É também não se importar de transcrever
na íntegra um texto oratório, apesar da sua extensão, que fique como súmula de
preceitos para meditarmos, a que apôs o comentário de Carlos Traguelho, como sempre,
preciso e igualmente elegante.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO11.06.20
DISCURSO DO CARDEAL TOLENTINO
NAS CERIMÓNIAS DO 10 DE JUNHO NOS JERÓNIMOS
Agradeço
ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das Comemorações do dia
10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.
Estas
comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também noutro
lugar, a Madeira. No poema
inicial do seu livro intitulado Flash, o
poeta Herberto Helder, ali nascido,
recorda justamente «como pesa na água (...) a raiz de uma ilha».
Gostaria de iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as
raízes, por saudar a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde
há seis séculos se tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É
uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar a
palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de
concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões
de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país,
àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que
dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território
continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico
nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
Se
interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da
sua parte - a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas
relações ou o seu território de vizinhança - mas é importante que se recorde
que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada
português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por
ele. Pois quando arquitectamos uma casa não podemos esquecer que, nesse
momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa
embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou
quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria
sem as raízes.
Camões e a arte do desconfinamento
Pensemos
no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser
precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes
quase quinhentos anos, continuamos a evocar colectivamente o seu nome, não é
apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do
Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa
inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de
marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmogrfiaa
da alma. Isso explica, por exemplo, que Os
Lusíadas sejam, ao
mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à India, mas que nos
conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com
uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como
nação; faz-nos aportar – e esse é o
prodígio da grande literatura - àquela consciência última de nós mesmos, ao
quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre
a terra, não se pode isentar.
Se
é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são
os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da
cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar
isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a
ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a
ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder
modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício
deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e
conformar participante
de um projecto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não -se com os limites da linguagem, das ideias,
dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tectos baixos, Camões é uma
inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época
que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca
no interior turbulento de uma mudança de época.
Que a crise nos encontre unidos
Gostaria
de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra
a chegada da expedição portuguesa à India.
Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a
anuncia vibrante a Vasco da Gama. O objectivo da missão está assim
cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente composição em
antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega
sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade
marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força
plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há
demandas que não enfrentem a sua própria complexificação. Não há
itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas
também nas Metamorfoses de Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de
Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No
itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus,
épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e
travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é feita de
maturações, deslocações, rupturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos
encontremos unidos em torno à actualização dos valores humanos essenciais e
capazes de lutar por eles.
Mas
à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um
detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a palavra «raízes».
Na estância 79, falando dos efeitos devastadores do vento, o poeta
diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as
fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem
viradas». A leitura
da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas ao
contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu
aberto, as próprias raízes. A tempestade
descrita por Camões recorda-nos, assim, a
vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que
julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da
máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos
chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar
com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está
sobre este mundo.
O que é amar um país
O
Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a
oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A
pensadora europeia Simone Weil,
num instigante ensaio destinado a inspirar o renascimento
da Europa sob os
escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o
75º aniversário, escreveu o
seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e estas
constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar
um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça
fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que,
precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus
solavancos, está exposto a tantos riscos.
São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o
nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
O
amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu
sentido mais nobre - e que essa seja vivida como exercício efectivo da
fraternidade. Compaixão
e fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão
e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não
só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o
nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade
nacional, de fincar ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se sobre
nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas
vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que
principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo
espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo
que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade
rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos
ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a
tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir
o que significa estarmos no mesmo barco.
Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo barco?
Permitam-me pegar numa parábola.
Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um
estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de
civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os
primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais
recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como
primeiro vestígio de civilização um fémur
quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido
face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur
humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento
completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás,
sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela,
oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que
recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É
na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar
ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e
ética.
É
interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra comunidade
(communitas). Associando
dois termos, cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e
também de uma comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional
qualquer. Estão ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma
tarefa partilhada. Que tarefa é
essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar
da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais
criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que
é a nossa raiz. Sentir que
fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida
comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando
perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro,
quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de
corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos
postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que
são os últimos. Não
podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará
como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento
radical e mesmo de fome. Esta
tem de ser uma hora de solidariedade. No
contexto do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante
a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de
residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos,
imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se
improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma
participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do
cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao
nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem
compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade
de lançar raízes.
Fortalecer
o pacto intergeracional
Reabilitar o pacto comunitário
implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia
acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma
visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo
inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro
emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva
do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma
geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.
A
tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a reflectir sobre
a situação dos idosos em Portugal e
nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais
vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas
lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois
o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar
firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma
diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar
a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como
mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como
arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar
nesse momento foi a da minha avó
materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca.
Quando era criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas
com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela.
Depois descobri que faziam
parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que
nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o
nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto
intergeracional é também
olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é
a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa
década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica
grave. Jovens adultos, muitos deles com uma
alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de
trabalho precário ou de actividades informais que os obrigam sucessivamente a
adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de
ter filhos e de se realizarem.
