De gabarito, no teatro como na vida: ANA ZANATTI.
Ana Zanatti: "Não temos de falar da
nossa vida privada lá porque somos artistas. Cada um sabe porque
se esconde"
Nem cinema nem televisão. Aos 75
anos, Ana Zanatti deixou-se ocupar pela escrita e tem um novo livro.
"Estou cada vez com mais vontade de estar no meu espaço íntimo e a
escrever", diz em entrevista.
OBSERVADOR 21 set. 2024, 18:5810
Demora-se alguns segundos na escolha de palavras e pretere “confronto” em favor de “ousadia”. Ana Zanatii, 75 anos, resume-se assim: “Acho que a minha vida, de certa forma, tem-se pautado por ousar certas coisas”.
Há 40 anos, quanto contracenou com o jornalista Pedro Oliveira
em O Lugar do Morto (1984), de António-Pedro Vasconcelos, um dos maiores êxitos da história
do cinema português, o seu nome ficou gravado na retina de muitos. Antes disso, já entrara, em 1982, na
primeira telenovela portuguesa, Vila Faia. E, antes ainda, havia ousado
protagonizar cenas de nudez no teatro e no cinema num país conservador acabado
de sair da ditadura.
Ao longo de décadas, Ana Zanatii
conseguiu o engenhoso feito de se manter discreta (é a sua natureza, dirá mais
adiante), não sem deixar de chamar a atenção. Como em 2009, quando se tornou uma das
primeiras actrizes e figuras públicas portuguesas a assumir que era lésbica
para reivindicar o direito pelo casamento para todos. “Temos muita preocupação em Portugal de
não sair fora daquilo que aparentemente parece que é o certo, de não se dar nas
vistas, de não ser diferente daquilo que é expectável.” Mas, às vezes “é
preciso rasgar, abrir janelas”.
Afastada há vários anos dos ecrãs e dos
palcos por escolha própria, Zanatti tem-se recolhido nas palavras, o princípio
de tudo. “Estou cada vez com mais vontade de estar no meu espaço íntimo, mais
íntimo e a escrever.” As Trapezistas, primeiro
livro de poemas, surge de uma sucessão de gestos na escrita. Se os
livros anteriores, de prosa e ensaio, tinham a intenção de abrir a porta a
temas fracturantes — como a denúncia da violência e preconceito como a
comunidade LGBT — este
destranca a gaveta que encerrava os poemas escritos na sombra de uma
fulgurante carreira como actriz.
Mas a escrita, e a poesia em
particular, esteve sempre com Ana Zanatti — como conta em entrevista ao
Observador.
▲ Capa
do livro "As Trapezistas", de Ana Zanatti, edição Abysmo, €12
Sei que escreveu sempre, mas só depois dos 50 anos começou a
publicar — Os Sinais de Medo, em 2003 (Dom Quixote), foi o seu primeiro
livro. Porque precisou de chegar aos 75 anos para um livro de poesia?
Boa
pergunta… Desde que comecei a ler e a escrever qualquer coisa por mim, as
primeiras coisas que escrevi foram poemas. Curiosamente, no outro dia estava a
reler alguns e eram poemas muito surrealistas. Lia bastante poesia, nessa
altura. Lia Pessoa, adorava Camilo Pessanha, Álvaro de Campos. Lia muito os
franceses, os simbolistas, o Verlaine, o Rimbaud, o Baudelaire. Até porque a
minha formação era de [línguas] românicas, portanto estava muito mais ligada à
língua francesa. Depois passei pela fase dos surrealistas, do Breton, do
Aragon, do Cocteau, etc. Estava sempre muito ligada à poesia e o que escrevia
eram poemas. Escrevia para mim.
Nunca os mostrou a ninguém?
Não,
não. Era para a minha diversão. Depois o tempo passou e comecei a escrever
letras para canções, mas continuei sempre a escrever alguns poemas. Um poema
aqui, outro poema ali. Quando comecei a publicar, em 2003, queria escrever um
romance. Até porque achei que o que escrevia em poesia não tinha qualidade
suficiente. Confesso que lia muito menos poesia do que lia ficção e ensaio e,
portanto, achava que não estava suficientemente conhecedora e a par da poesia
que se fazia por esse mundo fora.
Era uma questão mais intelectual então e menos de maturidade?
