partidárias ou nos programas eleitorais. Na verdade, este modelo tem sido
imposto de cima para baixo, forçado pelas elites académicas e sem qualquer
suporte popular. Depois queixam-se de que as pessoas se revoltam.
COMENTÁRIOS
Nuno José: Muito bom texto! Se a democracia na pólis
está em risco com o multiculturalismo, imaginem então nas comunidades rurais.
Como é que um cidadão rural, como eu, percepciona as imposições que a elite
académica woke cosmopolita tem vindo a fazer na última década? Faz-me lembrar o
texto de Alberto Gonçalves, "O homem de Williams, Arizona" aqui há
bem pouco tempo no Observador. Mas essas cabeças "pensadoras", não
conseguem chegar lá! Acham que eu é que tenho o "defeito", tão
arrogantes são na sua "intelectualidade". Depois admiram-se que um
dia a democracia lhes falhe, porque nunca tiveram a menor ideia, de que ela já
falhou a muitos de nós!
Ricardo Ribeiro: Parabéns!
Está perfeito! Certamente no top 3 dos artigos deste ano! Explicativo,
sintético e fundamental para perceber a actualidade e importância de nós todos
termos conhecimento de como se chegou aqui! 5 estrelas! Leitura
obrigatória!
Meio Vazio: Excelente
lição.
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