Chocada – lixada seria não só um
termo desconfortável, mas inconveniente para um dactilógrafo que usa apenas o
indicador da sua mão direita na sua escrita contumaz e pertinente embora, mas o
Ricardo, que me enviou o texto infra, não tem culpa disso, ainda que o tenha
feito por… “malandrice”?
Estranho mundo, este, dos Bernardos Silvas do confronto vital. Ou do simples
conforto, nem sei bem por qual dos termos opte… Mas se não houvesse Bernardos
Silvas, também não haveria as Andrómacas, nem as Jocastas, as Antígonas, nem os
Racines, precedidos dos Anacreontes e dos Ésquilos e Cia., que tão bem
retrataram gentes… contudo de outras castas, mais dignas de serem retratadas…
Realmente, estas leituras de hoje pouco têm a ver com as de ontem e mesmo
as de há mais tempos. Não, não têm nada a ver! Pelo menos em termos de tragédia
ou comédia, de envergadura superior, na escolha dos heróis. Resta-nos sempre a
farsa, é certo, para os casos da banalidade actual, ou da actualidade banal,
por vezes de pieguice oca, a rebentar de prosápia e a merecer o desprezo. Triste
que seja.
Programas Antena 1 19 set,
2024, 17:30
Não me lixes, Bernardo Silva
Bernardo Silva queixou-se do
excesso de jogos que impedem que esteja mais tempo com a família e
os amigos. Uma opinião que tem hoje resposta.
1.
Bernardo Silva tem menos de 30
anos e, aconteça o que acontecer, será um dos melhores jogadores portugueses de
sempre.
O seu virtuosismo e inteligência
tornam-no um caso raro na história do futebol, não precisa como a maioria de
ser forte fisicamente ou de ter nascido predestinado.
O Bernardo ilumina o seu jogo
por ser mais rápido do que os outros a pensar dentro de campo.
2.
Além do mais é um prazer
ouvi-lo.
Sabe o que deseja e é um
futebolista que ajudou a romper com o paradigma de que os futebolistas apenas
sabiam dar chutos e cabeçadas numa bola.
Quando o Bernardo fala sobre
futebol é escutado.
Mas quando fala sobre a
sociedade, sobre a família, sobre a vida e a organização social também é
escutado.
Os benfiquistas acreditam que ainda
será presidente do clube.
E há também os que preferem
vê-lo como futuro treinador ou até político.
3.
No entanto, Bernardo vive
aparentemente numa cápsula de privilégio. Só assim se pode entender o que
afirmou numa das suas últimas conferências de imprensa.
Queixou-se do excesso de jogos e
do enorme e injusto peso de não poder estar mais tempo com os amigos e a
família.
Confesso-te que congelei.
O Bernardo Silva, que ganha 410
mil euros por semana, teve a coragem de se queixar da quantidade de jogos e da
falta de tempo para estar com os amigos e a família?
4.
Saberá o Bernardo como vivem
hoje as famílias?
Saberá as horas que um português
de salário mínimo tem de trabalhar? As horas que passa em transportes? O que
tem de fazer para compensar a falta de dinheiro a meio do mês?
Saberá o esforço que tanta gente
que ganha tão mal faz para o ver jogar e alimentar a máquina do futebol e
ajudar a que o seu ordenado seja aquele e não outro?
Saberá quantas horas dormem as
mulheres que limpam as fábricas, as empresas e as nossas casas?
Todas as madrugadas a acordarem
e a apanharem autocarros apinhados de gente ensonada que faz o que é preciso
para ganhar num mês o que o Bernardo ganha enquanto põe as caneleiras?
Saberá quantas horas trabalham e
em que condições os homens nas fábricas, nas minas, nas obras?
5.
Julgo que o Bernardo é filho de
médicos.
Também cá tenho em casa uma
médica e uma futura médica.
Sabe quantas horas trabalham por
dia?
E quanto levam por mês em troca
de uma disponibilidade total para salvar vidas?
E sabe quanto ganha um
professor?
Sabe quantas horas trabalha um
professor?
Quantas horas tem de trabalhar
em casa para corrigir testes e preparar aulas?
Mesmo os capitalistas, os donos
do dinheiro, os presidentes das grandes empresas, os banqueiros e os
verdadeiramente privilegiados podem ser criticados por muita coisa, mas não por
se dedicarem pouco ao trabalho. A família não é propriamente a prioridade dos
fazedores de dinheiro.
6.
É legítimo que Bernardo Silva
tenha pena de não passar mais tempo com os amigos e de não visitar os pais sem
ser quando o “rei faz anos”, mas bolas.
Não se queixe do incómodo de não
poder estar com os amigos por ter excesso de trabalho.
Não é certo.
Não é justo.
É até chocante.
410 mil euros por semana.
1 milhão e 600 mil euros por
mês.
Não me lixes, Bernardo.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas
18h50. Disponível posteriormente em Spotify,
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