Nem
sei bem explicar se era isso ou não. Na verdade, queria escrever um romance
porque era o que precisava de fazer. Escrevi o primeiro romance, depois escrevi
o segundo, depois escrevi outros romances, livros infantis. Fui sempre tendo os
poemas em casa, assim, guardados. Um dia pensei: vou fazer qualquer coisa com
estes poemas. Comecei a lê-los e resolvi, como eram muito dispersos. Porque sou
uma pessoa muito dispersa, tenho tendência para me dispersar.
E no entanto aparenta ser muito organizada, para esta entrevista
trouxe todo um dossier consigo.
Mas é por isso mesmo. É por causa da
minha tendência para a dispersão que depois me obrigo a ter alguma organização
porque senão não sei onde é que ando. Quando tenho uma apresentação para fazer
ou qualquer outra coisa tenho comigo textos, poemas, tenho qualquer coisa que
seja preciso, de repente.
“Há sempre um que tem de ser o primeiro. Há
sempre uma pessoa que tem de dar o primeiro passo. Não estou a dizer que as
pessoas fizeram ou tomaram essas atitudes seguindo os meus passos. Mas que,
eventualmente, posso ter inspirado alguém a isso [assumir a homossexualidade]
não tenho dúvida.”
Voltando ao ímpeto para escrever, ou mostrar, a poesia…
Pensei
em reuni-los por assuntos. Como estava a dizer, eram temas muito diferentes e
não iam caber no mesmo livro. Eram poemas que sentia que tinha de trabalhar
mais. Estou muito mais habituada a escrever prosa, em que me estendo, escrevo
palavras a mais. E a poesia é a arte da síntese. Num verso não são precisas
muitas palavras, é preciso é que elas sugiram a imagem, que quanto mais rica
melhor. Tinha dificuldade em trabalhar nisso. A minha tendência era adjectivar,
relatar, escrever demais. Comecei a olhar para os poemas e comecei a cortar.
Depois comecei a mostrar a duas amigas minhas, a Helga Moreira e a Marta
Chaves, que são poetas. No fundo, elas fizeram o trabalho de editores. Ainda
não tinha falado com nenhum editor na altura. O que é normal um editor fazer é
ler e depois dizer: há aqui coisas que pode deitar fora, outras que pode
desenvolver. Neste caso foram elas que me ajudaram nessa tarefa. Foram sendo as
críticas daquilo que ia mostrando. Com elas também aprendi a não ser tão
excessiva nas palavras, mas a ter mais contenção. A dar-me mais ao trabalho de
procurar a palavra certa.
Já se reconhece no papel de escritora ou ainda se considera “actriz
e pessoa que gosta de escrever”, como dizia há uns anos?
Na
verdade, sim. Hoje em dia já me reconheço nesse papel porque talvez a escrita
tenha vindo a ocupar um espaço muito maior do que o meu trabalho como actriz.
Aos poucos, a escrita foi ganhando terreno. Era como se a minha casa tivesse
várias divisões, todas elas ocupadas pelo teatro. De repente há uma que é
ocupada pela escrita, depois começa a haver uma outra onde a escrita também
entra. E os compartimentos começaram a estar cada vez mais tomados pela
escrita.
Sabe por que razão permitiu que a representação saísse desses
quartos?
Tenho
noção. Por um lado, porque a escrita foi, desde sempre, a minha maior
identificação. Poderia ter ido por aí e ter ficado só aí. Mas sou curiosa,
gosto de experimentar muitas coisas e tudo quanto está relacionado com o campo artístico.
Também poderia ter sido pintora. Só não me atirei para estudar em Belas-Artes
porque sou canhota e ainda sou de uma geração em que nos proibiam de usar a mão
esquerda. Quando andava no colégio atavam-me a mão esquerda com um lenço para
eu ser obrigada a trabalhar, a escrever só com a direita. Em casa também tinha
sempre vários pares de olhos a ver se estava a comer bem à mesa, se não usava a
faca com a mão direita. Só sei fazer duas coisas com a mão direita, que é
escrever e usar a faca para comer. Não sei fazer mais nada com a mão direita.
Nem jogar ténis, nem nada disso, faço tudo com a esquerda. Convenci-me de que
não tinha jeito para nada porque como era forçada a trabalhar com a mão
direita, ao longo da escola e do liceu, claro que não tinha a mesma agilidade
que tinha com a mão esquerda. Nas aulas de desenho, esborratava um bocado as
coisas.
▲ Ana
Zanatti foi fotografada no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, o local
escolhido para apresentar o seu primeiro livro de poesia no próximo mês TOMÁS
SILVA/OBSERVADOR
Na escrita encontrava essa confiança?
