sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Também fiquei um bocadinho


 Chocada – lixada seria não só um termo desconfortável, mas inconveniente para um dactilógrafo que usa apenas o indicador da sua mão direita na sua escrita contumaz e pertinente embora, mas o Ricardo, que me enviou o texto infra, não tem culpa disso, ainda que o tenha feito por… “malandrice”?

Estranho mundo, este, dos Bernardos Silvas do confronto vital. Ou do simples conforto, nem sei bem por qual dos termos opte… Mas se não houvesse Bernardos Silvas, também não haveria as Andrómacas, nem as Jocastas, as Antígonas, nem os Racines, precedidos dos Anacreontes e dos Ésquilos e Cia., que tão bem retrataram gentes… contudo de outras castas, mais dignas de serem retratadas…

Realmente, estas leituras de hoje pouco têm a ver com as de ontem e mesmo as de há mais tempos. Não, não têm nada a ver! Pelo menos em termos de tragédia ou comédia, de envergadura superior, na escolha dos heróis. Resta-nos sempre a farsa, é certo, para os casos da banalidade actual, ou da actualidade banal, por vezes de pieguice oca, a rebentar de prosápia e a merecer o desprezo. Triste que seja.

Programas Antena 1 19 set, 2024, 17:30

Não me lixes, Bernardo Silva

Bernardo Silva queixou-se do excesso de jogos que impedem que esteja mais tempo com a família e os amigos. Uma opinião que tem hoje resposta.

1.

Bernardo Silva tem menos de 30 anos e, aconteça o que acontecer, será um dos melhores jogadores portugueses de sempre.

O seu virtuosismo e inteligência tornam-no um caso raro na história do futebol, não precisa como a maioria de ser forte fisicamente ou de ter nascido predestinado.

O Bernardo ilumina o seu jogo por ser mais rápido do que os outros a pensar dentro de campo.

2.

Além do mais é um prazer ouvi-lo.

Sabe o que deseja e é um futebolista que ajudou a romper com o paradigma de que os futebolistas apenas sabiam dar chutos e cabeçadas numa bola.

Quando o Bernardo fala sobre futebol é escutado.

Mas quando fala sobre a sociedade, sobre a família, sobre a vida e a organização social também é escutado.

Os benfiquistas acreditam que ainda será presidente do clube.

E há também os que preferem vê-lo como futuro treinador ou até político.

3.

No entanto, Bernardo vive aparentemente numa cápsula de privilégio. Só assim se pode entender o que afirmou numa das suas últimas conferências de imprensa.

Queixou-se do excesso de jogos e do enorme e injusto peso de não poder estar mais tempo com os amigos e a família.

Confesso-te que congelei.

O Bernardo Silva, que ganha 410 mil euros por semana, teve a coragem de se queixar da quantidade de jogos e da falta de tempo para estar com os amigos e a família?

4.

Saberá o Bernardo como vivem hoje as famílias?

Saberá as horas que um português de salário mínimo tem de trabalhar? As horas que passa em transportes? O que tem de fazer para compensar a falta de dinheiro a meio do mês?

Saberá o esforço que tanta gente que ganha tão mal faz para o ver jogar e alimentar a máquina do futebol e ajudar a que o seu ordenado seja aquele e não outro?

Saberá quantas horas dormem as mulheres que limpam as fábricas, as empresas e as nossas casas?

Todas as madrugadas a acordarem e a apanharem autocarros apinhados de gente ensonada que faz o que é preciso para ganhar num mês o que o Bernardo ganha enquanto põe as caneleiras?

Saberá quantas horas trabalham e em que condições os homens nas fábricas, nas minas, nas obras?

5.

Julgo que o Bernardo é filho de médicos.

Também cá tenho em casa uma médica e uma futura médica.

Sabe quantas horas trabalham por dia?

E quanto levam por mês em troca de uma disponibilidade total para salvar vidas?

E sabe quanto ganha um professor?

Sabe quantas horas trabalha um professor?

Quantas horas tem de trabalhar em casa para corrigir testes e preparar aulas?

Mesmo os capitalistas, os donos do dinheiro, os presidentes das grandes empresas, os banqueiros e os verdadeiramente privilegiados podem ser criticados por muita coisa, mas não por se dedicarem pouco ao trabalho. A família não é propriamente a prioridade dos fazedores de dinheiro.

6.

É legítimo que Bernardo Silva tenha pena de não passar mais tempo com os amigos e de não visitar os pais sem ser quando o “rei faz anos”, mas bolas.

Não se queixe do incómodo de não poder estar com os amigos por ter excesso de trabalho.

Não é certo.

Não é justo.

É até chocante.

410 mil euros por semana.

1 milhão e 600 mil euros por mês.

Não me lixes, Bernardo.

 

Texto e programa de Luís Osório

Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.

Luís Osório Postal do Dia

 

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