Implementar um novo pacto ambiental
A
pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto
ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do
problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que
para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres
vivos, tem sido uma evidente regressão.
Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica
Laudato Sii’, o Papa Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa humanidade se
pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do
mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos,
praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efectiva nos
tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas
expressões mais domésticas
do nosso quotidiano.
Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas
documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país
como viagem. Portugal é
uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta
nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e
sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens
livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem - e efectivamente são
- corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes
à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma
viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma viagem assim - explica Maria Gabriela
Llansol, uma das vozes mais límpidas da nossa
contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na fugaz temporalidade
da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor» que exprime a
ardente natureza do sentido que interrogamos.
Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, 10 de junho de 2020
Tolentino de Mendonça, Cardeal D. José
COMENTÁRIO:
Anónimo,12.06.2020:
Obrigado, Henrique, por nos
proporcionares a leitura integral da intervenção do Cardeal Tolentino de
Mendonça. A riqueza do
seu conteúdo e a beleza da sua forma esmagam e fazem-nos (pelo menos a mim)
sentir muito pequenos, a convidar a uma profunda meditação. Sem querer
perturbar a reflexão, que tão sábias palavras suscitam, nem querer quebrar o
silêncio, que necessariamente envolve aquela, não resisto a fazer três
sublinhados, dois breves e um terceiro um pouco mais extenso, mas as
circunstâncias assim o exigem.
O primeiro sublinhado é para realçar o
valor que significa fortalecer o pacto intergeracional, reconhecendo que “o
pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias”
e apontando como “erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não
poderíamos viver uns sem os outros”. Que distância astronómica vai desde esse
elevado pensamento ao mesquinho diagnóstico feito há anos por um político, de
cujo nome não me quero recordar, que apontou que Portugal tinha sido contaminado
por uma “peste grisalha”, constituída por pensionistas e reformados.
O segundo sublinhado é para recordar
algum paralelismo de evocação que dois portugueses de letras fizeram dos seus
avós. Enquanto o Cardeal menciona que, quando tomou posse de bibliotecário da
Santa Sé, quis recordar a sua avó, pese embora analfabeta, foi para ele “a
primeira biblioteca”, pelas histórias que contava ou pelas cantilenas que
dizia, o que representou a mediação com a cultura (popular), um outro
português, este laico, em cerimónia também nobre, evocou, no final do século
passado, o seu avô, classificando-o como “o homem mais sábio que conheceu em
toda a vida” e que “não sabia ler nem escrever”. Noutra ocasião, em carta
escrita à sua avó, igualmente analfabeta, recorda, à laia de agradecimento
pelos ensinamentos dados, que ela lhe contara histórias de aparições, de
lobisomens, de velhas questões de família e de um crime de morte.
O terceiro e último sublinhado, concerne
ao despautério ocorrido no dia seguinte ao discurso do Cardeal Tolentino de
apelo à tolerância, à compaixão e à fraternidade, como modo de vida potenciador
do enraizamento de uma comunidade. No dia seguinte ao Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades (repito, das Comunidades), a estátua do Padre António
Vieira, na linha da moda emergida em vários países, foi vandalizada, certamente
por analfabetos, mas não da mesma iliteracia dos avós daqueles dois homens de
cultura. O Cardeal cita Simone Weil para dizer que há duas formas de amar um
País – ou idealmente, fixando-o numa imagem de glória, ou colocando-o na
História, sujeitando aos seus solavancos e aos inerentes riscos. Perfilho a
segunda hipótese, e amo o meu País por tudo o que ele tem de bom e de menos bom
e até de mau. Mas jamais se podem fazer juízos históricos descontextualizados –
regra básica do estudo da História. Não se podem analisar factos pretéritos à
luz de conceitos actuais, como sabemos. A decapitação das estátuas de Colombo
ocorrida em várias cidades dos EUA foi seguramente feita por pessoas que lá não
viveriam se não tivesse sido Colombo (ou outro) a descobrir aquele Continente.
Não é preciso estudar muito para saber das qualidades altamente positivas do
Padre António Vieira. A elementar Wikipédia classifica-o como uma das mais
influentes personagens do século XVII, em termos de política e oratória, e como
missionário no Brasil “defendeu incansavelmente os direitos dos povos
indígenas, combatendo a sua exploração e escravização e fazendo a sua
evangelização. Era por eles chamado Paiaçu (grandePadre/Pai, em tupi)”. O
político brasileiro, bem de esquerda, antropólogo e etnólogo, Darcy Ribeiro,
que não morria de amores pela colonização portuguesa, na sua obra mais de
folgo, e derradeira, “O Povo Brasileiro”, escreveu “… representado por figuras
mais capazes de indignação moral, como António Vieira, os jesuítas assumiram
grandes riscos no resguardo e na defesa dos índios. Foram, por isso, expulsos
primeiro, de S. Paulo e, depois, do Estado do Maranhão e Grão-Pará pelos
colonos". Abraço amigo. Carlos Traguelho
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