Não,
não. Não tinha a confiança que escrevia bem. Gostava de escrever. Gostava,
tinha prazer em escrever. Muito prazer em escrever. E, depois, em determinada
altura, escrevi uma novela, uma coisa de duzentas páginas, mostrei-a a uma
professora de literatura francesa e ela gostou imenso. Na altura, ainda se pôs
a hipótese daquilo ser publicado. Aquela ideia da escrita ficou-me sempre cá. O
teatro veio porque a determinada altura tive esse anseio, essa vontade. Estava
prestes a entrar para a universidade e essa professora convidou-me para fazer
umas gravações. Começaram os audiovisuais a funcionar, fui convidada para fazer
uns filmes na emissora e comecei a achar graça. Aquele bichinho do teatro começou
a fazer-se ouvir cá dentro de mim.
E sossegou a escritora.
Sossegou
a escritora. E, depois, eu era desafiadora. Sabia que se dissesse aos meus pais
que queria ser escritora estava tudo bem. Mas ir para o teatro já não era assim
uma vontade tão bem aceite. Como era desafiadora, foi por aí o caminho. Lutei
por isso e gostei. Foi muito bom o tempo todo que estive a fazer teatro,
televisão e cinema e tudo isso. Mas o lado da escrita, em determinada altura,
começou a ganhar mais espaço.
Diz “foi muito bom” porque dá esse capítulo como terminado?
Não
dou nada como terminado porque não gosto de fechar portas, mas só numa situação
muito especial. É preciso qualquer coisa que me toque cá, que me faça mexer os
cordelinhos e que me faça vibrar cá dentro para ir.
O último trabalho como actriz foi há uns meses no filme O Vento Assobiando nas Gruas, com base
no romance de Lídia Jorge.
Sim,
mas é uma pequena, curtíssima participação, mais nada.
Não tem em vista nenhum projecto enquanto actriz?
Nada,
nada, nada. Tenho-me afastado voluntariamente. Tenho recusado algum trabalho.
Por exemplo, apareceu-me há uns meses uma proposta para ir fazer uma série, mas
isso obrigava-me a estar muito tempo fora, largos meses no Norte. Não podia
estar. Portanto, não aceitei. Tem de fazer um clique cá dentro. Estou cada vez
com mais vontade de estar no meu espaço íntimo, mais íntimo, e a escrever.
O que é que a motiva para escrever, ter algo para dizer?
Em
geral, em relação à prosa que escrevo, é sempre porque tenho qualquer coisa
para dizer sobre aquele tema, aqueles assuntos. Quero, através deles, chegar às
pessoas e fazer com que as pessoas, quando chegam ao fim do livro, pensem
talvez de uma forma um bocadinho diferente. Quero ajudar a esclarecer, a mudar
alguma mentalidade, chamar a atenção para qualquer coisa.
Admite portanto que não escreve só para si, escreve também para os
outros.
Escrevo
porque quero dizer alguma coisa e quero dizer alguma coisa aos outros. Às vezes
também quero dizer coisas a mim mesma, mas, na verdade, quando escrevo um livro
quero chegar a um fim. Há uma coisa que quero dizer, através das histórias
todas e dos enredos que irei criar, e das personagens que têm depois muita
coisa a dizer. Mas há um recado qualquer final que quero dar. Escrevo porque
quero passar uma ideia. E com essa ideia despertar qualquer coisa nas pessoas.
Os recados têm sido entendidos?
Acho
que sim. Tenho tido um feedback muito bom e isso dá muito, muito prazer. Não
estou a dizer que os livros são excelentes. Estou a dizer que tenho tido um
feedback muito bom do resultado. Os livros têm cumprido aquilo a missão que
queria que eles tivessem em determinadas pessoas que estavam mais fechadas para
determinados assuntos, ou que não entendiam, que tinham problemas
inclusivamente familiares, com elas próprias. Isso tem sido bom. Rasgar. Às
vezes é preciso rasgar. Rasgar, abrir janelas.
Aos 12 anos escrevia “é difícil crescer num mundo de gente tacanha e
provinciana como são os portugueses”. É difícil imaginar alguém aos 12 anos a
escrever isto.
Dava-me
muito com pessoas mais velhas. Sempre gostei de andar com pessoas mais velhas.
Era muito atenta ao que as pessoas mais velhas diziam. Via os amigos dos meus
pais, dos meus tios, que eram pessoas ligadas à intelectualidade, politicamente
muito de esquerda, e estavam sempre a dizer que o nosso país não avançava. Eu
ouvia e aquilo fazia sentido.
▲ Com
um percurso de décadas enquanto atriz e apresentadora, Zanatti fez sempre por
manter-se fora dos holofotes. "Sou discreta não por medo mas por
natureza", chegou a dizer TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Ainda faz?
Ainda
faz. Infelizmente. Claro que mudámos muito, claro que avançámos muito, claro
que hoje em dia nada se compara com o que vivi na minha adolescência. Mas há
ainda um provincianismo em nós, em alguns portugueses, que se faz sentir. Ainda
não temos esse rasgo, ou pelo menos alguns, esse rasgo e essa ousadia. Temos
muita preocupação em Portugal de não sair fora daquilo que aparentemente parece
que é o certo, de não se dar nas vistas, de não ser diferente daquilo que é
expectável. Depois há muitos complexos. Por exemplo, desde o 25 de Abril
que há imensos complexos de esquerda. Há imensas pessoas que se dizem de
esquerda e que depois a atitude delas perante a vida não tem nada a ver com
isso. Ainda há muito esse complexo de esquerda. Por exemplo, de as pessoas de
pensamento de centro, as conotar com pessoas de direita e de extrema-direita.
Acho que isso é péssimo.
Acha que é um discurso frequente?
Acho.
Muito. E acho que isso é muito grave para a democracia. Uma coisa é a
extrema-direita, outra coisa é a extrema-esquerda, a esquerda e o centro. Não
podemos conotar as pessoas que têm um pensamento diferente, mas que não é
extremista, nem para um lado nem para o outro, e começar logo a apontar com o
dedo a dizer que são pessoas fascistas ou que são isto ou aquilo. Acho feio. Há
um complexo de esquerda com que as pessoas ficaram ainda.
No caso dos artistas e dos actores, há quem se demita de qualquer
posicionamento público. Para si sempre foi evidente que teria de tomar um
posicionamento político público?
Tudo
o que faço é político. E tudo o que nós, no geral, actores, fazemos também é
político. Isto não quer dizer que esteja ligada a este ou aquele partido. De
maneira nenhuma. Lembro que estava na televisão, no dia 25 de Abril [de 1974],
na RTP. De um dia para o outro, no dia 24, havia pessoas que andavam a dar
vivas ao Marcelo Caetano, ao Salazar, e, no dia 25, estavam de punho no ar a
dar vivas ao Álvaro Cunhal. Fiquei extremamente chocada com isso. Era e sou uma
pessoa com pensamento de esquerda, mas não sou extremista. Lembro-me que, por
não ter sido das pessoas que aderiram a essa tomada de posição exagerada, de
não me ter posto com essas fantasias, alguns colegas chamarem-me Aninhas PPD.
Se não era daquelas que andavam de braço levantado, tinha que ser a Aninhas
PPD. Achava imensa graça. Ria-me imenso.
A publicação do O
Sexo Inútil (2016),
foi um desses actos políticos do seu percurso?
Sim, como foi Os Sinais do Medo, o
primeiro livro que escrevi. São livros que vêm, de alguma forma, chamar a
atenção de determinadas realidades que são ainda proscritas, quase, ou eram.
“Aos poucos, a escrita foi ganhando terreno.
Era como se a minha casa tivesse várias divisões, todas elas ocupadas pelo
teatro. De repente há uma que é ocupada pela escrita, depois começa a haver uma
outra onde a escrita também entra. E os compartimentos começaram a estar cada
vez mais tomados pela escrita.”
Foi uma situação inédita a de uma mulher com exposição pública não
recorrer à ficção para falar de homossexualidade. Na altura, teve receio ao
fazer essa tomada de posição?
Não
tive nenhum receio. Quando escrevi o Os Sinais do Medo talvez, porque
quando o editor leu disse-me: “Isto é um livro muito atrevido, um livro muito
ousado”. Aí pensei: será que me vai acontecer alguma coisa? Mas não. Acho que a
minha vida, de certa forma, profissional, tem-se pautado por ousar certas
coisas. Ter feito o nu, ter feito determinadas peças com determinados temas que
não se faziam na altura…
Quando faz a peça Equus, Amargura para Um Cavalo, de Peter
Shaffer, no Teatro Variedades, com uma cena de nudez, estamos em pleno PREC,
1975.
Sim
e quando fiz A Verdadeira História de Jack, o Estripador. Foram momentos
do meu trajecto profissional em que tive que fazer grandes escolhas. Fui,
obviamente, chamada à atenção, disseram que corria perigos de poder ser
despedida da televisão, quando ainda trabalhava lá. Tive muitas vozes contra.
Tinha que ter uma grande certeza dentro de mim de que estava certa daquilo que
queria dizer e daquilo que queria passar, para não sucumbir a essas vozes,
esses velhos do Restelo que me queriam calar. Não era por mal, às vezes era até
achando que me estavam a defender.
Teve sempre uma grande certeza dentro de si?
Houve
momentos de dúvida também. Sou humana. Não era dúvida sobre o que queria fazer,
era dúvida sobre: devo ou não devo, corro o risco ou não corro? É mais isso.
Foi apresentadora e atriz, fez teatro, cinema e televisão, escreveu
telenovelas, letras de músicas, livros, mas conseguiu manter-se sempre à margem
do circo mediático que envolve a indústria do entretenimento. Primou sempre
pela discrição pelo medo ou por ser da sua natureza?
É a minha natureza. Não é por medo, de
todo, até porque acabo por fazer coisas que não são discretas. Sou discreta por
natureza, depois faço é coisas que não são discretas, mas não é para dar nas
vistas. Já fiz coisas ao longo do meu percurso profissional que chamam a
atenção, porque são coisas que falam de temas mais fracturantes.
▲ Com o jornalista Pedro
Oliveira em "O Lugar do Morto"(1984), de António Pedro Vasconcelos. O
filme tornou-se um dos maiores êxitos da história do cinema português
Quando publicou esse livro, em 2016, disse que se “contam pelos
dedos” as figuras públicas que assumem a sua homossexualidade. Entretanto,
passaram quase dez anos.
Já
houve mais. Mas não é obrigatório que as pessoas assumam, nem essa frase contém
algum julgamento. Não contém julgamento nenhum. Cada um fala da sua vida
privada. Não temos de falar da nossa vida privada lá porque somos artistas e
temos um lado da vida que é público, não temos nada que falar da nossa vida
privada. Fala quem quer ou quem tem motivos para isso. Cada um sabe por que
motivos se esconde, por vezes são motivos familiares, por vezes não interessa.
Respeito as pessoas.
Um ano depois da publicação desse livro,
em 2017, a secretária de Estado da Modernização Administrativa, Graça Fonseca,
que viria a tornar-se ministra da Cultura, tornou-se na primeira governante a
assumir a sua homossexualidade.
E ainda bem, fez muito bem.
Reconhece que por vezes a partilha pode ter esse efeito? Há sempre um que tem de ser o primeiro.
Há
sempre uma pessoa que tem de dar o primeiro passo. Não estou a dizer que ela
tenha feito porque eu fiz, de maneira nenhuma. Até porque eu assumi a minha
homossexualidade muito antes de escrever O Sexo Inútil. Numa entrevista
ao Público, quando escrevi Os Sinais do Medo.
E ainda antes — em 2009, na apresentação do Movimento pela
Igualdade no acesso ao casamento civil, no Cinema São Jorge — quando o fez
saber para defender que duas pessoas do mesmo sexo tinham o direito a poder
casar-se se quisessem fazê-lo.
Exactamente.
Portanto, não estou a dizer que as pessoas fizeram ou tomaram essas atitudes
seguindo os meus passos. Mas que, eventualmente, posso ter inspirado alguém a
isso não tenho dúvida. Se ela está ali e está viva, e bem de saúde, porque é
que eu também não hei-de poder fazer o mesmo? Acho que tem de haver pessoas a
dar os primeiros passos, é fundamental.
Uma década depois, há mais abertura para no “Portugal bafiento” de
que falava há pouco?
Sim, acho que há mais abertura. Embora
ainda haja muita coisa para resolver. E acho que nunca estará totalmente
resolvido. E depois temos de ter atenção porque as conquistas que temos tido em
muitas áreas podem todas andar para trás rapidamente. Basta que um partido de
extrema-direita ou um de extrema-esquerda se imponha.
Isso assusta-a?
Assusta-me,
claro. Não gostaria nada de ter um partido de extrema-esquerda nem um partido
de extrema-direita a mandar no meu país.
Voltando ao princípio, o que pode a escrita fazer?
A
escrita pode fazer o que tem feito. Para quem lê o que escrevemos, e para quem
lê alguns livros, não estou a dizer os meus, que não são certamente os mais
importantes, mas há livros muito importantes e é importante que as pessoas
leiam, porque os livros abrem as cabeças das pessoas. Abrem-lhes o espírito,
mostram-lhes novos horizontes, novas formas de pensar. Isso é muito importante,
que todos nós contactemos com formas de pensar diferentes da nossa, com
propostas de vida diferentes, com olhares que às vezes nem nos passam pela
cabeça. Isso é muito bom porque nos ajuda também a transformar muita coisa
dentro de nós. A vida não é mais do que isso, transformação. O nosso corpo
transforma-se ao longo dos tempos e a nossa mente também é desejável que se
transforme.
Aos 75 anos, como se lida com a transformação, da mente, do corpo?
Pensa na ideia de finitude?
Penso muitas vezes. Penso sobretudo na
ideia de que não gostava de ter que sofrer muito para morrer. Gostava de morrer
de repente, não ter que atravessar o calvário de certas doenças. Nisso penso,
obviamente. Quanto mais os anos vão passando mais perto estamos disso nos poder
acontecer.
▲ Ao 75
anos, Ana Zanatti diz que "a vida não é mais do que transformação".
"O nosso corpo transforma-se ao longo dos tempos e a nossa mente também é
desejável que se transforme", diz ao Observador TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Este mês voltou a discutir-se a questão da eutanásia — mais de 250 personalidades
exigem a regulamentação da lei, um ano depois de ter sido
promulgada.
Completamente
legislada, e bem legislada, sou inteiramente a favor da eutanásia. Quando a
pessoa já não tem qualquer esperança de vida, de melhorar, quando não tem nada,
não há um espaço de tempo à sua frente com qualidade de vida, e pede ajuda,
acho que é fundamental dar essa ajuda às pessoas, e não as deixar sofrer só
para que esteja morta viva durante mais algum tempo.
“Cada dia é menos ou mais um/ para estarmos
perto?”: perguntava-lhe sobre a ideia de finitude também a propósito deste
verso do poema Desnorte, deste livro, As Trapezistas.
Gosto
muito que cada um leia um verso e depois retire a sua interpretação daquilo que
escrevi, como eu retiro daquilo que outros escrevem. É uma das riquezas da
poesia. A prosa explica-se muito mais, orienta mais a mente do leitor. Aqui
não. Uma das belezas da poesia é essa. Nós deixarmos em aberto no campo para
quem lê ir lá buscar aquilo que quiser e que lhe fizer mais sentido. Hoje pode
fazer sentido isso e amanhã pode fazer sentido outra coisa. Já me tem
acontecido abrir em livros de poemas, às vezes abro uma página ou caio naquele
poema que já li noutra altura e que li de outra forma. Naquele dia quis dizer
outra coisa para mim. Isso é muito rico num poema.
Assumindo então a injustiça de lhe ter pedido para reflectir sobre
um verso seu, peço-lhe para o fazer com um de Saint Exupéry que escolheu citar
neste livro: “Cada um é o único responsável de todos”.
A
mim diz-me que nós todos fazemos parte do mesmo. Esta ideia de que estou aqui,
tu estás ali, e o outro lado do mundo, e que somos entidades muito separadas,
que nada do que faço se reflecte algures em alguém, não concordo, não partilho
disso. Acho que tudo o que faço se reflecte de alguma maneira em alguém, em
alguma coisa. E tudo o que toda a gente faz a mesma coisa. É uma ideia
peregrina, mas se todos nós nos conjugássemos para uma ideia de bem, e para
fazermos bem, possivelmente teríamos um mundo diferente.
CULTURA ENTREVISTA OBSERVADOR LIVROS
LITERATURA POESIA
COMENTÁRIOS (de 10)
Rui Lima: Esta e o Eládio Clímaco davam-se bem, ambos gays e todos sabíamos, mas eram
bons profissionais e respeitavam tanto quanto eram respeitados, num tempo em
que a “classe dos armários” não era radical nem procurava criar tensões
sociais. São um bom exemplo de como deve ser uma sociedade livre e igual (eram respeitados
e ninguém se importava com isso), sem cismas políticos propositados. Outro bom
exemplo era João Vilaret, um grande senhor. Cisca Impllit: Sensata: " não gostaria de ver no meu País
um governo de extrema esquerda ou de extrema direita" Pertinaz: Disse tudo sobre o complexo de
esquerda que a escumalha de esquerda cultiva em Portugal… não passam de
ditadorzinhos de pacotilha…!!! JM Azevedo: Uma verdadeira SENHORA! Ed 7: Sempre foi uma artista de nível:)
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